Foto Arquivo / Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados
Nem sabíamos a que geração pertencíamos, mas o movimento das Diretas, o fim do governo militar e as eleições para prefeitos das capitais fizeram a cabeça daquela classe de Ciências Humanas do Colégio de São Bento de 1984, o ano de Orwell. Naquelas aulas do professor Mesquita, ele não cansava de repetir que o Brasil não tinha uma Constituição. Que aquilo que foi feito em 1967 era uma aberração. Que uma verdadeira e legítima Constituição deveria ser feita por uma Assembleia Nacional Constituinte escolhida pelo povo. Somente por uma Assembleia Nacional Constituinte. Uma Assembleia… com professores, artistas, operários, donas-de-casa, cientistas, militares, esportistas, políticos, estudantes, técnicos… todos eles escolhidos pela população, pessoas que fariam a Carta Magna da Nação e, em seguida, pegariam o boné e voltariam para casa, sem faturar em cima da própria criação.
Veio o fim do governo militar e um fio de redemocratização com a eleição – indireta – de Tancredo Neves. Que falava da convocação de uma Constituinte. Ou melhor, que começou falando em Assembleia Constituinte… ou quase. No discurso na convenção do PMDB em que sua candidatura foi oficializada, mineirizou seu compromisso: “Assumo, diante de nosso povo, o compromisso de promover, com a força política que a Presidência da República confere a seu ocupante, a convocação de poder constituinte para, com a urgência necessária, discutir e aprovar nova Carta Constitucional”. Depois, disse que aceitaria um Congresso Constituinte (algo como um triciclo de duas rodas, em que um Poder, o Legislativo, define as suas próprias atribuições e as do Judiciário e as do Executivo. Ora, está claro que algo não vai funcionar direito ou que, como o triciclo, o equilíbrio vai passar longe dessa invenção).
E veio a posse de Tancredo – ou quase. E veio um clima de euforia – ou quase. E veio a posse do vice, que – pelo menos isso – seguiu com a proposta da Constituinte mas com um Congresso Constituinte (a ideia da Assembleia Constituinte evaporou das propostas políticas, dos discursos, das entrevistas e das manchetes. Só a OAB, alguns intelectuais e o professor Mesquita ainda protestavam), mas, vá lá, àquela altura, “na corda bamba de sombrinha – com um vice que traiu os militares para se perpetuar no poder – se uma nova Carta fosse promulgada, já estaríamos no lucro.
Eram outros tempos. Aquela geração (ou os Millennials de hoje, mas sem internet) vibrava com as letras das bandas de rock nacional, que – acreditem – eram tocadas nas rádios. A imprensa torcia pelo país (mesmo com aquele vice na presidência). Mas, para garantir a democracia ou por medo das assombrações de quepe e coturno; a sociedade, os políticos e os jornais fecharam questão. O Congresso Constituinte iria fazer a “legítima” Constituição e não se fala mais nisso.
E como eram outros tempos… no Congresso (o da Constituinte e o Nacional ao mesmo tempo… fabricando um triciclo de duas rodas), o clima de quase democracia e uma exagerada vontade de acertar – sim, eu e o dr. Pangloss achamos que foi por excesso de boas intenções – de muitos que sofreram com a ditadura militar deram à luz um rebento enorme, lento e complexado, mas o padrinho Ulysses Guimarães garantia, com as palavras exatas, a formosura da criação: “Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.”
Estava promulgada a Constituição de 1988. (A sétima, conforme os livros de História; a terceira, já havia me ensinado o professor Mesquita).
Não se passou um ano e se falava em reforma. Mais um ano e os ideais acabaram de vez. Percebeu-se que o trauma da liberdade reconquistada também poderia provocar desastres. Um deles: Aquela democrática Constituição previa ampla possibilidade de concessão de asilo politico. No papel, uma linda defesa da liberdade. Na prática sul-americana, quem foi o primeiro a se aproveitar? O ex-presidente deposto do Paraguai, Alfredo Stroessner, em 1989. Espanto e silêncio. Já se percebia que algo não ia bem. Não foi para isso que a “Constituição Cidadã” havia sido feita. Já um triciclo de duas rodas poderia até continuar andando com um ditador sanguinário a bordo.
Finalmente, o verdadeiro fim da ditadura com as eleições presidenciais de 1989. Fernando Collor leva a faixa e tenta se adaptar, com um esquema peculiar, ao Congresso da Nova Constituição… não se saiu muito bem (no esquema e no governo).
Quase uma década depois, com o triciclo fazendo o governo – brasileiros a bordo – sacolejar a cada obstáculo, o deputado Miro Teixeira tenta emplacar uma proposta de Emenda Constitucional para a convocação de Constituinte, que analisaria os sistemas político, federativo e tributário. O governo até que acena positivamente, mas a proposta, apoiada pela situação, é massacrada pela oposição.
E o triciclo chega, em farelos, a junho de 2013. E é a vez da própria presidenta, por convicção ou oportunismo – pouco importa –, pedir uma mudança na Constituição. Falou em “um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política que o país tanto necessita”. Seja lá o que isso signifique, “processo constituinte específico” soa melhor que “Congresso Constituinte”. Longe de ser a solução, poderia ser um belo remendo no pneu do triciclo. Os juristas foram à loucura. Uns garantem que isso só poderia ser feito com uma emenda constitucional com maioria de dois terços. Outros, com plebiscito e maioria de três quintos, o que daria a esse “processo constituinte específico” o poder de mudar toda Constituição. Outros ainda dizem que… bem, como se viu, são regras bem simples e fáceis de entender que essa Constituição deixou. Há uma ala mais radical que defende o palitinho ou o par ou ímpar… Mas estamos em 2013. Quem era oposição virou situação. a situação virou oposição… e não é que, além de cadeiras, também mudaram de ideia e ideais?
Quem apoia hoje, havia massacrado anteriormente. Quem aplaudira antes, detona hoje. Um dos que mais combatem a proposta (ah, como o mundo dá voltas) é o sobrinho daquele presidente que chegou a falar em “poder constituinte”. Aécio Neves se esquece de que, se o seu sonho virar realidade, vai precisar governar o Brasil. Resta saber qual será sua opção: PC Farias, Eduardo Jorge ou os mensaleiros. É o que sobra com essa Constituição que torna o governo refém do Congresso.
Mais que a minha, a geração Millennials bem que merecia uma Assembleia Constituinte. O que não seria cada discussão, cada tema levado às redes sociais e às ruas. Chegaríamos perto de uma Constituição do povo, legítima e legitimada por uma Assembleia Constituinte e não por um Congresso Constituinte (uma diferença que qualquer aluno do professor Mesquita conhece muito bem).
Wagner William é jornalista, autor dos livros “Silvio Luiz – Olho no Lance” e “O Soldado Absoluto”. Assinou a reportagem de capa da edição 65 da Brasileiros, sobre a Operação Condor.
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