A criação do mito

foto: Murillo Meirelles
Dez anos sem Sabotage – Projetos ligados ao MC começam a sair do papel. Acima, foto Polaroid inédita do músico, tirada em 2002 no bairro do Capão Redondo


Q
uando foi assassinado, no início de 2003, Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage, já havia conquistado seu espaço no hip-hop e colhia os frutos do sucesso de seu único álbum, Rap é Compromisso (2001), de gravações em discos de parceiros e das participações nos filmes Invasor (Beto Brant) e Carandiru (Hector Babenco). Para muitos, ele já era referência, e sua obra revolucionária. O que ainda não estava claro era o quanto Sabotage, com sua pequena produção musical, representaria um divisor de águas no rap nacional. Hoje, tornou-se uma das principais influências da nova geração de rappers e foi transformado quase em mito nas periferias do País. Agora, no ano que marca uma década de sua morte, além de shows e homenagens, o cantor ganha biografia oficial, documentário e um disco póstumo, com músicas que deixou incompletas. 

A morte precoce, supostamente fruto de rivalidades no mundo do crime, certamente contribuiu para a criação do mito, assim como a participação de Sabotage nos dois filmes de grande visibilidade. Mas são as letras e a música – sem deixar de lado estilo e atitude – que fizeram do legado do rapper algo inquestionável. “Entre os MCs com quem trabalhei, talvez ele seja o cara que chegou mais longe, no sentido de onde um MC pode chegar”, conta Daniel Ganjaman, produtor de Rap é Compromisso e de discos dos Racionais, Criolo, Emicida, Helião, entre outros. “Mas foi tudo rápido, não dava pra dar conta direito na época.”

Em parte, Sabotage já tinha consciência de sua originalidade, como transparece, com misto de orgulho e humildade, em entrevista dada pouco antes de morrer. Sobre seu estilo de rima, ele diz: “Os caras falam que é poesia gangster… Mas eu não me vejo poeta não. Mas os caras falam: ‘O Sabotage inventou um novo meio de rimar, é poesia gangster’”.

Um bom Lugar
A sofisticação das letras e a capacidade de captar com rapidez o contexto social e musical para transformar em rima chamaram a atenção dos que conviviam com Maurinho, como era conhecido, desde cedo. Mas se tornar famoso era sonho distante. A realidade era correr atrás de dinheiro para colocar comida na mesa dos filhos e, para isso, o caminho trilhado foi o envolvimento com o tráfico de drogas na Favela do Canão (Brooklin, zona sul de São Paulo).

O próprio Sabotage resumiria, mais tarde, o universo de onde saiu: “O livro que eu li foi o livro de um cara puxando carroça, que é meu pai. Uma senhora que trabalhou dez, 15 anos num ambulatório, morreu e não teve nada, não deixou nada. Foi a minha mãe. Fui aprendendo a lidar com a vida pela vida mesmo, não foi no colégio. Quando eu entrei na escola, eu já sabia até demais”. A frase se tornou epígrafe da biografia Um Bom Lugar (Editora LiteraRua), de Toni C., primeiro grande lançamento de 2013 sobre o cantor. O documentário e o CD saem nos próximos meses.

A história de Toni com Sabotage começou com um infeliz acaso, que o impediu de conhecer seu biografado. O escritor estava em Porto Alegre, em 24 de janeiro de 2003, esperando o rapper chegar à cidade para participar do Fórum Social Mundial. Horas antes, Sabotage foi baleado a caminho do aeroporto, deixando, aos 29 anos, mulher e três filhos. O livro, autorizado pela família, mostra com cuidadosa contextualização a relação do rapper com o mundo do crime e das drogas, sem se esquivar do envolvimento que teve, mas tentando entender as complexidades da vida do cantor. “A gente está tratando de um artista negro, favelado, desdentado, que sorria, que é uma síntese do povo brasileiro, com suas contradições, dificuldades, jeitinho. Às vezes, também com certo desespero”, diz o autor. O livro também mostra como, em 1999, ao se aproximar de Sandrão e Helião (membros do grupo RZO), além de Rappin Hood, Posse Mente Zulu e outros nomes já consolidados na época, Sabotage começou a mudar de vida. Os primeiros cachês em shows mostraram que o rap podia ser sustento, não apenas hobby; o tráfico e o crime não saíram totalmente do caminho, mas, a partir daí, a música virou primeiro plano.

No cinema – Cartaz do documentário

Maestro do Canão
É principalmente sobre música, justamente, que falam os depoentes do documentário Maestro do Canão, dirigido por Ivan 13P, com previsão de lançamento para dezembro, e que promete trazer imagens inéditas de Sabotage. No filme, Mano Brown, Thaide, Paulo Miklos, Ganjaman, Babenco, Brant e outros falam da trajetória de Maurinho (no rap e no cinema) e de como era o cantor no dia a dia. “Ele começou a colocar músicas para eu ouvir. E eu vi que ele ouvia música melhor do que as que eu ouvia. Música brasileira da melhor qualidade”, conta Brown no filme. No depoimento ao Showlivre em 2003, Sabotage explicou que música era essa: “Rima é você tumultuar com palavras. É melhor fazer na prática do que na teoria. Tem de escutar bastante música. Por exemplo, eu rimo um rap, mas escuto bastante bossa-nova, Chico Buarque, muito Cazuza também, Caetano Veloso. Eu gosto de pegar uma bossa-nova antiga e renovar ela num trabalho de reciclagem. Tá entendendo? Você escuta um Eminem, um Jay-Z lá de fora, um Nely, e escuta um Chico aqui, um Pixinguinha. É coisa de louco, meu. Você tem que juntar uma coisa com a outra e saber que a cultura, aqui, é nossa”.

Reprodução
Momentos – Cena do filme Carandiru, de Hector Babenco, em que o rapper contracena com Rita Cadillac

Talvez por esse perfil eclético, Sabo­tage conquistou o respeito de músicos de estilos variados. O titã Paulo Miklos, que interpreta o matador Anísio em O Invasor (2001), diz que o sucesso de seu personagem no filme se deve em grande parte à ajuda de Sabotage, que o orientou no vocabulário e nas atitudes para atuar. “Ele tinha um arsenal pra gente mexer no texto original, nas minhas falas. Como todo grande poeta, tinha uma coleção infindável na memória de termos, expressões. Coisa de um ouvido atento, que vai coletando as informações, para depois utilizar nas canções”, conta Miklos. Tanto que, em Carandiru (2003), além de atuar o rapper se tornou também um tipo de consultor de Babenco, ajudando a dar veracidade aos personagens da prisão.

Novo CD, nova geração
Foi com esse arsenal de palavras que Sabotage compôs e gravou, em 2002, o que, para muitos, são suas músicas mais sofisticadas. Em parceria com o Coletivo Instituto – grupo comandado pelos produtores Ganjaman, Rica Amabis e Tejo Damasceno –, deixou pérolas como Dama Tereza e Mun-Rá, que misturam hip-hop e samba. “Em estúdio, a gente conseguiu experimentar muita coisa envolvendo a linguagem do rap, mas ao mesmo tempo passando por outros estilos. Ele não foi o primeiro cara a misturar samba com rap, mas foi um dos caras que fizeram isso com mais identidade, personalidade”, afirma Ganjaman. O produtor, junto a outros que trabalharam com Sabotage, pretende lançar ainda este ano um álbum que há muito tempo é aguardado no mundo do rap, com músicas originais deixadas “aqui e ali” por Sabotage. “Ele sempre deixava alguma coisa gravada por onde passava”, diz Ganjaman.

Com álbum novo, documentário e livro que destrincham pela primeira vez em detalhes a vida do mito do rap nacional, o legado de Sabotage se torna maior ainda maior dez anos após a sua morte. “Está apenas começando. Dez anos é pouco”, vislumbra Toni C.. Referência para músicos da nova geração – como Criolo, Kamal, Rashid, Emicida e Projota –, Sabotage deixa um vazio ainda sentido. “Eu me lembro do dia da morte. A cultura inteira se retraiu. O nosso maior artista caiu. Ele virou uma lenda, mas a gente precisava dele aqui”, declarou certa vez Emicida. Considerado um músico tão revolucionário e à frente de seu tempo, ninguém pode dizer o que Sabotage estaria criando se estivesse vivo. O que se sabe, ao certo, é que em sua passagem meteórica pelo rap, o pouco que deixou foi muito.

UMA VOZ QUE RESSOA NO RAP

Ênio Cesar

Da nova geração do rap – entre tantos jovens que beberam na fonte de Sabotage –, Emicida, 28, é um dos nomes que mais se destacou nos últimos anos. Primeiro nas batalhas de improvisação (freestyle), das quais participou a partir de 2005 e onde ganhou seu nome artístico – “homicida de MCs” – Emicida. Depois, ao lançar EPs, mixtapes, singles e videoclipes que receberam cada vez mais destaque dentro e até mesmo fora do País. Nos últimos dois anos, o rapper ganhou prêmios na MTV, cantou ao lado de Mano Brown, Caetano Veloso e tantos outros, e fez uma série de apresentações em alguns dos maiores festivais de música do mundo, como SWU, Rock in Rio e Coachella.
Isso tudo antes mesmo de lançar o seu primeiro álbum oficial, O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui, que acaba de sair pelo selo Laboratório Fantasma, do próprio Emicida. Mais maduro, com experiência na estrada e após um período em que “parou para ler, estudar e ouvir música direito”, como diz, o rapper entrou em estúdio com condições e tempo para preparar um CD com produção cuidadosa e cheio de participações. O rapper Rael, as cantoras Tulipa Ruiz, Pitty, Juçara Marçal e Fabiana Cozza, além do Quinteto em Branco e Preto marcam presença em parte das 14 faixas do disco. O mestre Wilson das Neves, por sua vez, canta Trepadeira com Emicida, música que gerou polêmica nas redes sociais por ser considerada machista.
Apesar de momentos mais leves, o álbum mostra sonoridade pesada na maior parte do tempo, dialogando com ritmos que vão do rock ao samba. A crítica social soa mais sutil do que em trabalhos anteriores – em 2012, Emicida foi preso em Belo Horizonte acusado de desacato à autoridade ao cantar Dedo na Ferida –, mas nunca desaparece. Agora famoso e incensado, ele não abandona a periferia, de onde veio: “O Zé povinho só pode falar/Mas o mundo todo pode ver/Onde estiver, onde pisar/Nóis sempre vai ser gueto”.


Comentários

3 respostas para “A criação do mito”

  1. Unico que mantem a função é MC marechal

  2. Salve Sabota, deixou saudades

  3. Desde quando Rashid, Emicida e Projota é a nova geração do rap? As músicas desses caras aí são ridiculas, sem sentido, porém não nego Emicida faz uma rima na hora que é de se invejar!

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