A descoberta do Brasil por Eugénia Melo e Castro

Eugénia Melo e Castro lançou 23 discos em Portugal, número que será igualado no Brasil com a chegada às lojas de nada menos do que cinco CDs de uma só vez. São eles Canta Vinicius de Moraes (1994), Eugénia Melo e Castro – Duetos (2000) e Desconstrução (2005), em que a música brasileira domina, além de Paz (2002) e PoPortugal (2008), que refletem sua atual fase. Dividindo-se entre Lisboa e São Paulo, onde grava e tem seus músicos, Eugénia é uma espécie de embaixadora flex Portugal-Brasil Brasil-Portugal, intercambiando o que esses países têm de melhor. Filha de um poeta concreto e engenheiro têxtil e de uma escritora de livros infantis, Ernesto e Maria Alberta, e mãe de Ana Mariana, artista plástica que vive em Bruxelas, Eugénia vive só, por opção, e seu sucesso esconde uma vida de conquistas e superações às quais raramente se refere como fez nesta conversa com Brasileiros.

Predestinada, Maria Eugénia Menéres de Melo e Castro nasceu no dia 6 de junho de 1958, pouco depois de João Gilberto colocar violão em “Chega de Saudade” para Elizeth Cardoso cantar e pouco antes de o baiano gravar a sua própria versão para a canção de Tom Jobim e Newton Mendonça, inaugurando a bossa nova. Só que bem longe do Rio de Janeiro. Nasceu na fria Covilhã, Serra da Estrela, a 300 quilômetros de Lisboa, uma estação de esqui próxima de Belmonte, onde Pedro Álvares Cabral nasceu. Eugénia também descobriria o Brasil. À sua maneira. Quando visitou o País pela primeira vez, em 1981, sentiu-se em casa. O primeiro disco que seu pai lhe deu, aos 8 anos, foi A Banda, de Chico Buarque, e estava acostumadíssima com o jeito de falar dos brasucas, que aprendeu lendo revistas em quadrinhos, fotonovelas e pequenos romances editados aqui e lançados em Portugal sem quaisquer modificações.
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Uma rápida consulta nas fichas técnicas dos discos de Eugénia revela uma espécie de “quem é quem” na música brasileira. Dos grandes nomes (ver quadro nas págs. 40 e 41) aos músicos de estúdio. E Eugénia se orgulha de ter conseguido esse feito com a cara e a coragem. “Eu não fiz um disquinho lá e depois vim aqui mostrar o que tinha feito, comecei logo com a parceria brasileira”, diz ela, que, a bem da verdade, gravou sim uma demo (disco/fita de demonstração) que só chegaria aos ouvidos do público em 2001 – curiosamente Eugénia batizou a tal demo de Recomeço. Foi essa demo que levou à casa de Wagner Tiso, no Rio, a quem pediu que fizesse os arranjos daquele que seria seu primeiro disco, Terra de Mel, em troca das passagens para Lisboa. O músico se hospedaria na residência de Eugénia, um casarão de nove quartos situado na Rua da Escola Politénica, durante décadas uma open house lotada de brasileiros em trânsito, endereço que mantém até hoje.

Um desses hóspedes foi o gaúcho Kleiton, então perdido na Europa após a dissolução de seu conjunto Almôndegas, às vésperas de voltar ao Brasil e formar uma dupla com seu irmão Kledir. Eugénia levaria seis meses para dispor de tempo no estúdio para colocar a voz nas suas parcerias com Kleiton e com o músico brasileiro Yório Gonçalves, então radicado em Portugal. Lançado em 1982 pela Polygram portuguesa, Terra de Mel foi disco de ouro em uma semana e de platina em um mês, para surpresa geral. Logo depois, lá estava Eugeninha novamente no Rio implorando para Roberto Menescal, então diretor artístico da Polygram brasileira, lançar o seu disco aqui. Diante da insistência da portuguesa – que ameaçou acampar na porta da gravadora -, Menescal concordou, para “ver-se livre dela”. “Nunca mais se livraram de mim e, passados três meses, já estava gravando meu segundo disco com parcerias de Caetano”, orgulha-se a cantora.

O disco Águas de Todo o Ano (1983), cujo nome foi tirado de uma cidadezinha portuguesa onde chove todos os dias, trazia parcerias também com Vinícius Cantuária, Novelli e Tunai, além de “A Dança da Lua”, de Ronaldo Bastos e Túlio Mourão, cantada com Ney Matogrosso, o maior sucesso comercial de Eugénia, seu cartão de visitas e até hoje cantada em shows. Até então, diz Eugénia, “eu era uma fofinha em Portugal, a glória, a melhor cantora, todos os prêmios, os Globos de Ouro”. A partir do terceiro disco, Eugénia Melo e Castro III (1986), que considera o primeiro bem gravado e bem produzido, por Guto Graça Melo, virou maldita. O problema, avalia, foi ter insistido com o Brasil. Foi destruída. Insinuaram que só conseguia tantas estrelas para seus discos porque tinha casos com elas. Durante um tempo, tudo o que acontecia de errado com brasileiros em Portugal, até mesmo a invasão dos dentistas, era “culpa da Eugénia e seus amiguinhos”. O bombardeio foi tanto que Eugénia sucumbiu. Como é seu costume, somatizou e ganhou uns três ou quatro tumores colados na tireóide que, quando foi tirada, levou junto uma corda vocal. Ficou quase oito meses sem falar, se comunicando com a ajuda de papel e caneta. Quando recuperou a voz, tinha como certo que nunca mais poderia cantar. Pois reaprendeu a falar e a cantar, fez enxerto de corda vocal em Chicago e mais um ano de tratamento. Conseguiu se levantar. Dezoito meses depois de Eugénia III, saía Coração Imprevisto, um disco apenas de voz e piano. Pouca gente sabe, mas aquela não era a primeira vez que Eugénia se reerguia.

A infância em Covilhã, povoada por Tio Patinhas, Pato Donald, Pateta, seu herói Peninha falando com sotaque brasileiro, foi interrompida pela doença. Aos 16 anos, Eugénia teve de ir para Londres tratar de uma leucemia no sistema linfático. Ficou dois anos internada no Royal Marsden Hospital, em Fullham Road, onde tinha de se enfiar diariamente por três horas dentro de um aparelho de tomografia axial computadorizada (TAC), um dos primeiros do mundo. Para pagar o tratamento, os pais venderam tudo o que tinham (a família era dona dos lanifícios de Covilhã) e ainda tiveram de enfrentar a ressaca do 25 de abril, levante militar de 1974 que derrubou, em um só dia, o regime fascista que vigorava em Portugal desde 1926. Não se podia tirar dinheiro do país. A única companhia de Eugénia era Alberta, a irmã mais velha, já casada na época, que alugou um apartamento ao lado do hospital. Era Alberta quem levava as fitas cassetes com músicas de Milton, Caetano, Chico, Elis, Gal, Tom, Gil, João Giberto e Nara Leão. Perdida, desenganada, tomada por tumores em todos os lados, a garota se agarrou à música brasileira. Não podia morrer, dizia, “porque não vou mais ouvir as músicas novas que ainda não foram compostas”. Essa era sua maior aflição. Internada em um quarto com duas camas, a segunda quase sempre ocupada por árabes, Eugénia era a queridinha do hospital. Organizava corridas de cadeira de rodas, aprendeu a falar inglês e, no finalzinho, ainda teve tempo de estudar fotografia e cinema na London Film School. Assim, aprendeu a viver sozinha e a tomar decisões – a principal foi se recusar a tirar o útero. Quando saiu do hospital, queria ter um filho. Aliás, uma filha. E cantar. Foi nessa época que decidiu: “faço primeiro e depois comunico”.

Quando chegou a Lisboa, com 18 anos, passou a se infiltrar em tudo o que se referia ao meio musical, artístico. Conhecia todo mundo. Chico Buarque ia cantar em Portugal? Lá estava Eugénia envolvida na produção, no camarim. Enxerida, cantava, fazia coro em discos e shows de artistas portugueses. Imaginava-se cantando com o português de Portugal no Brasil. Nunca se imaginou brasileira. “Sou portuga e quero trabalhar com ‘eles’”, repetia. Deixou de tomar a pílula feita especialmente pelos médicos ingleses, teve Ana Mariana e no dia em que seu marido a proibiu de cantar, enciumado com os shows e tudo mais, colocou uma tranca na porta e se divorciou. Chegou a viver quatro anos com Ronaldo Bastos, mas nunca mais se casou. Alega que, sempre que percebe que sua carreira vai ficar em segundo plano, entra em pânico. “Todos os homens que tentaram me segurar não conseguiram”, afirma, completando, meio sem graça, “e eu não falo isso com muito orgulho. É pena”.

Foi essa menina endurecida que desembarcou no Rio de Janeiro no dia 6 de janeiro de 1981. E que prosseguiu em sua luta fazendo sempre o que quis. Coração Imprevisto, o disco de voz e piano em cuja capa aparece deitada olhando para o teto, que é o que fazia em Londres e o que faz até hoje para relaxar, foi seguido por O Amor É Cego e Vê (1990) e Lisboa Dentro de Mim (1993), cheio de músicas antigas do cancioneiro português dos anos 1950 e 1960. Nada de fado. Eugénia jamais almejou ser fadista. Para ela o fado é uma canção regional de Lisboa que se tornou conhecida por causa de Amália Rodrigues. Segundo ela, a 15 quilômetros da capital ninguém canta fado, embora exista o fado estudantil de Coimbra, cantado por homens, e o fado marialva, de Ribatejo, muito machista, em que a mulher está sempre em segundo lugar. Fado não é alegre, no máximo tem humor. Como são viajantes, os portugueses são melancólicos, embora tenham um lado alegre. Um português parado é um português triste. Um português em movimento é um português alegre. Por isso há quem diga que os “brasileiros são portugueses à solta”.

Entre os discos que estão sendo lançados figura o Canta Vinicius de Moraes. Eugénia havia prometido a João Araújo, da Som Livre, que lançaria, em Portugal, um disco de sambinhas do poeta. Na verdade, já havia escolhido as letras que Vinicius escreveu em um português coloquial, mais comum em Portugal, “porque tu me disseste, porque tu me chegaste”. De fato, o filho do “Poetinha”, Pedro Moraes, disse que um dos sonhos do pai era ouvir essas canções cantadas por uma portuguesa que não fosse fadista. O CD Paz marca a estréia de Eugénia compositora de melodias, Desconstrução é um CD duplo que traz composições de Chico Buarque devidamente “eugeneizadas” e PoPortugal traz regravações de sucessos recentes. São músicas de Tozé Brito, GNR, Pedro Ayres Magalhães, do grupo Heróis do Mar, Pedro Abrunhosa, Clã, Jáfumega, Antonio Pinho, Nuno Rodrigues e Pilar. O equivalente no Brasil seria um CD com músicas de Cazuza, Titãs, Paralamas, Marina etc. Anos 1980 em Portugal “pós-25 de abril”. Segundo Eugénia, o trabalho foi muito bem recebido. O que não significa que tenha feito as pazes com Portugal. Ainda prefere ser vista como maldita.

À vontade, agora dividindo a responsabilidade musical com o paulistano Eduardo Queiroz e sendo acompanhada por músicos brasileiros, Eugénia tem três projetos. Um disco em inglês, a ser gravado em Nova York; um disco de canções infantis acoplado a um best-seller de sua mãe, Conversando com Versos; e um projeto secreto, que envolveria essas quase três décadas de relacionamento Brasil-Portugal. Sua maior força vem da família, que, segundo seu pai, é “o triângulo imbatível e o quadrilátero impossível”, dada a união entre Eugénia, a mãe, a irmã e a filha. Deixando um flat inflacionado por um apartamento tranqüilo em Higienópolis, ela filosofa: “Agora que cheguei aos 50 anos, agora que percebi que não vou morrer antes da terceira idade, vou ter de agüentar. Envelhecer em Portugal é um desespero, é frio. Se puder optar pelo meu fim, quero me ver perdida aí em uma praia, rindo agarrada a uma garrafa de vinho tinto, com bom tempo, Havaianas nos pés, um short e tal”. Na certa, esperando pelas músicas que ainda não foram compostas.


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