Quando me deparei pela primeira vez com uma cama feita por Arlinda, hesitei alguns segundos, como se tivesse entrado num quarto desconhecido: a dobra perfeita do lençol, as fronhas passadas, os travesseiros fofos, a colcha impecavelmente esticada fizeram-me sentir num hotel. A partir daí ela me surpreendeu com infinitas habilidades: transformar roupas velhas em novas, lavar cashmere, roupas brancas e seda pura, tirar manchas de vinho das toalhas de mesa e de batom dos guardanapos, recuperar o brilho das panelas, ressuscitar samambaias, empilhar toalhas de banho em rolinhos compactos, removíveis sem derrubar a pilha inteira.

Ela adora cuidar de plantas e promove um intenso tráfego de mudas entre a sua casa e a dos patrões. “A primeira vez que a vi, ela carregava duas sacolas pesadíssimas e um antúrio para mim”, diz Andrea, mulher de Macau e mãe de Tom, sua patroa às sextas-feiras. A lista de suas técnicas, que inclui chás curativos e produtos caseiros de limpeza, é inesgotável. Mas o talento mais espantoso é a naturalidade com que instaura a ordem e a harmonia, como se tivesse vivido sempre num palácio, cercada de requinte. E não foi assim.
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Arlinda viu um elevador pela primeira vez aos 14 anos, quando desembarcou em São Paulo, vinda de Vitória da Conquista, na Bahia. Até então, não conhecia vassoura ou rodo: varria com um maço de folhas de coqueiro o chão da casa de dona Dinalva, para quem foi trabalhar aos 9 anos. Aos 16, em São Paulo, convidada para ir a um batizado, calçou o primeiro par de sapatos fechados. Para se acostumar ao desconforto que causavam, dormiu com eles nos pés. Jamais freqüentou uma escola.

Aos 53 anos, está no auge de sua carreira. Além dos cinco fregueses que a ocupam seis dias por semana, tem pelo menos outros quatro em lista de espera. Mas, a menos que alguém mude de cidade, como aconteceu temporariamente com uma certa Sarita, produtora de moda, que foi para Buenos Aires e deixou livre o dia que hoje me cabe, ninguém abre mão de seus serviços. Quando um casal se separa, acerta-se logo que ela trabalhará para os dois ex-cônjuges.

O núcleo de sua clientela atual, que se formou nos últimos oito anos, é marcadamente fashion: compõe-se de uma estilista e produtora de moda, Thaís Mol, que era casada com um diretor de televisão ligado à MTV, Macau, que se casou com a jornalista Andrea. Thaís foi dividir um apartamento com o diretor de arte Paulo Cabral, que depois se mudou para outro endereço, mas continua a amar Arlinda, que ama todos. Ela já havia trabalhado, antes deles, para muitos patrões, como Beto Lago, do Mercado Mundo Mix, e para o estilista Alexandre Herchcovitch (que mandava roupas incríveis para as filhas dela).

Precisou deixá-los quando se mudaram para endereços fora de mão. Já trabalhara também em meia dúzia de casas de família, numa lavanderia e numa limpadora. Estava arrumando a casa de uma freguesa que fornecia mão-de-obra para produção de fotos e filmagens, quando Thaís telefonou para encomendar uma camareira. Ela, mais que depressa, se escalou, e nunca mais se largaram.

Vi Arlinda pela primeira vez num ponto de ônibus em frente ao Cemitério da Consolação, onde combinamos de nos encontrar. Demorei a localizá-la e a chuva a alcançou primeiro. Estava encharcada, entrou no carro sorrindo e, típico de Arlinda, pediu desculpas, como se ela tivesse me causado algum incômodo, e não o contrário. Nesse primeiro dia, há quatro anos, e durante muito tempo ainda, ela se comportaria assim: aflitivamente cerimoniosa, pedindo licença para abrir cada armário, cada gaveta. Os cabelos baços presos na nuca, o rosto ensombrecido por manchas escuras em torno dos olhos, a sacola de onde tira uma muda de roupa para trabalhar – tudo em sua figura indica que é uma empregada doméstica brasileira.

Não bastasse chamar-se Arlinda Rocha e Silva, quase uma alegoria ao astral gentil, à resistência e à condição de cidadã comum, ela representa fielmente a categoria, constituída por 6,8 milhões de trabalhadores, dos quais 94,3% são mulheres, 61,8% são pretos e pardos, 75% não têm carteira assinada e 62% não concluíram o ensino fundamental.

Quase 20% das mulheres que trabalham nas metrópoles são empregadas domésticas. No Brasil, é a mais mal paga de todas as profissões – elas recebem cerca de 35% da remuneração média nos demais setores. Em São Paulo, 23,8% delas são, como Arlinda, diaristas. Por cuidarem cada dia de uma casa, não têm vínculo empregatício. Tecnicamente, são autônomas, e não podem usufruir dos direitos que a Constituição garante à categoria: salário mínimo, repouso semanal, férias remuneradas, contribuição para a previdência social.

Há quem acredite que as empregadas domésticas ganham mal porque não sabem fazer nada – e até recentemente, para efeito de estatísticas econômicas, “nada” e “afazeres domésticos” eram sinônimos. Donas-de-casa apareciam nos questionários junto com os inativos: estudantes, inválidos, aposentados e beneficiários de rendas. Foi necessário que o acúmulo de trabalhos acadêmicos se somasse à pressão dos movimentos de mulheres para que tarefas como lavar, passar, cozinhar, cuidar de crianças, de jardins e de animais, quando realizadas por donas-de-casa, aparecessem nas pesquisas como “trabalho não remunerado”. E isso só começou em 2002.

Deve levar muito tempo até que se perceba que, além de um esforço, essas tarefas, que milhões de mulheres desempenham dentro e fora de casa, para ganhar a vida, envolvem muitos saberes, alguns deles raros e delicados. Isso parece óbvio quando se olha Arlinda.

Com o que ganha também às segundas-feiras, lavando em casa a roupa de outros dois fregueses, Arlinda levanta algo em torno de R$ 1.400 por mês, o que a coloca na prateleira das diaristas que ganham mais de três salários mínimos (0,9%). Vive com dois dos seis filhos na casa de sala, cozinha e dois quartos que ela mesma construiu, ao longo de 30 anos, no Jardim Santo Eduardo, bairro de Embu das Artes, município próximo à zona Sul de São Paulo. Chega-se a ela descendo os degraus que levam ao terreno, abaixo do nível da rua.

Sobre a laje, outro filho fez a casa onde mora com a família. Um riacho malcheiroso que passa pelos fundos do terreno causa inundações eventuais e constrangimento permanente a uma mulher que se orgulha de perfumar as casas alheias. Fica a cerca de duas horas de viagem dos lugares em que trabalha e aonde chega tomando ora dois, ora três, ora quatro ônibus.

Ao saber que ia ser tema de uma reportagem, chorou. Pela primeira vez em quatro anos, ela se sentou na sala, em minha casa, em Higienópolis, e contou sua história. Visitei-a em diversos endereços por onde circula – uma quarta-feira, mostrou-me como arruma em vasos as flores que Thaís deixa num balde, em seu pátio com banheira de ofurô, numa vila dos Jardins. Numa quinta-feira, recebeu-me diante dos janelões modernistas do Edifício Copan, um dos postais de São Paulo, entre cartazes e telas a óleo pintadas pelo dono da casa, Paulo.

Numa manhã de sábado, fui encontrá-la na loja de Thaís na Galeria Ouro Fino, centro da moda clubber na Rua Augusta. Vi-a através da vitrine, entre as araras de peças coloridas e, não por acaso, bem passadas. Em vez da camiseta de cor indefinível dos outros dias, vestia uma blusa de tons alegres e sandálias de plástico.

Carregava a bolsa a tiracolo que comprei em Veneza, há 15 anos, sua sacola de roupas e um volumoso saco de lixo para deixar no térreo, ao sair. Com segurança e cerimônia, guiou-me na viagem de ônibus até o Jardim Santo Eduardo, uma extensão infinita de lajes, grades, pichações e antenas de TV. Ligou no dia seguinte para saber se eu tinha chegado bem.


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