A dignidade exemplar de Mario Lago

Quem é o brasileiro Mário Lago (1911-2002)? Talvez quem tem menos de 25 anos não se lembre dele. Trata-se daquele senhor magro e alto, de cabelos branquinhos e óculos de graus que tantas novelas fez na Rede Globo ao longo de quase 40 anos. Foram dezenas de papéis, entre pequenos e importantes em novelas – “Selva de Pedra” (1972), “O Casarão” (1976), “O Salvador da Pátria” (1989), “Barriga de Aluguel” (1991), “O Clone” (2001) e outras – e minisséries – “Grande Sertão: Veredas” (1985) e “Hilda Furacão” (1995). Ele é, por exemplo, o elegante cliente que ensina Hilda Furacão (Ana Paula Arósio) a entender a magia que é para a existência masculina a arte de uma mulher se despir e o quanto isso significa numa relação.

Morto em maio de 2002, aos 91 anos, ainda trabalhando, Lago foi um nome importantíssimo na cultura brasileira cuja trajetória ampla foi muito além da teledramaturgia. Escritor memorialista de mão cheia, autor de livros indispensáveis que contam a história da música popular brasileira na primeira metade do século XX, escreveu também obras de contos e poesia e algumas das canções mais importantes do Carnaval brasileiro de todos os tempos. Como a marchinha Aurora (“Se você fosse sincera, ô, ô, ô, Aurora, veja só que bem que era…”), os sambas “Ai, Que Saudades da Amélia” e “Atire a Primeira Pedra”, ambos em parceria com Ataulfo Alves. A primeira, mal interpretada, foi acusada de machista pelas feministas. Também compôs “Nada Além” que, assim como “Aurora”, foi imortalizada na voz de Orlando Silva.

E é a história desse fascinante personagem, que militou pelo Partido Comunista Brasileiro até o fim da vida, o tema do imperdível e indispensável documentário “Mário Lago”, dos diretores Marco Abujamra – responsável pelo premiado documentário “Jards Macalé – Um Morcego na Porta Principal” – e Markão Oliveira, que será apresentado nesta quarta, dia 23, às 20 horas, no Espaço Itaú de Cinema, na Rua Augusta, como parte da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O filme tem méritos que vão da meticulosa pesquisa histórica, com imagens antigas de Lago em novelas da Rede Globo a áudios originais de programas radiofônicos da década de 1950, que ele apresentava e até escrevia – como “Presídio de Mulheres”, líder de audiência em seu horário. Outro destaque: as Andrews Sisters cantando “Aurora” com Abbott e Costello no filme “Hold That Ghost”, de 1941.

Somam-se a isso depoimentos reveladores dos seus três filhos e de amigos – todos eles com histórias emocionantes para contar – como Sergio Cabral, Gracindo Junior, Bete Mendes, Lima Duarte, Tony Ramos, Lenine e Nelson Sargento, entre outros. Sem excessos ou passional demais, “Mario Lago” é um relato comovente de um homem que viveu ou testemunhou a maioria dos acontecimentos mais importantes do século XX. Ele conheceu e conviveu com todos os grandes nomes da música popular brasileira entre as décadas de 1930 e 1960. Não se dava bem, por exemplo, com Noel Rosa (1910-1937), porque tomou uma de suas namoradas. Algumas entrevistas preciosas com o próprio artista feitas nas décadas de 1970 e 1980 intercalam a narrativa e lhe dão um sentido mais completo.

Um dos filhos recorda a emocionante história que se seguiu à prisão de Lago, após o golpe militar de abril de 1964. Por ser membro do partido comunista, foi demitido da Rádio Nacional, onde trabalhava havia 17 anos.  Ao sair da cadeia, entrou na “lista negra” da ditadura e Dercy Gonçalves, quando soube que estava sem trabalho, chamou-o para participar de um espetáculo. “O melhor cachê é para o Mário” recomendou Dercy. Mas, Mário ficou cabreiro com o “estilo de teatro” de Dercy, e foi conversar com a atriz. Ela rapidamente retrucou: “Mário, o mais importante é o leite das crianças”. E assim ele foi fazer telenovelas na Globo, que lhe custou críticas ferrenhas de colegas da esquerda.

Um dos pontos altos do filme, aliás, é a sua militância política. Entre 1932 e 1969, Lago foi preso sete meses, duas delas em 1969. Um dos depoimentos é do modesto pedreiro Pedro, preso por engano e, portanto, injustamente acusado de ser comunista. Na prisão, ao invés de se preocupar com a sua situação, o compositor ficou o tempo todo tentando consolá-lo, pois chorava muito. Produzido pela Dona Rosa Filmes, “Mario Lago” conta com o patrocínio da Light e da TV Globo. O filme apresenta ainda versões de poesias de Lago musicadas por Lenine e Arnaldo Antunes e permite compreender a frase de Mário Lago: “Fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo: Nem ele me persegue, nem eu fujo dele, um dia a gente se encontra”. 


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