A ditadura que volta a falar pela dor

A Ilda, viúva do Virgílio Gomes da Silva.

Em 1986, um ano depois do fim da ditadura militar brasileira, quando falar em torturadores e assassinos do regime era algo politicamente incorreto – pois poderia haver uma virada de mesa e eles retomarem ao poder –, uma crônica brilhante de Luiz Fernando Veríssimo comparava o modo como brasileiros e argentinos tratavam do tema. Lá, berrava-se nas praças. Aqui, não se mexia em vespeiro. Em “Como na Argentina”, ele escreveu: “Não é fácil eliminar um corpo. Uma vida é fácil. Uma vida é cada vez mais fácil. Mas fica o corpo, como lixo. Um dos problemas desta civilização: o que fazer com o próprio lixo. As carcaças de automóveis, as latas de cerveja, os restos de matanças. O corpo bóia. O corpo vai dar na praia. O corpo brota da terra, como na Argentina. O que fazer com ele? O corpo é como lixo atômico. Fica vivo. O corpo é como plástico. Não desintegra. A carne apodrece, ficam os ossos. Forno crematório não resolve. Ficam os dentes, ficam as cinzas. Fica a memória. Ficam os parentes. Ficam as mães. Como na Argentina.” 

No Brasil, pensou-se que seria diferente e tudo ficaria no passado. Era preciso anistiar a dor e a crueldade que se rivalizavam. O trauma e o medo de uma revanche, de uma nova ditadura, tudo isso tornou o país aos olhos do mundo uma nação de covardes em que os criminosos gozam de suas gordas aposentadorias sem responder pelos seus atos ou ao menos responder às famílias onde estão os corpos. Os corpos existem. Estão em algum lugar. Em forma de ossadas, de uma falange ou falangeta. Não por acaso, portanto, foi preciso esperar 34 anos entre o assassinato do jornalista Wladimir Herzog, sob tortura, em 1975, e uma ação do governo no sentido de ao menos se saber o destino das vítimas de tortura. No meio do caminho, tentou-se reparar tudo com indenizações e pensões. Mas, como na Argentina, os corpos vivem na lembrança. Em 16 de maio do ano passado, finalmente, foi instalada oficialmente pela Presidente Dilma Rousseff a Comissão Nacional da Verdade, criada para investigar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil por agentes do estado. Por que 1946 se nos sete anos anteriores o país viveu outra ditadura, assassina e torturadora?

Composto de sete membros nomeados pela presidente e catorze auxiliares, o grupo deverá, ao longo de dois anos, preparar um relatório dos principais achados, que poderá ser público ou poderá ser enviado apenas para o presidente da república ou o ministro da defesa. Pode ser o começo, mas é preciso muito mais. É o que se conclui ao ver o imperdível documentário “Verdade 12.528”, de Paula Sacchetta e Peu Robles, cujo nome se relaciona exatamente à lei que criou a Comissão Nacional da Verdade. Anunciado como uma contribuição no sentido de aprofundar o debate, o filme comove do início ao fim ao contar história de parentes que esperam há mais de quatro décadas notícias sobre o paradeiro de seus parentes desaparecidos. Há passagens fortes com descrições dos métodos de tortura – uma abordagem que poderia ser ampliada numa versão estendida em DVD para dimensionar o sofrimento que a tortura impõe. “O objetivo é resgatar e reconstruir a memória, explicar como funciona a Comissão Nacional da Verdade e mostrar sua importância hoje através de histórias que ainda precisam ser contadas”, afirma Paula.  Ao final, todos os entrevistados fazem as perguntas que gostariam de ter respondidas pela comissão.

O filme é uma forma inteligente de pressão no sentido de que a investigação seja apenas um passo inicial e que os culpados sejam julgados e punidos. De acordo com o texto da lei, a comissão tem poder de convocar vítimas ou acusados das violações para depoimentos, ainda que a convocação não tenha caráter obrigatório e também a ver todos os arquivos do poder público sobre o período. É um começo, mas não terá o poder de punir ou recomendar que acusados de violar direitos humanos sejam punidos, com a condenação que cabe a quem tortura e mata. A comissão deverá colaborar com as instâncias do poder público para a apuração de violação de direitos humanos, além de enviar aos órgãos públicos competentes dados que possam auxiliar na identificação de restos mortais de desaparecidos. Por outro lado, poderá identificar os locais, estruturas, instituições e circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos e também eventuais ramificações na sociedade e nos aparelhos estatais.

Paula Sacchetta e Peu Robles fazem parte do grupo Frente de Esculacho Popular, criado para denunciar publicamente e fazer pressão contra torturadores da ditadura militar por meio de uma série de medidas de exposição de seu nome e suas atividades durante a ditadura, nas proximidades de suas residências. O tipo de manifestação é inspirada em ações similares feitas na Argentina e no Chile chamadas de Escracho. Seu slogan é “Não esquecemos, não perdoamos, não reconciliamos! Se não houver justiça, haverá esculacho popular!” Paula conta que o documentário começou a nascer numa das reuniões do grupo, quando se levantou a questão de que as pessoas não sabem exatamente o papel da Comissão da Verdade. Veio a idéia de um vídeo de cinco minutos, mas o som não ficou bom. Por meio do site Catarse, ela e Peu conseguiram captar R$ 20 mil de 152 pessoas para desenvolver e ampliar o vídeo. O dinheiro possibilitou a compra de equipamentos e viagem ao Araguaia para entrevistas – um dos pontos fortes do filme, que cresceu para 55 minutos. “Por um lado, melhorou o produto, por outro aumentou a responsabilidade”, observa ela. O custo final foi de cerca de R$ 50 mil e o resto do dinheiro veio dos próprios diretores, que também trabalharam sem remuneração.

O resultado vale a pena. “Verdade 12.528” é uma realização primorosa de garotos conscientes de seu papel como agentes transformadores, um filme tecnicamente impecável e um precioso documento da história do Brasil e um apelo contundente por justiça.


Comentários

Uma resposta para “A ditadura que volta a falar pela dor”

  1. filme muito importante, ótima matéria!

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