Abadiânia é duas. No meio do caminho entre Brasília e Goiânia, a cidade está dividida pela BR-060. Do lado esquerdo de quem vai de Brasília para a capital de Goiás, é uma típica cidade do interior. Com quase 16 mil habitantes registrados no último censo, Abadiânia tem uma avenida principal com duas pistas pavimentadas. Nas imediações, situam-se a Prefeitura, a Câmara de Vereadores, a Igreja Matriz, o comércio com duas dezenas de lojas e a única agência bancária da cidade. Nessa banda da cidade sem shopping center ou cinema, vive a maioria dos abadienses. Do lado direito da BR-060, espalha-se a Abadiânia que fala inglês e se veste de branco para entrar em sintonia com a espiritualidade. Em pleno cerrado goiano, uma rua de apenas 800 m é repleta de estabelecimentos com nomes exóticos, como Blessed Coiffeur, Stones Forever, Foreigner’s Café, Art Indígena, Body Healthy e Federal Express Assessoria Consular. Essa rua começa às margens da BR-060 e termina na Casa de Dom Inácio de Loyola, instituição que recebe uma média de dois mil visitantes por semana, 70% deles estrangeiros. Conhecida como Casa, é liderada pelo médium João Teixeira de Faria, o João de Deus, também chamado de João, seu João, João Curador e John of God.
João de Deus se declara católico, mas a sua suposta conexão com o mundo invisível e o seu poder de cura atraem pessoas de todo o mundo. Não por acaso, a pequena Abadiânia tem 52 hotéis e pousadas registrados. “Calculamos que existam pelo menos outras 20 pousadas ainda não regulamentadas. Além disso, muitos alugam casas e quartos para visitantes”, diz a secretária municipal de Turismo, Vânia de Almeida. O turismo movido pela fé marca o cotidiano do lado direito da BR-060. No lado esquerdo, não se encontra ninguém com trajes totalmente brancos ou falando idiomas estrangeiros. O sincretismo, porém, se manifesta todos os dias pela via econômica. Embora haja moradores contrários à atuação de João de Deus, o médium responde por metade da economia de Abadiânia. Cerca de 500 católicos, evangélicos, umbandistas e seguidores do Santo Daime prestam serviços, direta ou indiretamente, para a Casa. A Prefeitura, o outro grande empregador, conta com 500 funcionários.
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“Abadiânia tem sua origem e continuidade calcadas na fé, na religiosidade”, afirma o pesquisador e professor de História Adelson Oliveira. “A cidade nasceu em torno das rezas de dona Emerenciana, que era devota de Nossa Senhora da Abadia, e teve sua economia aquecida com a chegada de seu João Curador”. Emerenciana Gomes era moradora da vizinha Pirenópolis e mudou-se sozinha para a região desabitada em 1870, depois de ficar viúva. Levantou um rancho de pau-a-pique perto de um rego d’água e, ao lado, uma capelinha coberta de palha. Nela, colocou uma estampa de sua santa de devoção e começou a promover rezas. Com o passar do tempo, as rezas de dona Emerenciana passaram a atrair fiéis de lugares cada vez mais distantes, até se transformarem em romarias. “Em 1895, três fazendeiros doaram terras para a construção de um santuário para Nossa Senhora da Abadia”, lembra o pesquisador. “Algumas pessoas que vieram para as romarias acabaram ficando, formando um povoado. O primeiro comércio foi aberto em 1936. Vendia de agulha a caixão.”
Perseguição em Anápolis
Vinte anos depois, o antigo povoado virou município, mas não tinha para onde crescer, pois se localizava em uma depressão. Com o projeto do então presidente Juscelino Kubitschek de construir Brasília, surgiram planos de abrir horizontes e mudar a sede do município. Começaram as rixas. Os defensores da continuidade começaram a chamar de Veadolândia o lugar planejado para a nova sede, o cerrado aberto, onde caçadores costumavam abater veados. Os adeptos da mudança, por sua vez, passaram a chamar a sede antiga de Tatulândia, pois ficava em um buraco. A disputa envolveu até ameaças de morte mas, três anos depois da inauguração de Brasília, a sede do município acabou finalmente transferida para o cerrado aberto, no lado esquerdo da BR-060. O antigo povoado, conhecido como Abadiânia Velha, fica a 18 km e mantém suas características originais.
João de Deus chegou à cidade com o apoio de Hamilton Pereira, que havia sido eleito prefeito aos 26 anos, em 1977. Pouco tempo depois, Hamilton foi procurado por Decil de Sá Abreu, prefeito da vizinha Anápolis, uma das mais prósperas cidades do Centro-Oeste. “O Decil me procurou, perguntando se eu poderia acolher o João. Em Anápolis, ele sofria uma perseguição terrível, por parte dos médicos”, lembra Hamilton. “A vocação da cidade era agropecuária, mas as terras melhores ficavam em Abadiânia Velha. Como eu estava com muita vontade de fazer as coisas acontecerem, pensei logo em incrementar o setor de serviços.” Antes de dar o sinal verde para João de Deus, Hamilton conversou com um médico de Anápolis que tinha acabado de comprar uma fazenda em Abadiânia. Quebrada a resistência, ajudou a instalar o médium: “A primeira sede foi numa sorveteria. João teve de comprar todos os produtos para alugar o imóvel. Depois, não parou de crescer. Em 1992, doaram para ele parte do terreno onde hoje se encontra a Casa”.
A sede da Casa ocupa um terreno de 12 mil m2, sendo cerca de 2,5 mil m2 de área construída. Pintado de azul e branco, o complexo no qual João de Deus atende ao público é composto por um Salão Principal, pela Sala dos Médiuns, pela Sala das Entidades, pela Sala das Intervenções e por uma enfermaria com 11 leitos. O roteiro seguido pela maioria dos frequentadores da Casa é similar ao percorrido pelo biólogo londrino Tom Walsh, 32 anos. Em Abadiânia para uma temporada de dois meses, Walsh procurou João de Deus depois de os recursos da medicina se esgotarem para o seu caso. Há três anos, em férias na Córsega, no Mar Mediterrâneo, ele saiu tetraplégico de um mergulho em águas rasas: “Os médicos disseram que preciso esperar mais cinco, dez anos, para que surjam novas técnicas cirúrgicas”.
Quando soube da existência de João de Deus, por meio de uma amiga londrina que vive no México, Walsh não hesitou em viajar para o Brasil. Veio acompanhado por seu cuidador, Alan Óshea. Na primeira visita à Casa, ele fez fila no Salão Principal até ser chamado para entrar na Sala das Entidades. No trajeto, Walsh atravessou a Sala dos Médiuns, onde cerca de 100 pessoas permanecem concentradas durante todo o período de atendimento de João de Deus – quartas, quintas e sextas-feiras, das 8 horas ao meio-dia e das 14 horas às 18 horas. A função dessa sala é “limpar a energia” daqueles que vão entrar na Sala das Entidades, um espaço em formato de “L”, ocupado por, pelo menos, outros 150 médiuns também em estado de concentração. Instalado próximo ao vértice do “L”, em um cadeirão de madeira, com espaldar alto, João de Deus dedica em média 30 segundos para cada visitante. Com muita frequência, prescreve cirurgias espirituais e um suplemento de passiflora. Produzido na Casa por duas farmacêuticas, o frasco de 35 cápsulas do composto de folhas e flores moídas de maracujá é vendido a R$ 10,50. A consulta ao médium e as intervenções são gratuitas.
Em sua busca para recuperar os movimentos do corpo, o londrino Walsh também segue a orientação de João de Deus de tomar preferencial “água fluidificada” durante sua estada em Abadiânia. Trata-se de água mineral convencional, mas abençoada pelas entidades, e vendida na livraria da Casa por R$ 2 a garrafa de 500 ml. Detalhe: nas pousadas mais ajeitadas da cidade, a mesma garrafinha custa R$ 3 e não é “fluidificada”. Por R$ 20 reais a sessão, Walsh ainda toma banhos de cristal, quando permanece deitado em uma maca, com pedras de quartzo suspensas sobre o seu corpo por cerca de 20 minutos. Do tratamento recomendado por João de Deus, Walsh considera como mais importante a cirurgia espiritual – uma espécie de passe –, às quais se submete uma vez por semana. O londrino estava prestes a realizar a quarta cirurgia espiritual quando falou à Brasileiros: “Ainda não notei nenhuma diferença nos movimentos, mas tenho muita esperança. Sinto a boa energia”.
Sala das entidades
Como outros estrangeiros, Walsh e seu cuidador recorrem aos tradutores da Casa quando precisam escrever alguma mensagem para João de Deus. Intérpretes de inglês, alemão, francês e espanhol integram a equipe de cerca de 300 voluntários que atuam na instituição, ao lado de 31 funcionários contratados. Ainda assim, há estrangeiros que preferem viajar com o apoio de um guia. É o caso da alemã Roswitha Hessmann, 58 anos, que chegou a Abadiânia com o filho Michael, 34 anos. Com problemas de locomoção, Roswitha teve seu primeiro contato com João de Deus no final do ano passado, quando ele atendeu no Centro de Convenções de Alsfeld, na Alemanha. “Tenho encontrado muita paz”, comenta Roswitha. Junto com o filho, ela integrava um grupo acompanhado pela guia baiana Nisharda Rollhausen, que conheceu a Casa em 1999. Na época, ela buscava ajuda para o filho, então com 18 anos, que sofria convulsões desde pequeno. “Ele melhorou 80%. Há sete anos não sofre nenhuma convulsão”, conta Nisharda. “A entidade me disse que eu tinha uma tarefa. Como era casada com um alemão e morei dez anos em Colônia, entendi que minha tarefa era trazer pessoas para Abadiânia.”
Da mesma forma que Nisharda, muitos se vinculam à Casa depois de receberem algum tipo de tratamento espiritual. Entre os voluntários, boa parte atua no preparo de uma sopa de legumes, distribuída de graça na hora do almoço, como parte do tratamento. Aqueles que passam por intervenções com corte no período da manhã recebem a recomendação de descansar na enfermaria e, em seguida, tomar a sopa nos aposentos onde se encontram hospedados. Na sequência, devem repousar por, no mínimo, 24 horas, e evitar contato social. As pousadas estão preparadas para receber esse tipo de hóspede, tanto no que diz respeito ao acesso para cadeirantes quanto à manutenção de um ambiente tranquilo. Nelas, como na Casa, impera a lei do silêncio. Aparelho de tevê é um objeto raro do lado direito da BR-060. Em contrapartida, notebooks e iPads proliferam.
Três stents no coração
Em geral, as intervenções com corte são realizadas na Sala de Operações anexa à Sala das Entidades. Em algumas ocasiões, de acordo com a “vontade da entidade”, João de Deus ocupa o palco do Salão Principal, aquele no qual as pessoas formam as filas iniciais. Durante o período em que esteve em Abadiânia, a reportagem da Brasileiros acompanhou duas sessões do gênero. Para problemas de visão, João de Deus usou pequenas facas de cozinha para raspar a parte interna das pálpebras. Nenhum dos que se submeteram à cirurgia demonstrou sentir dor. Nas intervenções que envolvem enfiar uma pinça nas narinas, as pessoas dão uma espécie de tranco no corpo. Em um caso, jorrou sangue de forma abundante. Depois, os submetidos a intervenções são levados em cadeiras de rodas para a enfermaria. Não há relatos de complicações decorrentes dessas cirurgias. Verdade que a austríaca Martha Raucher, morreu aos 80 anos na Casa, em fevereiro do ano passado, mas João de Deus sequer estava no local. Martha rezava o terço – uma atividade que ocorre todas as noites, às 19 horas –, quando começou a passar mal. Foi socorrida pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), que havia sido acionado por funcionários, mas não sobreviveu.
Hamilton Pereira, o abadiense que pavimentou a chegada de João de Deus à cidade, conta que Martha é o único caso de morte registrada na Casa: “Ela sofreu um infarto, mas sabemos de casos de morte em pousadas e hospitais da região. A Casa é um lugar de cura, a maioria vem desenganada pela medicina tradicional”. Católico praticante, o antigo prefeito deixou Abadiânia ao final do seu mandato, no começo da década de 1980. Formado em Economia, morava em Goiânia e prestava consultoria para prefeituras quando João de Deus o procurou, nove anos atrás. Contratado para administrar a Casa, o antigo prefeito voltou para sua cidade natal, deu configuração jurídica à Casa, regularizou a situação dos funcionários e pôs para funcionar como estabelecimentos comerciais a livraria e a lanchonete do complexo. Ele também coordena a Casa da Sopa instalada por João de Deus do lado esquerdo da BR-060, que, às terças, quartas e quintas-feiras distribui o alimento para a população carente da cidade.
O administrador trabalha vestido de branco, mas ressalta que não é espírita: “Tenho 92 afilhados de batismo em Abadiânia. Nesses nove anos, se entrei na Sala das Entidades cinco vezes durante os trabalhos, foi muito”. Ao recordar os tempos de prefeito de Abadiânia, ele conta que a cidade, hoje com uma frota de 37 táxis, tinha apenas dois: “Eram dois fusquinhas, que ficavam parados a maior parte do tempo. Para hospedagem, havia só uma pensão, que mal podia receber um time de futebol. Por isso, me preocupo com o futuro de Abadiânia se o João faltar. As pousadas vão virar criadouro de pombo”. Quando toma conhecimento da preocupação, o médium aconselha o administrador a ficar sossegado. “Vou viver até os 130 anos”, brinca João de Deus. “E eu vou na festa”, responde no mesmo tom o antigo prefeito.
O aniversário de João de Deus, que completa 71 anos em 24 de junho, é momento de grande afluxo de visitantes à Casa. Nascido em Cachoeira da Fumaça, hoje Cachoeira de Goiás, ele é o caçula dos cinco filhos de um alfaiate com uma dona de casa. Estava com 9 anos, com a mãe, Iuca, quando teria manifestado a mediunidade pela primeira vez, ao prever um temporal na região. Antes de começar a atuar como médium, sob a orientação de Chico Xavier (1910-2002), trabalhou como ajudante de pedreiro, garimpeiro e alfaiate. Tem nove filhos, de diferentes relacionamentos. Nenhum deles atua na Casa. Há mais de dez anos, o médium é casado com a advogada Ana Keila Teixeira Lourenço, 36 anos, que cuida de seus negócios particulares, entre eles fazendas de gado nelore em Goiás. Dono de uma concorrida agenda internacional, quando não está viajando ou atendendo em Abadiânia, João de Deus mora em Anápolis.
Embora calcule que já tenha atendido mais de oito milhões de pessoas, o médium garante que nunca curou ninguém: “Quem cura é Deus”. Entre seus visitantes há personalidades conhecidas, como o empresário Marcus Elias e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. O novo ministro do Supremo, o constitucionalista Luís Roberto Barroso, também fez visitas à Casa no ano passado, quando se tratava de um câncer no esôfago. Na galeria dos famosos, a precursora foi a atriz americana Shirley MacLaine, que tratou de um câncer no abdome em 1991. Mais de duas décadas depois, a apresentadora de tevê americana Oprah Winfrey mostrou o médium ao público americano em duas ocasiões. Da última vez, em março de 2012, antes de desembarcar de seu jato particular, Oprah manteve uma equipe na Casa por duas semanas. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu visitas de João de Deus no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, enquanto se submetia a um tratamento contra um câncer na laringe. É no mesmo hospital, com o cardiologista Roberto Kalil Filho, que o próprio médium faz check-ups regulares. Sim, João de Deus segue à risca a recomendação das entidades de não desprezar o tratamento médico tradicional. Ele é dono de três stents no coração.
Do outro lado da estrada que corta Abadiânia, a presença do médium na cidade é materializada em uma casa de esquina pintada de azul. Curiosamente, é nessa casa, a um quarteirão da Igreja Matriz da Paróquia São Pedro e São Paulo, que João de Deus fica quando está na cidade. Uma norma não escrita impede aqueles que procuram ajuda na Casa de atravessar o asfalto para bater à porta da residência particular do médium. Na Igreja Matriz, reza-se uma missa às quintas-feiras e três aos domingos. Para os fiéis se prepararem para a confissão, há uma espécie de “cola” impressa, com os dez mandamentos e os sete pecados capitais. Devidamente subdivididos, eles resultam em 107 pecados, que vão de “acreditei em reencarnação” a “não cumpri meus deveres de dona de casa”. O impresso serve para ajudar os fiéis a não se esquecerem de nenhuma falta durante a confissão.
Noiva no carro
Em uma recente noite de quinta-feira, o padre Luiz Antonio Pereira de Araújo entrou na igreja, para rezar a missa, precedido por sete coroinhas e três casais. No sermão, falou da quantidade de sal usada para temperar o arroz, para fazer a diferença: “A proporção de sal é muito menor do que a do arroz. Temos de ter coragem de sermos sal no mundo. Temos de fazer a diferença na vida do irmão”. Nascido em Anápolis, padre Luiz estudou no Seminário Maria Mater Ecclesiae, em Itapecerica da Serra (SP), e chegou a Abadiânia em janeiro. Com 35 anos, atuou antes como diácono, durante um ano, em Pirenópolis. Informado de que 196 pessoas acompanharam sua pregação naquela noite, ele considerou pouco. “A comunidade de Abadiânia é muito ativa. Além da Igreja Matriz, temos dez capelas. Aos domingos, quando os jovens que estudam fora estão na cidade, há missas para 600, 700 pessoas.”
Quanto à divisão de Abadiânia por causa da fé, o padre Luiz acredita que sua missão é muita clara. “Despertar no coração dos fiéis a busca para o encontro com Cristo”, diz o padre. “O seu João não passa para o lado de cá e nós não adentramos o lado de lá. Nós nos respeitamos, mas nenhum entra no território do outro. Como diz a música, é ‘cada um no seu quadrado’”, completa, referindo-se à letra do funk que fez sucesso no verão de 2008. Muito antes de padre Luiz chegar a Abadiânia, em 26 de julho de 2010, o administrador paroquial, padre Wôlnei Ferreira de Aquino, demarcou território de forma traumática para uma noiva católica, de família humilde, que tinha convidado João de Deus e sua mulher para padrinhos de casamento. Dentro do carro, no estacionamento da igreja, a noiva recebeu um recado do padre Wôlnei: “Enquanto aquele senhor estiver aqui, não faço o casamento”. Um casal atuante na paróquia foi convocado para intermediar o imbróglio, mas não houve acordo. João de Deus, que esperava com a mulher em outro carro, bateu em retirada. Mais tarde, participou da festa, na casa da noiva.
No cotidiano, persiste o distanciamento entre as duas partes da cidade. Católico praticante, o prefeito da cidade, o advogado Wilmar Gomes Arantes (PR), não se encontrou com João de Deus desde que derrotou o candidato do médium por 56 votos. O prefeito anterior, o médico Itamar Vieira Gomes (PP), tinha conquistado dois mandatos consecutivos com o apoio do líder espiritual. Em outubro de 2012, os 8.352 eleitores que compareceram às urnas decidiram diferente, embora por margem muito estreita. Ainda no começo da gestão, Arantes garante estar determinado a unir a cidade: “Sou prefeito de toda Abadiânia. Conflito religioso tem é no Oriente Médio”. Mesmo com o espírito desarmado, ele teve em uma manhã recente uma amostra dos contratempos que o esperam.
Lago Corumbá
Naquele dia, a assessora de imprensa de João de Deus, Edna Gomes, apareceu em Abadiânia para anunciar que o ex-presidente Lula estava para chegar à Casa. Lula, de fato, pretende visitar João de Deus em algum momento, mas não tinha marcado nada. Estava próximo, em Brasília, onde tinha participado de um seminário sobre as relações do Brasil com a África. Preparava-se para voltar para São Bernardo do Campo, quando Edna falou de sua chegada iminente à cidade. Horas depois, a assessora declarou que o ex-presidente desistira da viagem porque “o prefeito não oferecera infraestrutura nem segurança”.
Mesmo irritado com a situação, o prefeito tentou contemporizar: “Lula não precisa de segurança em nenhum lugar do Brasil, mas o dia em que ele bater o pé em Abadiânia, estaremos prontos para recebê-lo.” De volta à agenda convencional, o prefeito falou sobre seus projetos para diversificar a economia da cidade. Um dos principais pontos dos planos é explorar o potencial turístico do Lago Corumbá, a 35 km da sede da cidade, formado a partir da construção de uma barragem para a instalação da usina hidrelétrica Corumbá IV. “Já temos o turismo religioso, em função da presença de João de Deus. A ideia é atrair também outro tipo de turista.”
Por enquanto, o turismo vinculado à Casa garante a sobrevivência de centenas de famílias, não importa o credo. Evangélica frequentadora da Igreja Trono de Deus, Tássia Dias e o marido instalaram em setembro, no mesmo lote de sua casa, a Lavanderia Mil Bolhas. Em frente, colocaram uma placa em português, inglês, francês e alemão: lavanderia, laundry, laverie, wäscherei. “Falo alguma coisa em inglês. Com os outros, vai no gesto. Faço a notinha e dá certo”, diz. Formada em administração de empresa, a católica Lilian Borges é taxista há nove anos, mas só tira seu Chevrolet Spin LTZ da garagem para trafegar entre Abadiânia e os aeroportos de Brasília e Goiânia. “Minhas corridas são marcadas mais por e-mail do que por telefone. Busco e levo americanos, romenos que vivem nos Estados Unidos, alemães, irlandeses, ingleses, australianos, suecos e austríacos.” Para transportar grupos maiores de pessoas, Lilian troca o Spin pela Van Renault Master, com capacidade para 15 passageiros, que divide com o marido, também taxista.
Três casas, três mulheres
As lojas, cafés e restaurantes da rua que termina na Casa são a maior expressão do sincretismo que permeia a vida econômica da cidade. Tem até uma antiga seguidora do Santo Daime, agora adepta do umbandaime – uma mescla da umbanda com a doutrina nascida na floresta amazônica. Em sua loja, a Nirvana Handmade Clothes, Marina Carvalho comercializa a produção da família: “Vendo mais para gringo. É bem direcionado. Muita roupa branca”. A poucos quarteirões dali, o pai de santo Nilton Nunes de Morais mantém há quase 30 anos o Terreiro São Jorge Guerreiro, onde imperam imagens de Nossa Senhora Aparecida. Vereador em primeiro mandato pelo PP, seu Nilton, como é chamado, atende a população local nas manhãs de quartas e sextas-feiras. Nas noites de segunda-feira, promove uma gira de Preto Velho.
Aos 55 anos, pai de nove filhos de distintos relacionamentos, seu Nilton é um homem singular. Há duas décadas mantém em aparente harmonia três casas, muito próximas umas das outras, e três mulheres – Aparecida, Cleuza e Sueli. No campo religioso, ele também é eclético. Não frequenta a Igreja Matriz, mas costuma assistir às missas em Abadiânia Velha. Duas ou três vezes por ano visita o santuário católico de Trindade, a 113 km de onde mora: “Já fui 11 anos a pé. Só gasto dois dias e meio.” Quanto ao vizinho famoso, que tem inclusive uma concorrida agenda internacional, seu Nilton mantém a linha eclética: “É ele lá, eu cá, mas seu João é muito legal. Não existe homem melhor para dar serviço para o povo daqui. Se não fosse ele, este lado de Abadiânia não teria nada”. O pai de santo conta ainda que já visitou a Casa, “a passeio”, mas é porque nunca precisou pedir ajuda: “Se precisar, eu vou.”
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