O Brasil que sai da boca de Mino Carta vem invariavelmente carregado de impropérios. O Brasil que brota de sua escrita é um afetuoso, ainda que ácido, convite à alegoria. Melhor assim – a alegoria. Ainda que, aqui, neste seu terceiro livro, também indisfarçadamente autobiográfico, Mino dê nome aos bois, na verdade nomeie toda a boiada, com direito a chifre e tudo, quando se decide narrar os eventos por ele presenciados, obediente à precisão jornalística – a verdade dos fatos que ele tanto persegue – pode acometer ao leitor uma tal malaiseque a urgência do simbólico acaba por se impor.
Que venha a ficção, é permitido implorar, pois os fatos, no Brasil, ainda que narrados com honestidade, como Mino o faz, aliás virtude rara, costumam ser embebidos em atroz inverossimilhança. É como se nossa história recente, na eterna dualidade da casa grande e senzala, regredisse a um folhetim novecentista de sinhozinhos cafajestes e de donzelas arfantes. Nossa elite definitivamente não é flor que se cheire.
A realidade, no Brasil, é atrasada demais, medíocre demais, indigente demais – e Mino Carta é o primeiro a saber disso – para merecer a atenção de um artesão das palavras. Mas, ainda assim, Mino insiste, com a ambiguidade que faz conviver seu sarcasmo cortante com uma generosidade a qual, no entanto, ele inconscientemente se resigna mesmo que jamais vá conscientemente reconhecer.
Alguém que chama de O Brasil um livro seu não busca apenas uns tantos acertos de conta com o passado, traz no seu desalento sincero uma tênue faísca de esperança. Qual iluminista empedernido que nunca deixou de ser, Mino ainda aposta no poder da reflexão e da inteligência. Seu ceticismo é pedagógico. Alguém há de aprender alguma coisa com ele, por mais que tudo o que Mino talvez queira ensinar seja a intrincada e desprezada virtude da ironia.
Cabe comparar a história que Mino aqui conta, ou reconta, com o musculoso esforço de um ou outro jornalista de trajetória vizinha à dele, ao buscar a compreensão acadêmica de uma História supostamente digna do “H” maiúsculo. Tem um cidadão aí que escreveu cinco robustos cartapácios tentando desvendar os enredos subterrâneos da ditadura militar, isentando-se de qualquer comprometimento, na blindagem da imparcialidade, por mais que fosse óbvio seu encantamento por certos maganos civis da repressão e sua amizade por um dos ditadores fardados, “o Alemão”, aquele que supostamente promoveu a distensão, mas que, mais tarde, livre das amarras dos constrangimentos institucionais, confessou sua admiração pela tortura e sua solidariedade para com os torturadores.
Quem quiser captar a verdadeira essência desse angustioso momento da transição dos anos 1970 e 1980 fica muito melhor servido com Mino Carta, já que a narrativa dele, sem pretensões à Enciclopédia, nem concessões à Academia, incorpora os contraditórios elementos que constituem a condição humana. Assim como Jonathan Swift, que compôs, em alegoria, o melhor retrato do dilema preconceituoso do eurocentrismo, Mino é capaz de identificar os gigantes – que são poucos – e os pigmeus – que proliferam. Conheço Mino Carta há várias décadas e afirmo que ele raramente se equivoca ao identificar os gigantes e os pigmeus.
Mino se orgulha em operar uma anacrônica Olivetti, avesso ao computador e impermeável à internet, e, no entanto, um livro como o dele, eivado que seja de convicções definitivas e idiossincrasias pessoais, abre-se à interatividade. Não há leitor que, por exemplo, não será tentado a desvendar a identidade do Abukir, o capacho-mor, o puxa-saco definitivo.
Abukir é aquele jornalista carreirista que pensa como o patrão, escreve o que o patrão quer que ele escreva, é o primeiro a rir – rororó – das piadas sem nenhuma graça do patrão, às vezes chega ao extremo (o caso é real) de fazer seus ternos no alfaiate do patrão. É, portanto, o jornalista su misura. Se o patrão vier a falecer, ele irá penitenciar de não ter escrito o primeiro necrológico (o caso é real), pressuroso que é em sua vocação de bajulador até post mortem, alegando em sua defesa o silêncio da internet “num rincão distante”.
Assim como, nas páginas do Mino Carta, recomenda-se o cuidado com as entrelinhas, é bom se precaver com as aparentes facilidades de uma leitura à clef. Há um punhado de candidatos a Abukir – e não por acaso, Abukir não é uma pessoa específica, é um gênero, um concentrado de farisaísmo, copiosa categoria de criaturas que mescla cínicos, hipócritas, oportunistas, trapaceiros a se iludir com a ideia de que estão participando da ceia dos poderosos. São, no fundo, uns pobres coitados.
Mino Carta tem razão: aqui em Pindorama, a ignorância é tóxica e a pusilanimidade, vergonhosa. Para os vencedores, as batatas. Para os idiotas, a Academia Brasileira de Letras.
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