A estética do esporte

Existe uma Barcelona pré-1992 e uma Barcelona pós-Olimpíada. Até 1986 – quando os investimentos para os Jogos começaram -, a capital da Catalunha guardava um travo provinciano e chafurdava nas dificuldades econômicas de toda a Espanha pós-ditadura Franco. Encerrada a Olimpíada, Barcelona se convertera em uma próspera metrópole, com postura cosmopolita e modelar infraestrutura urbana. Até descobrir o mar Barcelona descobriu, na novidade da Vila Olímpica de Poblenou, projeto encabeçado pelos arquitetos Josep Martorell e David Mackay – primeiro bairro marítimo de uma cidade até então estranhamente de costas para o Mediterrâneo.

O que Barcelona fez na década de 1990, Pequim fez neste século 21, com pretexto igual: os Jogos Olímpicos de 2008. Pequim recrutou alguns dos mais renomados arquitetos do mundo para transformar a antiga capital dos mandarins em uma vitrine de audácias urbanísticas. O inglês Norman Foster estilizou um amigável dragão no desenho do hightech Terminal 3 do Aeroporto Internacional de Shunyi, e o suíço Jacques Herzog, com seu sócio Pierre de Meuron, assinou aquele que virou o ícone da pirueta estética da Nova China: o Ninho do Pássaro, monumental estádio que sediou a abertura e o encerramento dos Jogos, além das principais competições atléticas.
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Intervenções urbanísticas, por si só, não criam um modelo civilizatório nem definem um padrão de cidadania, mas, por ser aquilo que a crítica inglesa Karen Stein considera “a mais social de todas as artes”, a arquitetura pode, sim, funcionar como um paradigma mobilizador de transformações sociais. Não mais com o carma de promover mirabolantes utopias, como a que veio dar em Brasília. Muito ao contrário, como um ofício que pode contaminar as pessoas “com a importância e a urgência do real”, nas palavras de Paul Goldberger, crítico da revista The New Yorker e autor do recém-lançado A Relevância da Arquitetura (Editora Beĩ). “A arquitetura é como Beethoven. O mundo não precisava da Nona Sinfonia, mas ela fez do mundo um lugar melhor.”

Aconteceu com Barcelona, aconteceu com Pequim, está acontecendo com Londres, sede da Olimpíada de 2012. Com certeza, há de acontecer no Rio, em 2016, e, por que não, em todo o Brasil, por ocasião da próxima Copa do Mundo. Essa é a aposta que faz Jacques Herzog – Pritzker Architecture Prize em 2001 e estrela maior do Arq.Futuro, evento promovido pela Beĩ Editora, de Tomas Alvim e Marisa Moreira Salles, em São Paulo, neste último mês de novembro. A Herzog – e à torcida que ele faz pelo Brasil – juntou-se um time de feras: os já citados Ms. Stein e Mr. Goldberger, o ex-curador do Museu de Arte Moderna de Nova York, Terence Riley, e o carismático Lelé Filgueiras, mestre reverenciado mais lá fora que aqui em sua terra natal.
O Arq.Futuro foi, claro, uma festa para a rapaziada do ramo – e não por acaso via-se em meio à plateia de convidados figuras como Ruy Ohtake, Isay Weinfeld, Marcio Kogan, Thiago Bernardes, Paulo Alfredo Jacobsen. Mas acabou também acendendo a discussão específica sobre o efeito de megaeventos, como os que o Brasil vai sediar, na reconfiguração dos espaços das metrópoles.

Herzog – ele próprio mergulhado no desafio de conferir à nefanda área da cracolândia, no centro de São Paulo, uma fisionomia cidadã a partir do seu projeto do Complexo Cultural da Luz – sugeriu um cauteloso otimismo. “Os equipamentos esportivos não são como centros de artes, que têm um valor de permanência”, alertou. “É preciso ter certeza de que, após os jogos, as instalações ganharão outras funções.”

Contrariando, contudo, alguns ranzinzas locais, o arquiteto suíço é dos que acham que uma Olimpíada e uma Copa do Mundo podem oferecer muito mais a uma cidade e a um país que um simples banho de decoração urbana. E nem sempre os argumentos são mera extensão de um esprit de corps. Estudo publicado pelo professor Ferran Brunet, da Universidade Autônoma de Barcelona, mostra que o investimento vale a pena. Mesmo o sempre tão chorado investimento feito com o dinheiro do contribuinte. De cada três centavos gastos em Barcelona, dois vieram dos cofres da Generalitat (a Prefeitura) e da Província da Catalunha. Ou seja, só um terço dos gastos foi bancado pela iniciativa privada.

No final das contas, a receita de US$ 1,638 bilhão, auferida só durante o evento, compensou o gasto de US$ 1,635 bilhão. Imaginem o que Barcelona não faturou depois, em turismo, com a sua reinvenção urbanística, esportiva e cultural. É um indicador instrutivo para os chatos de plantão.


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