Uma breve e equivocada impressão passa ao ler as primeiras páginas de Sagrada Família, do jornalista e escritor Zuenir Ventura, romance que acaba de ser lançado pela Alfaguara. É um trecho picante, que promete bons momentos de erotismo no restante do livro. E não deveria ir além disso. A introdução é arrebatadora nesse sentido: um menino de 9 anos que começa a se despertar (precocemente) para o sexo, quando, naquele distante ano de 1942, flagra a recatada tia viúva fazendo sexo com o único farmacêutico da pequena e fictícia Florinda, no interior do Rio de Janeiro. Não porque aquilo fosse apenas uma novidade para ele, tem mais a ver com a surpresa de ver um dos pilares da moral e da boa conduta de sua família – que saíra de casa com a desculpa de que ia tomar uma injeção – na prática de algo tão condenado e censurado como o sexo.
O garoto, que narra a história, diz ter perdido ali a sua inocência. Só ao final da leitura, porém, o leitor terá a real dimensão do significado dessa expressão, graças à força desse aparentemente despretensioso romance sobre sexualidade no Brasil nos anos da Segunda Guerra Mundial. Inocência, no caso, é um termo que está relacionado à moral e hipocrisia. E é nesse sutil jogo de extremos que o romance ganha relevância literária. Ao explorar o universo da família da tia, o autor, propositadamente, dramatiza uma era que seria lembrada com romantismo exagerado por muitos memorialistas – contraditoriamente, em um contexto de guerra e ditadura, por causa dos tempos áureos que foram para a música, o rádio e o cinema brasileiros. O modo de tratar o tema consolida a perenidade desse cativante romance, que parece tão atual. “A sociedade da época, e acho que não só a florindense, era impositiva e deixava pouca margem às opções e escolhas. Vigorava a ética do dever, não do desejo”, escreve Zuenir. “Havia idade para casar, livros que não se podia ler, cores que combinavam ou não, hora para chegar em casa, interdição de gestos, palavras e, se fosse possível, de pensamentos.” Nada disso impedia, porém, escapadelas e aventuras proibidas, cuja dissimulação se dava como um excitante jogo de artimanhas e segredos – e perigoso também porque, muitas vezes, poderia ter consequências trágicas. Eram anos de vigilância em especial contra as mulheres. Só se namorava no portão e entre pegar na mão da moça e trocar o primeiro beijo levava-se um período próximo da eternidade. Pelo menos para as partes interessadas.
Sagrada Família é também um livro consistente por sua fundamentação histórica – impressiona o preciosismo do autor, que se destaca na reconstituição de época, desde os fatos mais relevantes da política, ao lembrar bordões das propagandas mais comuns, aos produtos de consumo – como o chiclete e o inesquecível Batom Colgate, febre entre as meninas que queriam se “americanizar” –, que passavam a fazer parte do cotidiano e estariam para sempre atrelados à memória de gerações de brasileiros. Que o diga Zuenir Ventura.
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