A executiva de Deus

Para dar conta de tudo, a executiva Rosane Ghedin, de 40 anos, acorda ouvindo música clás-sica às 4h45, todas as manhãs, de domingo a domingo, e nunca vai dormir antes da meia-noite.

No comando de um exército de mais de 13 mil funcionários, ela administra o Complexo de Saúde e Cultura Santa Marcelina, com um orçamento anual de R$ 691 milhões. Cuida de quatro hospitais, quatro creches, um centro juvenil, uma escola de enfermagem, centros de atendimento médico e vinte polos de ensino musical.
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Formada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas, pelo currículo que ostenta e por suas múltiplas responsabilidades, poderia ter um altíssimo salário em qualquer grande empresa, mas ela nunca foi remunerada pelo que faz. Trabalha de graça, só em troca de cama, comida e roupa lavada. Detalhe: Rosane Ghedin, diretora presidente da Associação Beneficente Casa de Saúde Santa Marcelina, é uma freira – daquelas que ainda usam hábito e não andam sem véu.

Como na célebre canção de Geraldo Vandré, é dessas pessoas que não esperam acontecer: a executiva de Deus vai lá e faz a hora. BRASILEIROS conta a trajetória e a incrível rotina de trabalho dessa humilde religiosa paranaense. Nascida na roça, filha de lavradores, Irmã Rosane não sai nos jornais, nunca reclama da vida e está sempre disposta a assumir novos compromissos, servir a cada vez mais gente.

“Não é que eu faça muito. As necessidades do povo é que são grandes, são muitas…”, costuma dizer a quem quer saber o que a motiva a levar esta vida acelerada. “Minha maior gratificação é poder ajudar a dar uma vida melhor para as outras pessoas. Nenhum dinheiro pode pagar isso.”

O mais difícil é conseguir marcar uma hora na agenda sempre atribulada de Irmã Rosane. Depois de um mês de negociações com a sua assessoria, nosso encontro foi marcado e remarcado várias vezes, até que, finalmente, encontraram um espaço em sua agenda, às 13 horas do dia 5 de abril, uma segunda-feira chuvosa em São Paulo. Cheguei uma hora antes ao local combinado, para não me atrasar, mas só conseguimos encontrar Irmã Rosane Ghedin duas horas depois, quando ela saía de uma reunião no Hospital Santa Marcelina, em Itaquera, na Zona Leste da cidade, onde funciona o quartel-general desta holding católica de prestação de serviços em parceria com o poder público.

“Só mais dois minutinhos…”, pede ela, voz baixa e serena, andando e falando ao celular. Passos miúdos e ligeiros, a Irmã mal entra na sala, nos cumprimenta como se fôssemos velhos conhecidos, e já vai logo avisando: “Comigo tem de ser objetivo e rápido. Temos de desenrolar as coisas…”.

Queria que ela me contasse um pouco sobre a sua vida, mas como já estamos atrasados para o próximo compromisso da freira, uma visita ao CEU (Centro Educativo Unificado) Vila Curuçá, entramos rapidamente no carro. O jeito foi fazer uma entrevista peripatética, já que a Irmã Rosane não para quieta.

O ritmo certamente era bem mais calmo nas terras onde nasceu, na cidadezinha de Vitorino, perto de Pato Branco e Cascavel, no nordeste do Paraná. Os pais, André e Carmem, viviam, como até hoje, das lavouras de soja, milho e trigo. A família Ghedin sempre foi muito religiosa, mas dos oito irmãos só ela entrou para a Igreja, ainda muito mocinha. “Sou a ovelha branca da família…”, brinca, referindo-se ao hábito sempre impecavelmente alvo.

A vocação religiosa de Rosane foi despertada nas visitas que fazia junto com os pais, que dedicavam as horas livres para fazer caridade, em asilos e orfanatos. De início, porém, a família não gostou muito da sua opção de entrar para a Congregação das Irmãs Marcelinas de Cascavel, onde estudou até o terceiro grau. “Meus pais achavam que para fazer o bem não precisava me consagrar, o que também é verdade, mas eu já estava decidida a seguir a vida religiosa.”

Depois de dois anos de noviciado, na Casa de Formação das Irmãs Marcelinas, no bairro de Perdizes, em São Paulo, Rosane se formou auxiliar de enfermagem na UNESP, em Botucatu, no interior paulista. De volta a São Paulo, começou como estagiária no hospital de Itaquera, que vai comemorar meio século no próximo ano e conta hoje com 720 leitos.

Desse primeiro contato com a realidade da população carente da Zona Leste, em 1990, ela guarda uma lembrança dramática: “O que mais me impressionou neste trabalho não foram as doenças dos pacientes, mas o fato de eles chegarem ao hospital sempre com muita fome. Não tinham doenças incuráveis, tinham fome. A doença delas era falta de comida… Me doía muito… Até hoje isso acontece muitas vezes. Ainda tenho o sonho de criar um lugar no hospital só para dar comida para quem chega com fome, porque muitos não têm dinheiro para comprar um lanche. O dinheiro, geralmente, é só para o ônibus”.

Ainda bem que o trânsito está lento por causa da chuva e assim podemos conversar mais antes de chegar à Vila Curuçá. No caminho, chamam a atenção as grandes grades nas casas humildes, que parecem envelopadas em barras de ferro, lembrando os perigos da vida por aqui, onde pobre ainda rouba pobre, e ninguém se sente seguro. Para ficar mais perto do trabalho e não ter de enfrentar o trânsito, irmã Rosane mora junto com outras 34 freiras na Casa Betânia, ao lado do hospital.

Hoje, como todos os dias, ela foi acordada com música às 4h45. Era um canto bem alegre, que lembrava a ressurreição da Páscoa.

Às cinco da manhã, Rosane e as outras irmãs já estavam na capela para rezar. Às 6h45, foi servido o café: frutas e um resto do bolo de chocolate do domingo. Às sete horas em ponto, ela costuma sair de casa para fazer uma caminhada de 6 km no Parque do Carmo. Mas, como estava chovendo, foi direto para a sua sala no hospital, onde duas mulheres já estavam à sua espera. Antes de atendê-las, deu uma rápida passada no computador (recebe em média 150 e-mails por dia) e olhou a correspondência.

Uma das mulheres explicou à Rosane que se tratava de um assunto particular: queria saber o que fazer com a mãe alcoólatra que vinha criando muitos problemas em casa. E o que a nossa freira executiva pode ajudar em um caso desses?

“Primeiro, a tranquilizei. Expliquei que esse não era um problema só dela. Boa parcela da população tem esse problema em casa. O alcoolismo não é uma questão de sem-vergonhice, como ela falou. É uma doença. Precisa ser tratada.”

Rosane prometeu fazer-lhe uma visita à noite em casa, se a sua mãe estivesse sóbria, para convencê-la a se internar em um hospital psiquiátrico e encaminhá-la para tratamento. “O problema do alcoolismo e das drogas atinge todas as idades, mas hoje está mais presente na juventude”, constata ela.

Do hospital, Rosane foi para a Faculdade São Marcos, no Tatuapé, onde pretende fazer mestrado e doutorado na área social ou administrativa. Em 1989, quando cursava o último ano de Enfermagem, Rosane foi fazer o curso de Administração de Empresas na Fundação Getúlio Vargas, ponto de partida para sua carreira de executiva na área de saúde e, mais recentemente, também na de cultura. Na volta, trancou-se em uma reunião com sua equipe para cuidar do fluxo de caixa e da folha de pagamentos, o seu grande desafio de todo começo de mês.

“De música eu não entendo nada”, vai logo avisando, antes de chegarmos para a aula-espetáculo do grupo Via Brasil para os alunos do CEU Vila Curuçá. Mesmo assim, ela foi convidada no ano passado para assumir o cargo de diretora-presidente também do Santa Marcelina Cultura, ao lado do gerente executivo da organização Paulo Zuben. Juntos, desenvolvem o Projeto Guri Santa Marcelina, um programa de inclusão social por meio da música.

Nos 20 polos do Guri Santa Marcelina (17 em parceria com a Prefeitura), a maioria deles localizados na periferia da cidade em áreas de alta vulnerabilidade social e com escassa oferta de equipamentos e programas sócio-culturais, estão hoje matriculados 9 mil alunos entre 6 e 18 anos. “Acreditamos que nossa missão se realiza quando podemos proporcionar o crescimento das pessoas por meio da educação e da cultura”, comenta a irmã, enquanto caminha até o auditório, onde a aula-espetáculo já começou. Discretamente, Irmã Rosane senta-se próxima a uma colaboradora do projeto e, falando baixinho, informa-se sobre o andamento dos trabalhos.

Entre um e outro número musical, os integrantes do quinteto de metais Via Brasil dão informações sobre os seus instrumentos e as composições executadas, respondendo às dúvidas dos alunos. Todos riem quando uma menina franzina pergunta a Luis Serralheiro, o robusto músico da tuba, o que é preciso para aprender a tocar este instrumento. “Bom, para começar, precisa ter mais de 70 kg, pelo menos. Porque tem de ter muito ar no pulmão para poder tocar. E a tuba é um instrumento pesado para carregar…”
Quando a aula termina, Rosane ainda passa um tempo conversando com os músicos e alguns alunos. “Gosto muito de ouvir música clássica, mas não tenho nenhuma formação. Não sei por que vim parar aqui… Tenho muita curiosidade, gosto de saber tudo o que está acontecendo.”

No CEU da Vila Curuçá são 300 crianças e adolescentes inscritos nos diferentes cursos, que contam com 25 professores. Fabiana Pereira, de 30 anos, é uma das professoras mais antigas. Está aqui desde 2003. Ao ver Irmã Rosane entrando na sala onde dá aula para umas 20 crianças entre 6 e 9 anos, Fabiana faz um breve intervalo para falar do seu trabalho. “Sou apaixonada pelo que faço. Adoro ensinar a tocar. Era professora de coral e aqui tive a oportunidade de conhecer outro universo de perto”, conta. Ela e os alunos fizeram os próprios instrumentos que estão usando, chocalhos montados com garrafinhas de iogurte.

Para uma escola da periferia da Zona Leste, impressiona o bom astral de professores e alunos nas salas de aula, todas elas muito bem cuidadas, demonstrando que nem tudo depende só de recursos materiais, mas das pessoas responsáveis pelas instituições que cuidam do lugar. A limpeza dos pisos, por exemplo, é a mesma que me chamou a atenção no hospital de onde viemos. O celular de Rosane não para de tocar. Em geral, são pessoas pedindo sua ajuda para internar doentes ou marcar cirurgias.

Sem paciência para esperar o elevador, a freira desce três lances de escada no pique, e eu atrás, tentando anotar o que ela me fala sobre o seu método de trabalho: “Nossa principal missão é trabalhar com método próprio na formação das pessoas. Qual o método? É estar junto com os funcionários, pois só assim muita coisa acontece ou não acontece. É o método presencial, ver as expressões, falar cara a cara Sempre perdemos muito quando não temos um contato pessoal com nossos colaboradores.”

Na área operacional, nem sempre isso é possível, reconhece Irmã Rosane. Para se ter uma ideia dessa dificuldade, basta citar alguns números só do Hospital Santa Marcelina, que faz mensalmente 40 mil atendimentos de pronto-socorro, mais 40 mil atendimentos ambulatoriais, 3.400 internações hospitalares, 1,5 mil cirurgias e 250 mil procedimentos diagnósticos. Dos 2,9 mil funcionários, 987 são médicos. “Pelo volume de coisas que preciso cuidar, às vezes sou obrigada a usar e-mail e telefone, mas eu não gosto.”

Com essa rotina maluca, desde que assumiu a administração geral do Santa Marcelina, em 2002, a executiva ainda encontra tempo para cuidar da vida espiritual e ler dois livros ao mesmo tempo, um velho hábito que cultiva antes de dormir. No momento, um dos livros que está lendo é do monge beneditino Anselmo Brum, um autor americano que já escreveu várias obras sobre gestão administrativa, comparando a prática de São Bento na organização do tempo com a rotina administrativa das empresas.

Aos domingos, das 10 às 12 horas, o tempo de Rosane é dedicado ao curso de crisma. Jovens e moradores de rua são as preocupações dela nas “horas de folga”, quando sai às ruas após o trabalho. Quase todas as noites, ela se encontra com os jovens do grupo Anauim para fazer palestras e, depois, ainda vai cuidar de indigentes. Pode ser encontrada, altas horas da noite, no largo General Osório e na Avenida São João, no centro da cidade, ou às margens da estação do metrô, no Tatuapé. Leva com ela jovens voluntários, sacolas com roupas velhas e bandejas de “marmitex” contendo arroz, feijão e uma mistura.

Só no começo da noite, ao voltarmos para o hospital, consegui convencer Irmã Rosane a se sentar alguns minutos comigo para conversarmos com calma, antes que ela fosse visitar os pacientes da UTI Pediátrica Andréa Vaselli. Por essa sua fama de “pé de boi” e “pau para toda obra”, a freira foi convidada no ano passado para cuidar também da área cultural do Santa Marcelina. A princípio, ela resistiu ao convite, mas logo se empolgou ao conhecer melhor o Projeto Guri. “Falei que não tinha disponibilidade para ficar o tempo todo cuidando do projeto, mas me encantei com o que era feito, fiquei maravilhada.”

Para ela, nada resume melhor o trabalho do Projeto Guri Santa Marcelina do que a história do menino Samuel, filho de mãe solteira, que morreu no parto. Criado pela avó materna, que não queria deixar o menino na rua, ele foi levado para o Guri quando tinha oito anos. Não possuía qualquer afinidade com a música, mal conseguia segurar um instrumento. Em pouco tempo, porém, já estava tocando com outros jovens do Projeto Guri em uma apresentação na Sala São Paulo.

“Samuel poderia ter captado as coisas ruins da rua, mas no Guri passou a ter outra visão da vida. Mesmo órfão, foi por meio da música que se encontrou na vida. Não será mais um marginal, mas um bom cidadão”.

Ao completar neste ano duas décadas de trabalho junto aos doentes da Zona Leste, pergunto a Rosane o que mudou na área da saúde, se ela sentiu alguma melhoria neste período. O mais importante, para ela, foi ter melhorado o acesso das pessoas à saúde, por meio do SUS, um trabalho conjunto dos três níveis de governo, muitas vezes em parcerias com organizações sociais como o Santa Marcelina. Com isso, melhorou também o acesso aos remédios fornecidos gratuitamente ou a preço reduzido. “Antes, não adiantava fazer o diagnóstico e dar a receita, porque as pessoas simplesmente não tinham dinheiro para comprar os remédios. Sem dúvida, houve uma evolução.”

E o que falta, o que continua ruim? “Ainda não conseguimos atingir o universo de 100% de atendimento da população com serviços de qualidade porque saúde custa muito caro e os recursos financeiros que recebemos não acompanham as evoluções da tecnologia no ramo da medicina. O desenvolvimento da ciência é fantástico, mas as nossas contas nunca fecham. Todo dia eu enfrento isso: como vou conseguir os recursos necessários?”

Caminhando para a Pediatria B, onde fica a UTI infantil, Rosane parece estar com a disposição de quem acabou de acordar. Cumprimenta todo mundo, entra nas enfermarias para ver se está tudo bem, conversa com funcionários e pacientes, senta-se com os pais das crianças para ouvir suas histórias.

Esta é a principal razão do sucesso da executiva de Deus em tudo o que faz na vida: ela aprendeu que o importante é saber ouvir as pessoas. Depois disso, sempre se dá um jeito. Faz bem descobrir que ainda existe gente neste mundo como a Irmã Rosane Ghedin. Ganhei o dia e saí de lá com mais fé na humanidade. Nem tudo está perdido.

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