Filtrada pelos vidros empoeirados das janelas, a luz da manhã é pálida – de uma palidez de fotografia antiga – e escorre dos vãos entre as telhas, em filetes que conferem ao galpão um efeito cênico. Nesse cenário, operários trabalham em meio ao vapor de máquinas e ao som do entrechoque de ferros. O cheiro é carregado, mas não desagradável. Há no ar uma mistura de lã de ovelha, madeira, umidade e ferrugem. “É o cheiro do tempo”, diz Antônio Máximo Alves, 66 anos, há 27 moldador de chapéus na fábrica. “Hoje, faço 350 moldes por dia, mas já cheguei a fazer 600. Na minha juventude, todo homem tinha chapéu.”
Antônio, fotógrafo de casamento nos fins de semana, é um dos funcionários mais antigos do lugar – depois que os mais velhos, alguns com mais de 50 anos de fábrica, tiveram de se aposentar ou foram demitidos. “Demissão aqui sempre foi coisa rara”, afirma ele, confirmando os rumores de que uma grande mudança está por vir, sem se aprofundar no assunto.
Estamos em Campinas, na rua Barão Geraldo de Resende, 142, no bairro Guanabara, onde está localizada a quase centenária Fábrica de Chapéus Cury, com seus 5,3 mil m2 a ocupar quase um quarteirão inteiro, não fosse a presença de um botequim, onde os operários costumam tomar o café da manhã antes do batente.
Mundialmente famosa por ter criado o chapéu que o ator Harrison Ford imortalizou nos filmes da série Indiana Jones, a Cury é vista pelos campineiros sob um prisma local e mais relevante: é a memória viva do tempo em que a cidade começava a desenvolver sua indústria. Chama atenção o fato de que uma das mais bem-sucedidas empresas de Campinas seja uma velha fábrica de chapéus, com produção artesanal que se mantém na liderança do ramo.
Com mais de um milhão de habitantes e conhecida por seu polo industrial e tecnológico, Campinas é a maior cidade do interior de São Paulo. Por isso, surpreende que uma fábrica como a Cury ainda exista e seja abastecida por uma caldeira, tal e qual como no início do século passado. Para descobrir o segredo da longevidade, pergunto a Paulo Cury Zakia, 54 anos, diretor comercial da empresa, como a fábrica sobreviveu ao tempo, à modernização, à concorrência desleal, às sucessivas crises econômicas, à especulação imobiliária e ao fim do chapéu como item obrigatório no vestuário do brasileiro? Em sua resposta, ele me dá a notícia inesperada: “Sobrevivemos graças à força de vontade e ao idealismo. Mas não dá mais para continuarmos presos ao passado”. A antiga sede da fábrica estará desativada até dezembro deste ano e o destino do prédio será idêntico ao de outros tantos imóveis que desapareceram em Campinas: o chão.
Zakia ressalta que a demolição do prédio construído em 1920 não significará a morte da Fábrica de Chapéus Cury. “Estamos transferindo nossas instalações para um local moderno e mais adequado na cidade de Jaguariúna.” A mudança, segundo ele, é imperativa. “Temos de ser mais competitivos ou seremos engolidos. Até hoje, nos mantivemos heroicamente, assumindo riscos e prejuízos em benefício dos funcionários. Mas um empresário precisa ser racional.”
Ele prefere não dizer o que será construído no local para não atrapalhar o negócio.” Mas seu plano imediato é publicar um livro de fotografias e poemas dedicados à Cury. “É uma forma de preservar as lembranças do lugar e de tudo o que representou para a cidade.” Material há de sobra: ao longo da história, dezenas de ensaios fotográficos foram realizados ali.
Do alto de seus 88 anos, dos quais 70 dedicados à chapelaria, o presidente Sérgio Cury Zakia, tio de Paulo, não guarda segredos quanto à mudança: “A especulação imobiliária é forte e agressiva. É impossível não ceder. Vão construir prédios aqui, vários. É lógico que fico triste em ter de sair, mas é inevitável.”
Sugiro uma última caminhada com o presidente pelas galerias da fábrica. Ele apanha o inseparável chapéu de feltro marrom sobre a mesa de seu gabinete e apoia-se em meu braço para descer a longa fileira de escadas. No trajeto, cumprimenta os operários. Ele conhece todos pelo nome. No ano passado, eram 130. Hoje, 69. “No auge da nossa produção, entre as décadas de 1940 e 1960, chegamos a ter 800 funcionários contratados”, diz Sérgio.
As recentes demissões não parecem ter sido uma decisão fácil. “Alguns demitidos eram meus amigos, íamos caçar e jogar futebol quando não éramos tão velhos”, diz ele com um sorriso discreto. De fato, alguns funcionários remanescentes têm mais de 20, 25 anos de casa. “Nunca tive o costume de demitir o pessoal.”
Para o velho Zakia, a culpa não é só da especulação imobiliária. É também dos chineses. “Eles estão comprando todo o pelo de lebre que há no mundo, que era a nossa principal matéria-prima. O pelo de lebre sumiu do mercado e precisamos nos adaptar e reinventar os produtos. Somos obrigados a usar só lã para fabricar os chapéus, mas não é a mesma coisa.”
Sérgio é filho de libaneses. O avô era gerente de uma fábrica de tecidos no Líbano e foi o primeiro membro da família a vir para o Brasil, em 1904. Embarcou na terceira classe de um navio e desceu no porto de Santos, em busca de uma vida melhor. Quatro anos depois, enviou dinheiro para que os filhos se juntassem a ele. O pai de Sérgio se estabeleceu em Itu – onde ele nasceu em 1924. “Eu tinha 9 anos quando papai disse: ‘Sérgio, o mercado de chapéus é o futuro. Vamos para Campinas trabalhar na fábrica do doutor Miguel’. Isso foi em 1934.”
Doutor Miguel era Miguel Vicente Cury, um caixeiro de loja que se tornou duas vezes prefeito de Campinas (1948-1951 e 1960-1963) e hoje dá nome ao viaduto mais importante da cidade. “Ele era meu tio, irmão da minha mãe. O que mais gostava de fazer era reformar e vender chapéu. Comprou a fábrica a preço de banana, de uns alemães que estavam fugindo do Brasil”, conta Sérgio.
A Cury foi fundada por Miguel em 1920. “Quando comecei a trabalhar aqui, aos 18 anos, já era uma empresa respeitada, que produzia e exportava chapéus. Meu pai e eu tivemos de aprender a fazer um pouco de tudo. Mas, como nunca aprendi a lidar com mecânica, assumi a parte administrativa.” No decorrer dos anos, a empresa foi aumentando a produção e adquirindo máquinas modernas, provenientes da Europa. Quando o chapéu começou a cair em desuso, a Cury investiu pesado no mercado externo. Hoje, 30% da produção é destinada à exportação, tendo nos Estados Unidos e na Bolívia seus maiores compradores. “O que não significa que o brasileiro tenha deixado de usar o chapéu. Nossos grandes clientes estão no Sul e no Nordeste. O gaúcho e o nordestino ainda usam os modelos tradicionais. Já em Goiás e Mato Grosso, vendemos mais o country”, diz Paulo Zakia.
Os números da empresa não negam que existe mercado: por mês, a Cury produz entre 20 e 25 mil modelos. Em 2010, faturou R$ 30 milhões. “O segredo está em ir se adaptando ao gosto do consumidor, que muda com o tempo”, explica o diretor comercial, cuja expectativa é ampliar essa cifra a partir da mudança para a nova sede, também no interior de São Paulo.
Paulo não sabe o que virá pela frente. A única certeza é de que um dos chapéus mais famosos do mundo, fabricado por ele, continuará sendo a “menina dos olhos” da Cury. “Quando os filmes do Indiana Jones voltam a ser comentados, as vendas sobem.” Depois, explica: “Um de meus clientes americanos era patrocinador do filme e me pediu que criasse um chapéu para um herói de aventura. Ele descreveu o personagem, mas não disse que o ator seria o Harrison Ford nem que o filme seria aquele. Só descobri quando fui ao cinema e vi o meu chapéu na tela”. De lá para cá, a Cury fabricou cerca de 500 mil unidades do modelo Indiana Jones – com licença para importá-lo a vários países.
Nadir Furlan, subencarregada do setor de costura, orgulha-se de trabalhar na “fábrica do chapéu do Indiana Jones”. Segundo ela, é assim que muita gente identifica a Cury. “Sei que não é só isso. Essa é só uma parte da história. Mas também é a parte que fez a gente ficar conhecida no mundo todo, não é?” Atento ao fato de a costureira se referir à empresa como “a gente”, pergunto o que a Cury representa para ela. “Costumo dizer que isso aqui é a minha segunda família.” Nadir começou a trabalhar na fábrica em 1982 e nunca pensou em sair. Duas de suas irmãs trabalham com ela, mas em setores distintos. “Sempre fui costureira. Já costurei dois mil chapéus por dia, hoje são cerca de 800.”
Ela diz que o número de costureiras também já foi maior. “Há dois anos, havia 50 mulheres pedalando as máquinas. Hoje, somos 11. É que costureira é uma profissão em extinção.” A costureira acredita que sentirá falta do prédio em que trabalha há tantos anos. “Seria capaz de andar de olhos vendados por aqui. Conheço cada canto.” Ao mesmo tempo, manifesta curiosidade pelo novo. “Se for para o bem de todos e eles quiserem continuar contando comigo, por que não?”
Antônio Máximo, o moldador de chapéus, não sabe se será aproveitado na nova fase. “Enquanto não me mandarem embora, continuo trabalhando. E, se tiver de ir para outro lugar, tudo bem. A gente precisa trabalhar de qualquer forma. É a vida.” Ao meio dia em ponto, soa o apito da chaminé de tijolos, o único elemento, junto à fachada do prédio, tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico e Cultural de Campinas (CONDEPACC) – ela sobreviverá à demolição.
Para os operários que restaram, esse talvez seja o último horário de almoço na velha fábrica de chapéus. Ou o primeiro dos últimos, antes que sejam transferidos para a nova sede ou voltem em definitivo para suas casas. O desaparecimento do imóvel não será o fim do mundo, mas marcará o fim de um mundo cada vez mais raro e distante.
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