A família “mata” o casal

Quero logo esclarecer que não sou contra família, pelo contrário, tenho uma e me sinto muito contente por tê-la construído e cuidado. Mas formar e manter uma família tem um custo econômico e emocional que nem todos estão dispostos a pagar. O IBGE informa que, hoje, 17% dos casais brasileiros não querem ter filhos. Um tempo atrás, essa decisão seria impensável, uma vez que casar e ter filhos fazia parte de um pacote único. Não querer ter filhos era muito mal visto socialmente. E a mulher que por algum problema não podia ter filhos se via diminuída por não exercitar a maternidade, considerada uma das principais funções de sua vida.

Quando digo que a família “mata” o casal, me refiro a que, quando os parceiros decidem formar uma família, nunca mais voltam a ser o casal que foram. E esse aspecto deveria ficar muito claro antes de se ter um filho, para não acalentar a ilusão de que nada mudará entre eles. Porque ocorrerá exatamente o contrário: tudo vai mudar: do tipo de relação entre os parceiros até vida social; do relacionamento com as famílias de origem à economia, do sono à sexualidade… Tudo vai ser diferente. A presença de um terceiro (o filho) altera totalmente a dinâmica do relacionamento. As mudanças começam já na gravidez, durante os primeiros três meses, quando a mulher se sente muito alterada fisicamente, tem muito sono, não entende direito o que está acontecendo com seu corpo e volta sua atenção para dentro dela mesma, para a própria barriga.

Nesse momento, o marido já começa a sentir que ela não liga tanto para ele quanto ligava. E ele tem razão. Isso não quer dizer que ela deixou de gostar de seu marido. O problema é que esse é o significado que o homem costuma dar para o afastamento temporário da mulher. Ela está distante simplesmente por ter sido “tomada” por um processo intenso e arrebatador: a maternidade. Mas quando o marido não se sente partícipe desse processo, as coisas se complicam e o casal muitas vezes desanda. O homem costuma cultivar um sentimento de rejeição e a mulher, por sua vez, se sente sozinha e abandonada em um momento muito importante da vida dela. O pior é que ambos têm razão. O grande vilão da história é não conseguirem constituir uma dupla que curte a paternidade e a maternidade juntas, tolerando os percalços inerentes a esse processo.

Quando ambos insistem em recuperar o tempo passado, no qual reinava a paixão, em vez de se dar conta de que o relacionamento vai mudar pela escolha de querer se transformar em uma família, uma ruptura se instala. Um inconveniente para essa decisão é que ter filhos nunca é algo simples, objetivo. Trata-se de uma decisão ambivalente na maior parte dos casos: se quer e não se quer ter um filho. Até porque não se sabe verdadeiramente o que significa ter um filho até que o mesmo chega. Perguntamo-nos se seremos capazes, se daremos conta do recado, se teremos um filho normal, se será o momento mais adequado para recebê-lo… Enfim, um sem número de perguntas sem respostas que costuma invadir-nos nessas horas.

Outro fator que complica a decisão é quando um dos parceiros quer muito ter um filho e o outro concede, como ocorria em tempos passados, quando a mulher insistia em ter filhos e o homem acompanhava a ideia, porém não se sentia totalmente responsável pela decisão. Felizmente, os tempos mudaram e hoje os homens querem ter filhos e são bem mais participativos. Há, inclusive, pais que na separação querem ter a guarda ou a guarda compartilhada dos rebentos, situação totalmente diferente da que ocorria até pouco tempo.

Quando o casal decide ter filhos, deve pensar, para seu conforto, que a gravidez e os primeiros seis meses de vida da criança (os mais difíceis, diga-se de passagem) não duram a vida inteira. É apenas uma etapa. Mas é importante para poder atravessar essa etapa com competência estar bem informado a respeito do processo que vai acontecer. Caso se percebam angustiados ou observem que estão se desentendendo ou brigando, também é bom saber que há profissionais que podem ajudá-los. Pedir socorro não significa declarar incompetência. Pelo contrário, significa ter consciência de seus limites e da realidade complexa que estão atravessando.

Nos primeiros quatro ou cinco meses da criança, quando a mãe está aprendendo a lidar com ela, seu campo de observação fica absolutamente focado em tentar decifrar se o choro do filho é de fome, frio ou sono, uma vez que o bebê não fala e precisa ser “adivinhado”. Nessas circunstâncias, a mulher não consegue olhar para o marido da mesma forma que fazia, não pode dar a atenção de antes. Isso porque a mulher se sente muito responsável e por vezes abrumada em cuidar e proteger essa nova vida que tanto depende dela. Não há espaço para cuidar de um adulto, pelo contrário, o que ela precisa é de ajuda, cuidado e compreensão para sentir-se forte e poder dar conta do recado. Certos homens não aceitam essa distância da mulher e se autoexcluem, tanto do processo da gravidez como dos cuidados com a criança. Nesses casos, acham que o filho é apenas dela e, sem se dar conta, acabam por “responsabilizá-lo” por haver usurpado o seu lugar e os privilégios que tinha como marido antes de ele nascer.

Se o homem não consegue tolerar esse lugar, não consegue, ao menos por algum tempo, ficar em “segundo plano” e funcionar como uma figura muito importante, porém coadjuvante, pode sentir-se muito desnorteado e angustiado. Frequentemente, acaba por desenvolver condutas inusitadas, procurando ser recompensado pelo que pensa que perdeu: a sua mulher. Pode partir para um relacionamento extraconjugal ou empenhar-se em realizar alguma façanha, seja no trabalho ou nos estudos, à qual se dedicará de corpo e alma. A ideia por trás dessa conduta é implementar uma criação paralela, competindo com a da mulher. Ele não percebe que já realizou uma obra – o filho – e que basta apenas saber compartilhá-la. Outro escape comum é querer praticar um esporte radical ou algo da ordem do extravagante para chamar a atenção de sua mulher.

A esposa, por sua vez, não entende o comportamento de seu parceiro. Sentir-se-á “roubada” por essa conduta esquisita do marido que a deixa mais sozinha, sem seu apoio e ajuda. Quero esclarecer que tais atitudes não são tomadas de caso pensado, mas constituem fortes reações a sentimentos e emoções intensas, que se tornam por vezes intoleráveis. A mulher, no período da lactância, por causa de um hormônio chamado prolactina, que estimula a produção do leite materno, tem sua libido diminuída, o que prejudica sua vida sexual.

São ainda momentos de muita turbulência, para a mãe que tem de cuidar da criança e da casa, que muda sua rotina para se adaptar a essa nova pessoinha, e muitas vezes com a volta ao trabalho. Nessa hora, seu interesse sexual irá para o espaço. O marido então se pergunta: “Onde está minha mulher? Aquela que eu tinha? Ela tirou o plugue da tomada?”. Com calma, as coisas podem voltar relativamente bem a seus eixos se não for iniciado um ciclo de reclamações e cobranças mútuas. Afinal de contas, deve-se considerar que o casal foi tomado por um “tsunami”. A liberdade de sair à noite, de encontrar os amigos, de passar horas na balada não existe mais. A tranquilidade e o silêncio de outrora foram substituídos por choro, noites mal dormidas, angústias e preocupações em relação ao bom desenvolvimento do filho. Provavelmente, se perguntarmos a uma mãe que se encontra entre tantas demandas o que mais deseja, sua resposta será: “DORMIR oito horas sem interrupções! Sexo? O que é isso?”.

Outro aspecto que costuma perturbar o relacionamento do casal é quando a mulher tem de voltar a trabalhar e ela percebe que a criança por ser muito pequena ainda precisa muito dela. Esse desprendimento precoce é particularmente dolorido, especialmente quando a mulher tem de se afastar por oito horas. Nesses momentos, algumas mulheres responsabilizam seu parceiro por sua angústia de separação, pensando que se o marido ganhasse mais dinheiro, elas poderiam ficar com o filho por mais tempo. Em países mais ricos e desenvolvidos, a licença maternidade se estende por até dois anos, podendo inclusive se escolher e alternar entre o pai e a mãe para ficar em casa. Algo bem mais reconfortante. Para lidar melhor com nossa realidade, na medida do possível, o casal deveria se programar para que a mulher pudesse reduzir seus ingressos econômicos por um tempo para poder cuidar melhor da criança. Nesse sentido, uma família tem de ser programada para quando puder assumir as múltiplas mudanças que inevitavelmente se acarretam, para que o casal possa transpor essas alterações e construir para si uma nova realidade que ainda seja satisfatória.


*Psicanalista e terapeuta de casal e família, é supervisora de Família na Clínica de Anorexia e Bulimia da PUC-SP e autora do livro Introdução à Terapia Familiar (Editora Claridade), entre outros.


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