Hoje em dia, as informações nos chegam aos montes, enxurradas de signos vindos de tantos lados e de não sei quantos canais que, geralmente, não consigo mais me lembrar de onde foi mesmo que li tal ou qual texto sobre isso ou aquilo. No caso presente, tento me lembrar de onde li um artigo sobre o poder de mando da FIFA, neste momento, no Brasil. Não tenho certeza, mas acho que foi um artigo do jornalista e biógrafo Ruy Castro, veiculado pela Folha de S.Paulo. De qualquer sorte, vamos lá.
É, de fato, impressionante. De Castro ou não, no artigo que li, o autor perguntava: “Quem manda hoje no Brasil?”. É claro que, na lista dos mandantes, figuravam o ex-presidente Lula e a atual presidenta Dilma Rousseff. Mas, também, a FIFA. Sim, a FIFA. E com um tremendo poder, decidindo sobre a localização, a construção ou a reconstrução de coisas variadíssimas, em um leque que vai de piscinas a avenidas. A FIFA decide sobre a nossa mobilidade urbana tanto quanto sobre nomes de estádios (me recuso a chamar estádio de “arena” – é ridículo). Um poder excessivo. Exorbitante, como se dizia antigamente. E sua ingerência não é somente física, mas, também, cultural.
Em contrapartida, está faltando autoridade por aqui. Gente que não tenha medo de chutar a porta e bater na mesa. E não faço nenhuma defesa da truculência, não. Apenas acho que há momentos em que é preciso saltar com os dois pés no peito do porteiro, como diria meu amigo Paulo Leminski. No caso, com os dois pés no peito da FIFA, que agora simplesmente resolveu, entre outras coisas, proibir o consumo de acarajé nas redondezas do estádio da Fonte Nova, em Salvador – estádio que, aliás, deveria ter permanecido tal e qual o arquiteto Diógenes Rebouças o concebeu e fez uma obra-prima da arquitetura modernista na Bahia, durante o governo de Otávio Mangabeira, em inícios da década de 1940: um morro escavado fundo, com a brisa do Dique do Tororó refrescando a nossa cara e a arquibancada descaindo em prateleiras.
Pois é. Durante a Copa do Mundo, baiano não vai poder comer acarajé enquanto a bola rolar em campo. A FIFA impôs um cordon sanitaire. Tabuleiro de acarajé tem de ficar longe do estádio. Nenhuma “baiana” num raio de 2 km é o que se diz. Em termos paulistas, o sujeito que quisesse comer um acarajé, em dia de jogo, teria de se deslocar do Pacaembu para o MASP, por exemplo. Em termos cariocas, da Praça General Osório para o “baixo Gávea”, mais ou menos. Enquanto isso, Özil, Messi ou Neymar teriam feito um belo gol? É demais.
Se hoje não tivéssemos na Bahia uma vasta população de bananas e contássemos com um governo claro, com personalidade forte, teríamos criado um problemaço. Imagino até os discursos que seriam desfiados, arengas em vez de arenas: gringo nenhum vai entrar aqui para dizer o que podemos e o que não podemos comer; gringo nenhum vai entrar aqui para humilhar a cultura baiana; gringo nenhum vai chegar aqui para mandar dizer que as coisas vão acontecer assim ou assado, etc.
Aliás, podem dizer o que quiserem do velho Antonio Carlos Magalhães. Mas ele não aceitaria isso. Daria uma banana para a FIFA. E, se fosse o caso, contaria com a cumplicidade orgulhosa do povo baiano para dizer: “Aqui, não, aqui vocês não vão dar ordem porra nenhuma, quem manda aqui somos nós, os baianos, e vamos comer o que sempre comemos e gostamos de comer”. Claro: Jorge Amado, Dorival Caymmi, Glauber Rocha, Caetano Veloso, etc. fechariam totalmente com uma atitude assim. E a confusão estaria criada. Se a FIFA não recuasse, veríamos o afoxé dos baianos unidos, impávidos e narcísicos (Copa para quê? – não precisamos disso… Temos Tieta, Itapoã, Cinema Novo, Tropicália). Se recuasse, tudo bem.
Mas não temos hoje quem tenha coragem de peitar nada. Que tenha disposição para mandar a FIFA “tomar no fiofó”, como dizíamos tempos atrás. E proclamar alto e bom som que a gente vai continuar curtindo o nosso bom e velho acarajé. Que não aceitamos agressões culturais, humilhações antropológicas, coisas do gênero. Mesmo porque, o acarajé não só tem uma longa e bela história (refletindo-se, inclusive, em nossa criação estética), como é um produto cultural e psicologicamente mais do que interessante. É a nossa grande (e explícita) expressão edipiana.
Não estou brincando, não. O fazimento do acarajé tem um aspecto surpreendente. O principal elemento utilizado é o feijão fradinho. O feijão é colocado em um vasilhame com água, para a retirada de sua casca. Feito isso, é ralado na pedra. E aqui, antes mesmo da massa ser remexida com uma colher de pau (e frita no azeite), é que está o interessante da coisa. Antigamente (antes do uso do liquidificador), o feijão fradinho era ralado. Para isso, usava-se a chamada “pedra de ralar”. Na verdade, duas pedras: a “mãe” (a pedra maior, com cerca de 50 cm de comprimento) e o “filho” (a pedra menor, com cerca de 30). A pedra menor era movimentada para frente e para trás, sobre o corpo da maior, moendo assim o feijão. Em iorubá (ou já com pronúncia iorubaiana), a pedra maior é chamada “ialó” – formada de iyá (mãe; como em ialorixá) e oló (ló, aló), que significa ralar. Ou seja: a mãe que rala, a mãe que roça. Já a pedra menor é dita “omoló”, expressão composta de omo (filho) e do mesmo oló – o filho que rala, o filho que roça. Assim, é do roça-roça da mãe e do filho (da pedra-mãe e da pedra-filho) que nasce o acarajé.
Em seu livro A Anatomia do Acarajé, o antropólogo Vivaldo da Costa Lima, mestre em estudos alimentares, informa ainda que a pedra-filho era também conhecida por omorin oló, que, em iorubá, quer dizer o que cobre, o que fica por cima. E vem daí uma contribuição ao léxico erótico-sexual dos baianos, devidamente assinalada pelo antropólogo. Depois de observar que estamos diante de uma “terminologia vagamente incestuosa, do filho sobre a mãe, Vivaldo acrescenta: “O que eu pretendo mesmo dizer é que esse nome de oló, de ralar, de moer na pedra é que originou a expressão popular, saída dos candomblés, para caracterizar ‘mulheres do oló’ (ou do aló), isto é, as mulheres de inclinação homossexual, as mulheres lésbicas, pois. Também se usa na Bahia a variável ‘ralar coco’, certamente derivada da metáfora do oló. ‘Mulher que roça’ é o mesmo que mulher que ‘rala’ e indica, nos terreiros, nos ‘fuxicos do candomblé’, a condição homoerótica da mulher”.
Bem. É tudo isso que a FIFA está proibindo. O maravilhoso bolinho de feijão no dendê, comida de Oiá-Iansã, com sua dimensão edipiana e seu reflexo no vocabulário sexual dos baianos (hoje, já dos brasileiros). Um tópico fundamental da cultura baiana, elemento dos ritos do candomblé e da alimentação de um povo. E ninguém, a não ser as próprias vendedoras de acarajé, as “baianas”, levanta a voz para protestar.
Entendo muito bem que um megaevento altere a vida de um lugar. E que isso pode ser direcionado para coisas positivas, altamente relevantes, como vimos em Barcelona. Naquela ocasião, os espanhóis deram outra riqueza a áreas de Barcelona, em um intenso diálogo criativo com a sua própria cultura arquitetônica. Algo bem diferente, aliás, do espantoso surto de exibicionismo tecnológico colonizado, culturalmente submisso, que vimos depois em Pequim.
E o Brasil? E a Bahia? Não temos mais urbanistas? Parece que não. Lúcio Costa se foi sem deixar herdeiros significativos. E, em vez de aproveitar a oportunidade da Copa do Mundo para promover belas mudanças em nossos cenários urbanos, estamos aproveitando a oportunidade para sermos mandados, das opções de transporte público à culinária. O lance da proibição do acarajé, na Bahia, é apenas um exemplo expressivo do baixo espetáculo de omissão e submissão que estamos encenando para nós mesmos e para o mundo. Mas, enfim, é isso mesmo, Dona Dilma. E viva a soberania nacional.
Até o fechamento desta edição, a FIFA não havia comunicado ao governo baiano a liberação da venda do acarajé durante a Copa, como foi noticiado.
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