Quando dava banho em sua filha, Eleonora, a advogada Eugenia Zerbini sempre repetia: “Esse corpinho é seu. Lembre-se sempre disso. Para tocar nele, as pessoas precisam pedir licença”. A menina já estava com 5 anos quando a avó, a advogada Therezinha Godoy Zerbini, célebre por liderar o movimento pela Anistia no Brasil, resolveu dar banho na neta. Houve resistência.
– Precisa pedir licença! – avisou Eleonora.
– Que licença que nada! Onde já se viu? – revidou Therezinha, uma mulher “com poder de mando”, como ela própria se define.
O que Therezinha não sabia era o drama escondido por trás da reação da neta. A menina tampouco sabia. Só entendeu a insistência de Eugenia em alertá-la para proteger o corpo depois de completar 16 anos. Eleonora foi a primeira pessoa a saber o que tinha acontecido com a mãe na tarde da sexta-feira 13 de fevereiro de 1970. Filha do general Euryale de Jesus Zerbini, um dos quatro generais do Exército a resistir ao golpe de 1964, Eugenia foi violentada na sede da Operação Bandeirante (OBAN), o centro de repressão e tortura financiado por empresários, que reunia militares das três Forças Armadas e policiais civis na rua Tutoia, em São Paulo. Eram quase 15 horas quando Eugenia chegou à OBAN, com a intenção de entregar uma maleta com artigos de uso pessoal para a mãe, Therezinha, presa dois dias antes.
– Sou filha do general Zerbini. Quero falar com o oficial do dia – disse Eugenia na entrada, usando um termo que conhecia desde criança, em referência ao militar responsável pela rotina de um quartel.
Àquela altura, o general Zerbini estava cassado. Quase seis anos antes, em março de 1964, o militar tentou resistir ao golpe que derrubou o governo João Goulart. Recém-destacado para o comando da Infantaria em Caçapava, no interior paulista, ele acabou preso no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro. Depois de integrar as fileiras do Exército por quase quatro décadas, o general legalista voltou para casa no dia 22 de maio. Nos primeiros tempos, passava os dias lendo na sala da construção modernista projetada para a família pelo arquiteto Plínio Croce no bairro do Pacaembu. Na sequência, decidiu fazer pós-graduação em Filosofia, na Universidade de São Paulo (USP). Com a orientação da filósofa Marilena Chaui, chegou a redigir um trabalho sobre o pensador francês Maurice Merleau-Ponty. Mais tarde, com o novo regime cada vez mais consolidado, Zerbini não teve outra alternativa a não ser a área civil. Embora os ventos fossem adversos para militares cassados, ele conseguiu emprego como gerente da Indústria de Papel Simão, em Jacareí, a 80 km de casa. Passava apenas os finais de semana com a família em São Paulo, onde chegava no começo das noites de sexta-feira.
Congresso de Ibiúna
Vinte anos mais nova que o marido, Therezinha era formada em Direito e trabalhava como tesoureira dos Correios, no centro paulistano. Envolvida com a política desde os tempos do getulismo, ela atuava na resistência ao regime que tinha expulsado seu marido da caserna. Chegou a esconder na casa de sua mãe, Arminda, o cabo José Anselmo dos Santos. No sobrado do bairro do Cambuci, o então líder marinheiro ficava no quarto de costura, que não tinha janelas para a rua. Therezinha jamais imaginaria que o homem doce, em cujos braços sua mãe estendia fios de lã para reorganizar novelos, seria desmascarado mais tarde como um traidor. Ela também não imaginava que seu nome cairia nas mãos da repressão por causa do congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE), que terminou com cerca de 700 estudantes presos na cidade paulista de Ibiúna, em outubro de 1968.
O envolvimento de Therezinha com o encontro dos estudantes foi uma casualidade. No segundo semestre daquele ano, o general estava trabalhando em Jacareí, quando ela recebeu a visita do sitiante Domingos Simões. Filho do zelador de um prédio em São Paulo, Simões havia escapado do serviço militar com a ajuda do general Zerbini. Era um episódio do passado, mas ele continuava ligado aos Zerbini e gostava de retribuir o antigo favor, levando legumes e verduras do seu sítio para a família. Tinha acabado de entregar umas abóboras a Therezinha quando chegou o frei Tito de Alencar Lima, do convento dos dominicanos. O religioso estava atrás do general, seu colega de turma na pós-graduação na USP. Acabou contando a Therezinha que procurava um lugar que pudesse sediar um congresso da UNE, então na ilegalidade. Na mesma hora, ela apresentou frei Tito a Simões e os dois começaram as tratativas para usar o sítio de Ibiúna. Por causa disso, Therezinha responderia a um Inquérito Policial-Militar e seria indiciada em dezembro de 1969.
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Estátua de sal
Na Quarta-feira de Cinzas de 1970, Therezinha jantava com o marido e a filha Eugenia na casa do Pacaembu quando tocaram a campainha. O outro filho do casal, Euryale Jorge, mais novo do que Eugenia, estava no Rio de Janeiro, na casa do general Luiz Tavares da Cunha Mello, também cassado pelo golpe. O período era de férias escolares. Antes, Marcos, filho de Cunha Mello, havia passado o Carnaval com os Zerbini em Campos do Jordão. Na casa do Pacaembu, a empregada, Lita de Aragão, atendeu à porta e disse que “um tal” capitão Guimarães queria falar com Therezinha. Eugenia se lembra em detalhes daquela noite. “Eu, com 16 anos recém-completados, achava que entendia de muita coisa e comentei que devia ser alguém pedindo carta de apresentação para o tio Eurípedes”, conta Eugenia, referindo-se ao irmão do general, o médico Eurípedes de Jesus Zerbini, que realizou a primeira cirurgia de transplante de coração no Brasil. “Embora meu pai estivesse cassado, muita gente, principalmente do Exército, recorria a ele ou à minha mãe quando precisava de alguma coisa.”
Therezinha mandou abrir a porta para a visita, mas estava sentada de costas para a entrada. Só o general, na cabeceira da mesa, e Eugênia, de frente para as escadas que levam à porta principal da casa, viram descer três homens sem farda nem identificação, dois deles com metralhadoras. O que estava desarmado se apresentou como capitão Guimarães e disse que tinha ordens de levar Therezinha para a OBAN. “Tive a impressão de que o ar poderia ser cortado com uma tesoura, de tão denso que ficou”, lembra Eugenia. “Minha mãe perguntou se poderia terminar de jantar e pediu que eles esperassem na sala. O nosso cachorro, o Zorba (um poodle), entrou latindo, o que quebrou um pouco o gelo. Mas meu pai já tinha se levantado. Ele era muito calmo, mas se levantou como um general. Começou a andar em direção ao telefone, como se fosse ligar para o comandante do II Exército, que supostamente era a patente mais alta em São Paulo.”
– A quem vocês se reportam? – perguntou o general Zerbini.
– É um órgão novo. Não é do seu tempo – respondeu um dos militares sem farda.
Therezinha, por sua vez, se dirigiu ao marido:
– Não peça favor para ninguém. Eu entrei nisso sozinha, eu saio disso sozinha.
Esse é bem seu estilo. Não por acaso, Eugenia costuma repetir, mesmo na frente da mãe, que é filha de general, mas foi criada por um sargentão. Enfim, naquela noite, assim que terminou o jantar, Therezinha subiu com a filha para o terceiro pavimento da casa, onde até hoje fica seu quarto. Escovou os dentes, tirou da bolsa a caderneta de telefones e colocou a carteirinha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Chegou a pensar em levar uma muda de roupa. “Eu mesma disse que levar roupas seria como assinar uma confissão de culpa. Argumentei que ela deveria ir como se fosse da outra vez, para prestar depoimento e voltar para casa. Combinei que, se ela não voltasse no dia seguinte, eu levaria as coisas dela. Então, foi uma ideia minha. Ela poderia ter me enquadrado, falado que a OBAN não era lugar para crianças, para moças, mas tinha tanta coisa para pensar. As coisas foram como foram.”
O general passou a noite em claro, na sala. Na manhã da quinta-feira, antes de seguir para o trabalho em Jacareí, perguntou à filha se queria ir para a casa da avó ou de uma de suas tias. Ao mesmo tempo, ponderou que seria melhor que ficasse na casa, com a empregada, para o caso de telefonarem dando notícias de Therezinha. Ninguém ligou. Na sexta, às 14h30, Eugenia chamou um táxi do ponto da rua Professor João Arruda, em Perdizes, o mais próximo de sua casa. Ao embarcar, levava para a mãe um malinha com artigos de higiene pessoal e roupas de baixo: “Eu sabia um pouco do risco que estava correndo. Ouvia as conversas dos meus pais. Tinha medo de ver sangue, de ver uma cena de tortura, mas eu não pensei que eu iria responder por esse ato com o meu próprio corpo”. Pouco antes das 15 horas, ela chegou à sede da OBAN, se identificou como filha do general Zerbini para o homem à paisana na porta e pediu para falar com o oficial do dia.
“Naquela época, ninguém sabia quem era um general da ativa ou um reformado. Só quatro generais foram contra o golpe. Em todo o caso, eu era filha de uma autoridade. Não falei que me chamava Eugenia. Enfim, esse sujeito me acompanhou até uma espécie de recepção, no mesmo piso. Daí, ele entrou e voltou rápido. E me mandou entrar. Não andei muito, não subi nenhuma escada, não atravessei nenhum labirinto de corredores. Era algo próximo. Eu não estava muito longe da entrada”, recorda Eugenia. “A única coisa que me chamou a atenção foi o fato de a sala ser muito despida. Tinha só uma mesa e duas cadeiras. Mais nada, nenhuma folhinha na parede, nada.” Pouco depois, entrou um homem sem farda nem identificação, e sentou-se na cadeira em frente à de Eugenia: “Tinha uns 30, 35 anos. Tinha cara de ruim? Nem ruim nem bom. Nem feio nem bonito. Tenho certeza de que era mais alto do que eu. Eu tenho 1,65 m. Muito mais forte? Os homens são mais fortes que as mulheres”. Eugenia se lembra ainda que ele não tinham cabelo “de reco” (recruta). Na época, militares vinculados aos porões da repressão usavam cabelos mais longos, como se fossem civis. Diante desse homem, Eugenia mudou o discurso. Disse que era filha de Therezinha Zerbini, que a mãe estava detida e pediu que lhe entregasse a malinha com objetos pessoais.
– O que a sua mãe está fazendo aqui? Por que prenderam sua mãe? – perguntou o homem.
– Os senhores é quem devem saber. Os senhores é que prenderam – respondeu a filha do general.
“Era verdade, mas quis fazer um pouco de ironia. Daí, eu me levantei e ele me agarrou. Por que não gritei? Gritar na Operação Bandeirantes? E o medo que ele me desse um murro e me arrebentasse os dentes? E o medo de que as coisas pudessem ficar muito piores? Eu fiquei paralisada. Tinha me preparado para ver sangue, ouvir gritos, mas isso eu nunca imaginei. A porta estava fechada. Estava trancada? Eu não sei. Juro que não sei”, diz Eugenia. “Quando acabou, ele abriu a porta. De repente, vi que estava na porta para a rua. Eu nem olhei para trás. Nem queria saber como cheguei naquela porta. Queria ir embora, ficar longe daquilo. Tanto que enquanto andava na rua Tutoia, procurando um táxi, eu falava para mim mesma ‘vai, vai, não olha para trás’. Naquela hora, veio a ideia da Bíblia, de Sodoma e Gomorra, porque a mulher de Lot, ao sair da cidade, desobedece Deus, olha para trás e vira uma estátua de sal.”
Google Imagens
Eugenia voltou para casa e não contou para ninguém o que tinha acontecido: “Papai poderia fazer uma loucura. Quando eu nasci, ele tinha 46 anos. Fui a primeira filha. A mulher que ele amava estava presa e eu dizer que tinha acontecido aquilo comigo? Contar para a minha avó Arminda, a mãe da minha mãe? Dar essa dor para ela? A filha dela já estava presa. As duas filhas, porque junto com a minha mãe foi presa a minha tia Antonieta. Era uma política de intimidação. Imagine que tia Antonieta assinava Maria Antonieta, por causa da rainha da França. Apesar de ter ficado viúva muito cedo, a vida para ela era uma bolha de sabão. Não tinha consciência política nenhuma. Só havia hospedado o Simões (o dono do sítio de Ibiúna), a pedido de minha mãe. Contar para os meus colegas do Colégio Rio Branco, que diziam que eu era filha de comunista? Nessa época, a classe média e a classe média alta estavam eufóricas. Ganhavam rios de dinheiro no mercado financeiro. As pessoas estavam pouco se importando com a tortura. Eu queria sumir”.
Eugenia seguiu em frente. Nos oito meses em que sua mãe esteve presa, ela assumiu o comando da casa do Pacaembu: “Cresci ouvindo minha mãe dizer que eu precisava ser forte. Foi assim quando o meu pai foi preso, em 1964. Então, quando ela estava presa, eu precisava fazer alguma coisa que a deixasse feliz. E fui muito forte”. Formada em Direito pela USP, mestre e doutora em Direito Internacional, Eugenia fez carreira como alta executiva do setor financeiro, inclusive como uma das vice-presidentes do Citibank em Nova York. Foi também professora universitária. Hoje, aos 60 anos, ela trabalha em uma biografia da imperatriz Teresa Cristina, mulher de D. Pedro II. Seu romance de estreia, de 2004, o premiado As Netas da Ema, relata uma cena de estupro: “Aquele é uma ficção”. A própria violação Eugenia decidiu trazer a público pela primeira vez, na Brasileiros, por considerar que era uma história muito mal digerida: “Já passei horas no Google Images atrás de fotografias dos antigos torturadores, tentando identificar aquele homem.
Agora, com a abertura dos arquivos, com a Comissão da Verdade, as pessoas falam. O meu depoimento será considerado. Antes, a maior dor que poderia me ser infringida, se não fossem suficientes as dores do dia 13 de fevereiro de 1970, seria duvidarem do meu relato”. Quarenta e quatro anos depois, Eugenia conta com o apoio da confidente original, a filha Eleonora Zerbini, autora da fotografia ao lado. Aos 19 anos, a fotógrafa Eleonora é aquela menina que enfrentou a avó na hora do banho.
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