Na última década, uma nova onda de jovens escritores brasileiros vem trazendo ar fresco às publicações pós-ditadura que inundaram a literatura nacional, com temas que, geralmente, abordavam o asfixiante passado linha dura ou os arrabaldes das grandes cidades brasileiras. Uma nova lógica do mercado editorial, com a literatura na web assumindo forma por meio dos blogs, contribuiu para a divulgação de escritores que até então guardavam seus copiões empoeirados nas gavetas, quer dizer, nas pastas virtuais dos computadores. Por meio do contato com novos leitores, muitos conseguiram conquistar um espaço privilegiado – e tão almejado – nas prateleiras das bookstores. Alguns autores que perfazem outro caminho – o das universidades, principalmente – conquistam concursos literários, ministram aulas e produzem conhecimento científico com a publicação de artigos acadêmicos e traduções, até receberem cartas de aceite das editoras.
Em meio às borbulhantes novidades literárias de uma “geração 2000”, cuja principal característica é a diversidade, duas escritoras firmam-se em meio à multidão: a poeta Angélica Freitas e a romancista Tatiana Salem Levy. Ambas têm apenas um livro publicado e vigor literário em potencial – únicas características, aliás, que as aproximam.
O eu-lírico e outros “eus” nem tão líricos assim
“Comecei porque adorava a máquina de escrever do meu avô. Quando tinha 8 anos, me apaixonei por ela. Mas meu pai, herdeiro da máquina, não a emprestava. Dizia que eu precisava fazer um curso de datilografia. Então, quando ele saía para trabalhar, eu pegava a máquina”, conta Angélica. Da máquina do avô, passando por outra, dada de presente por amigos aos 16 anos, a poeta foi cursar jornalismo – para ela, a pior profissão para um poeta. Hoje, desdenhando a si mesma e aos repórteres, não dispensa doses consideráveis de ironia e acidez com as quais responde às perguntas – sem nunca soar presunçosa ou petulante, mas mascarando uma timidez que é latente perante o público. Na VII Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), enquanto seus colegas da mesa Evocação de um poeta prolongavam explanações sobre o fazer poético, Angélica sempre recorria ao também poeta Manuel Bandeira para escapar das perguntas, afinal, “prefiro ler poesias a falar sobre elas” – não deixou de reafirmar.
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Angélica Freitas é uma poeta que veio dos blogs. Ao longo de sete anos (percurso iniciado em 2002), produziu poesias mescladas a comentários autobiográficos, pequenas passagens diárias e outras elucubrações. Rilke Shake, seu livro de estreia, reúne alguns dos poemas escritos diretamente no blog – coletânea modesta que já no título não deixa escapar a ironia que acompanha grande parte do conjunto. Em Angélica, a poesia decanta enquanto necessidade – escreve porque sente, em forma quase táctil. “Não decido ‘inventar’ um poema a menos que me encomendem, ou que eu me proponha a escrever uma série”, diz sobre o quanto há de inspiração e transpiração no seu fazer poético, o que não quer dizer que a essa inspiração inicial, normalmente na forma de frase isolada que dá corpo ao resto do poema, não decorra um processo de lapidação no qual se corta muito dos excessos. Ainda assim, não dispensa papel e caneta para os rompantes.
Natural de Pelotas, cidade que reserva fama nacional pela suposta homossexualidade, a questão do gênero emana com frequência em seus poemas. “Nasci em uma região muito conservadora, onde os homens são insuportavelmente machos.” Para ela, não há como separar tais questões de sua escrita e, ao contrário, traça com requinte e em um tom bastante descomprometido a pressão por haver transgredido normas. Assim, frequentemente subverte preconceitos transfigurando-se em eu-lírico masculino.
Desde 2006, a autora traduz poesia, encerra um roteiro para uma novela em quadrinhos e edita, com Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ricardo Domeneck, a revista Modo de Usar & Co. Atualmente, Angélica refugia-se na Argentina, e diz que parou de ler blogs, substituindo-os por livros. Em seu antigo endereço (ainda disponível em loop.blogspot.com), ela se despede assim: “Este blog termina aqui. Creio haver cumprido minha missão, pois nele plantei uma árvore (uma bananeira que dá banana), tive um filho (ou vários, no sentido figurado) e escrevi um livro. Obrigada pela preferência, ao longo de sete anos, senti-me tão bem-sucedida quanto uma padaria 24 horas em zona nobre de São Paulo”. Deste sepultamento simbólico, Angélica parte para seu livro – e os leitores fazem o mesmo.
Eu sou ela, ela é outra
O romance de estreia de Tatiana Salem Levy – A chave de casa – foi também sua tese de doutorado. Ela nega que a trajetória acadêmica possa tê-la ajudado no acesso às editoras, e responsabiliza um conto publicado na coletânea 25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Editora Record) pela conquista de seu lugar ao sol no mercado editorial.
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Recebido pela crítica com elogios, o texto atraiu a editora portuguesa Cotovia, que lançou seu romance no mercado lusitano. Coincidentemente ou não, o livro de Tatiana nasceu em Portugal – assim como ela que, natural de Lisboa, veio ao Brasil ainda bebê -, para depois ser editado no Brasil pela editora Record.
“Para mim, é quase como se fossem duas Tatianas – a Tatiana acadêmica e a Tatiana escritora! Eu não faço muita ponte entre uma e outra!” Tentando diminuir o excesso com que as reportagens tentam aproximá-la do academicismo, a autora confessa que o interesse literário a acompanha desde pequena. Por isso, quando teve de escolher um curso universitário, optou por Letras, para manter-se próxima da literatura. “Porém, há um defeito da faculdade de Letras – ela contraditoriamente te afasta muito da Literatura”, critica a autora. Tratada como disciplina nas universidades, a Literatura perdeu seu status de arte para tornar-se um objeto excessivamente teórico. “Chegou uma hora que eu lia muito mais teoria literária do que ficção. Inclusive, eu não podia nem ler um livro de ficção se não tivesse um lápis na mão. Era uma obsessão!”, arremata, rindo.
Mesmo assim, a autora de currículo acadêmico invejável (Tatiana agora faz pós-doutorado), não deixou que a influência e rigidez acadêmicas se impusessem à sua necessidade de expressar-se por meio da escrita. Quanto à presença da Tatiana teórica no processo criativo, diz não se incomodar. “Eu esqueço que ela existe, na verdade. Claro que tem uma coisa minha de estar preocupada com a estrutura, com a narrativa, mas eu acho que mesmo sem a teoria essas preocupações existiriam, pois acho que escrever é como você escrever”, referindo-se ao fato de que mais do que a história contada, é o modo como essa história pode ser narrada.
O texto de Tatiana, cunhado como autoficção, traz referências explicitamente biográficas unidas à invenção, sem que haja muita distinção entre o que foi vivido daquilo que é pura fábula. Sobre essa questão, Tatiana diz explicar de acordo com seu humor. “Cada hora respondo de uma maneira: tem dias que falo ‘É tudo mentira!’; em outros, digo ‘É quase tudo verdade!’”, comenta rindo. Ela também diz não ser um acúmulo de fatos que se interconectam e dão sentido à história, mas uma série de imagens que vão se sobrepondo e, assim, pode ser traçada uma cronologia. Por isso, é tão referida enquanto essa escrita de caráter memorialista, igualando-a ao modo como na vida as lembranças estão sempre fragmentadas, mas juntas produzem a sensação do todo e daquela nostalgia que vai permeando o presente. Finalista do Jabuti 2008 na categoria Romance, do 6o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon e vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura como autora estreante, Tatiana Salem Levy diz que os prêmios deram visibilidade a si e ao livro, aumentando consideravelmente o número de leitores. “Mas agora também vejo um pouco como uma pressão”, sobre a produção de um novo livro e a cobrança que ela acarreta. Para além das expectativas futuras – aliás, coisa pouco em voga nas novas gerações -, Angélica e Tatiana já têm a chave para continuar mexendo, com amor, ovomaltine e lugar privilegiado na nova literatura brasileira.
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