Flávio Augusto era um advogado bem-sucedido. Homem culto, trabalhava pesado no prestigioso escritório Varella, Fagundes, Lacerda e Morelli Advogados. Tinha competência e paciência. Era equilibrado e muito considerado. Além do mais, era profissional de alta produtividade, diziam seus colegas. Tinha um hábito entranhado, inofensivo à luz do que se via no Varella, Fagundes, Lacerda e Morelli Advogados. No meio da tarde – um pequeno recreio -, lia suas abobrinhas web: mensagens de esperança e pânico, mulher pelada, piadas, correntes de salvação e algumas pequenas sacanagens. Certa tarde, veio o link: se você fosse cachorro, que cachorro seria? Ele achou aquilo intrigante. Sem a menor necessidade, mas com um decidido clique, foi descobrir que cachorro seria. Por seu porte, sobriedade, serenidade e humor imaginou-se um Labrador. Talvez um Golden Retriever ou até mesmo um Pastor Alemão. Tinha-se em boa conta.
Intrigado, foi respondendo às perguntas. Cada qual apresentava uma lista de dez opções. As perguntas eram sobre preferências por livros, escritores, música, compositores, cantores, cantoras, pintores, atores e atrizes. Por fim, esportes, essências e sabores. As alternativas eram sofisticadas. Supôs coisa séria. Foi respondendo e imaginando qual seria o processo por detrás. Decerto haveria correlações de aspecto e personalidade. Quem sabe algumas psicóticas? Talvez algumas inferências sobre agilidade, combatividade, inteligência e fidelidade. Respondeu tudo com muito cuidado e logo e veio a resposta: Cocker Spaniel.
Que decepção! Nunca se imaginara um Cocker Spaniel. Nunca se sentira de companhia. Nem carente, do olhar caído. Tampouco intolerante à solidão, incapaz de ficar consigo! Pensando ter havido engano, respondeu de novo, com pequenas modificações. Deu Cocker Spaniel outra vez!
Voltou a trabalhar, mas ficou com aquilo na cabeça. Por que aquelas respostas o definiriam como Cocker Spaniel? Talvez tivesse uma imagem errada de si. Não é assim com todo mundo? O assunto não saiu de sua cabeça. Em poucos dias estava de volta ao questionário, com uma nova atitude. Em esporte, respondeu boxe, mais agressivo. Escolheu um autor menos deprimido: mudou de Coetzee para Bryson, claramente mais Labrador. Esperou a resposta e deu Cocker Spaniel. De novo.
Seria ele um Cocker Spaniel? Filosoficamente considerou que um Cocker Spaniel não sabe que é Cocker Spaniel. Deixou o assunto de lado. Não falou com ninguém, nem poderia, mas o incômodo estava lá, latente. Voltou muitas outras vezes ao teste, com muito cuidado. Com método. Só dava Cocker Spaniel.
Certo dia, em plena tarde, clicou no fale conosco e num instante engatou conversa com o responsável. Era um estudante de Ciências Comportamentais que testava a hipótese de Jaworski, logo explicada de forma simplificada: quem diz que não é, é. O trabalho já fora concluído e publicado no exterior, em revista científica internacional, indexada. O site ainda estava no ar por descuido, desculpou-se o rapaz.
Questionado, explicou seu método: qualquer que fossem as respostas, sempre dava Cocker Spaniel. A imensa maioria não se importava com isso. Alguns poucos o procuraram. Estes, incomodados, foram então longamente entrevistados. Daí resultou um perfil. O senhor, disse confiante, deve ser um profissional liberal, com mais de 45 anos, mais de um metro e oitenta, casado e com filhos. Tem inseguranças afetivas, certamente gosta de Diamante Negro e, provavelmente, de manjar branco. Flávio Augusto, assombrado, não soube o que dizer. Desligou o telefone bem devagarzinho.
Naquela tarde, ficou prostrado em sua sala. Murcho, borocoxô. Derrubado. Desconsolado e abatido. Como um Cocker Spaniel preso em área de serviço.
*Marcos Rodrigues é engenheiro civil , professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.
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