Apaixonado por música desde a infância, passei a escrever e a bancar a produção de meus primeiros fanzines, feitos na base da fotocópia, aos 14 anos. Foi quando também comecei a cultivar o saudável hábito de pesquisar, pesquisar e jamais me sentir saciado das descobertas musicais que fazia. Obsessão esta que me levou a um precoce colecionismo e, tempos depois, no começo dos anos 1990, a frequentar um sem número de inferninhos da minha amada São Paulo.
Foram noites e noites de diversão, aprendizado e troca de conhecimento, em porões esfumaçados, e decadentes casarões apinhados de gente aberta ao novo, como o Madame Satã, Espaço Retrô (sim, o primeiro, no saudoso antro da Frederico Abranches), Cais, Urbania, Armaggedon, Der Tempel, Hoellisch, Sebo 264, Borracharia, Torre do Doutor Zero, Matrix e um sem número de amáveis espeluncas que acolhiam jovens artistas emergentes da cena musical paulistana e também de outros estados – a maioria, bandas de rock que tinham a oportunidade de se aproximar de um público generoso e receptivo.
A paternidade e outras contingências da vida adulta me afastaram desses ambientes, mas em 2007, voltei a pesquisar o que acontecia em termos de novas bandas e artistas – agora, muito mais obcecado por música instrumental, música brasileira, do que no rock de outrora. Fui atrás dos espaços que acolhiam novos artistas e, pouco a pouco, passei a conhecê-los. Numa noite de 2007, por recomendação de um amigo, fui à festa Jazz Nights, num clube da Barra Funda, chamado Berlin. O que testemunhei parecia um milagre: na contramão da maioria das casas noturnas com características de inferninho da época – majoritariamente devotas do insosso indie-rock pós-Strokes / White Stripes – o que se via na pista de dança e no diminuto palco do Berlin era uma celebração aos nobres predicados do jazz, em suas múltiplas facetas. Lógico, havia a necessidade de ofertar ao público temas com irresistível apelo dançante – e era comum ouvir extensos standards do soul-jazz e do jazz-funk, com dez, 12 minutos –, mas, entre clássicos de músicos como Freddie Hubbard, Big John Patton, Lou Donaldson, Grant Green, Lee Morgan e Jimmy Smith, era possível também sair de órbita ao som de um free-jazz de Ornette Coleman, Sun Ra, ou ir a estratosfera com os delírios do flautista Harold Alexander.
Idealizada pelos sócios-fundadores do Berlin (o clube baixou as portas no começo de 2013), Jonas Morbach e Marcelo Schenberg, a Jazz Nights começou a ser realizada no início de 2007, em princípio sem DJ residente, mas com o formato que a consagraria: a cada novo mês, um grupo instrumental era convidado para fazer temporadas semanais, sempre às terças-feiras, com duas apresentações de cerca de 1h30, cada. Não frequentei a festa nesses seis primeiros meses. Quando passei a fazê-lo, o DJ residente, Walter Abud, também baterista e saxofonista de combos instrumentais, aos 20 anos, era quem, na pista de dança, promovia o transe que acabo de descrever no parágrafo anterior.
“O grande valor do meu trabalho para a festa é que dei a ela uma cara (além de discotecar, Abud também se envolveu com a curadoria das bandas). Passei a frequentar a festa com 19 anos, ia sempre com alguns amigos, e foi lá que encontrei a alegria da minha vida. Observei que sempre que acabavam os shows, ficava rolando um playlist em um antigo CD player. Vez ou outra havia um DJ, lembro que o DJ Nirso tocou lá algumas noites, e foi então que intimei o Jonas: ‘Pô, estou com um monte de vinis de jazz em casa, vamos colocar para rolar na festa!” Abud reinou absoluto nas picapes da Jazz Nights, de 2007 até meados de 2011, e fez muita gente dançar.
Entre as bandas que passaram pelo palco do Berlin, algumas fizeram mais de uma temporada, mas mesmo aquelas que experimentaram uma única série de apresentações, deixavam patente que a sinergia entre público e músicos era um fator ascendente e característico da festa. A cada nova terça-feira, até o fim da temporada, os shows iam ficando mais quentes e a alta voltagem de improviso permitia aos músicos alçar voos cada vez mais livres. No palco intimista do Berlin passaram artistas reverenciados pelo público da casa, como: Toró Instrumental; Culto ao Rim; Hammond Grooves; Trio Improvisado; o trompetista Guizado; o guitarrista Junior Boca (que, em 2009, fez temporada em tributo aos 50 anos do álbum Kind of Blue, de Miles Davis); o saxofonista Thiago França; os contrabaixistas Marcelo Cabral (parceiro de França e do baterista Tony Gordin no trio MarginalS) e Marcos Paiva (que hoje lidera o excelente sexteto MP-6). Também passaram pela Jazz Nights o herói da guitarra tropicalista Lanny Gordin e o veterano Zerró Santos; assim como, a big-band Bixiga 70; o guitarrista Bina Coquet, o organista nova-iorquino Ehud Asherie, com o projeto Samba pra Gringo; e o Otis Trio, dos grupos mais regulares na casa, adorado pelo público.
Contrabaixista do Otis, e também DJ residente das Jazz Nights desde o segundo semestre de 2009, (Abud se desligou do projeto, no final de 2011), João Ciriaco reitera a importância do projeto para a cena instrumental de São Paulo: “O Berlin foi muito importante para nós e para outros grupos, pois manteve um polo que reunia uma galera muito legal; dos músicos aos frequentadores, que iam curtir boa música e valorizar o jazz. DJ’s e bandas tinham total liberdade para tocarem o que bem quisessem e o público estava sempre de peito aberto. O Otis tinha pouco mais que um ano de existência e as Jazz Nights acabaram sendo um laboratório para a formação da banda”.
A festa teve fim no primeiro semestre de 2012, quando era realizada as segundas-feiras. Neste mais de um ano e meio que as Jazz Nights saíram de cena, poucos espaços continuam permitindo aos músicos e ao público tamanha liberdade e diálogo. Lógico, há uma série de opções para ouvir música instrumental em São Paulo, mas a maioria delas carrega o estigma de excesso de formalidade e apresentam músicos de um virtuosismo asséptico (em bom português, opções bem “coxinhas”). A boa nova é que, por iniciativa de Abud, as Jazz Nights voltarão a acontecer, a partir de amanhã, novamente as terças-feiras, com formato idêntico e num lugar especial: a Associação Brasileira de Empresários de Diversões, ou melhor, a Trackertower, na esquina da Avenida São João, com a Rua Dom José de Barros, no coração de São Paulo, onde são realizadas festas consagradas, como a pioneira Voodoohop (leia perfil da festa, publicado na edição 56), Calefação Tropicaos, Macumbia Buena, Cósmica e muitas outras.
No lounge do edifício art déco, que dispõe de sacadas com vista para a São João, a discotecagem ficará a cargo do DJ Rubens Peterlongo, um dos fundadores da Trackertower. Ansioso para fazer logo o primeiro set, Abud vai esquentar a pista principal, que ganhou iluminação especial, assinada pelo espanhol Richard Schultz, jovem artista que faz trabalhos itinerantes com circos ao redor do mundo e chegou a São Paulo há menos de um mês.
Como não poderia deixar de ser, a primeira temporada da nova Jazz Nights será protagonizada pelo Otis Trio, que tocará como quinteto e está às vésperas de ter um álbum lançado pelo selo londrino Far Out Recordings. Com sete temas autorais, o CD vai trazer uma diversidade de arranjos e exigiu novas formações ao trio, que também fez registros como sexteto e octeto.
São Paulo gosta de jazz e a novidade é mais que bem vinda. Que a nova versão das Jazz Nights seja tão prolífica e excitante para músicos e o público, como foi no saudoso Berlin.
Confira aqui o convite do evento e os detalhes da primeira Jazz Nights
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