“Certo pendor para a gordura, três partos, cicatrizes, um rosto fino e comprido, aceso pelo olhar moreno. Domitila, mãe de três filhos e acusada de adultério, foi esfaqueada pelo marido quando voltava às escondidas para casa. Toda a cidade conhecia as escapadelas da futura marquesa. A fama envergonhava sua família.” É assim que a talentosa escritora e historiadora Mary del Priore descreve a nossa mais famosa amante, antes de conhecer D. Pedro I, em 1822, aos 25 anos, antes de se tornar a marquesa de Santos, antes de ter cinco filhos com o imperador.
Mas tinha seios fartos e quadris volumosos, o que parece agradavam a Pedro.
Para usar uma expressão do século 19, ela era levada da breca. Talvez certo furor uterino, talvez uma tendência para o banditismo: tentou dar um tiro na própria irmã Maria Benedita, quando soube que o amante não só andava tendo um caso com ela, mas a engravidara. Em tempo, a irmã também era casada. Fofocas dos anos 1820!
A Brasileiros conseguiu entrevistar Domitila de Castro Canto e Melo quando ela estava para morrer, já com 69 anos. O encontro se deu no Museu da Cidade de São Paulo, onde era a sua casa no século 19. Faleceu ali de enterocolite, “uma inflamação do intestino que está me levando à loucura”.
Domitila – É isso, meu jovem, estou aqui sentada, esperando meu enterro passar. Minha vida hoje são cólicas, diarreia, vômitos, mal-estar e febre. Não merecia isso. Fiz muito por este País. Pedro discutia vários decretos comigo. Coloquei na cabeça dele o assunto dos escravos.
Brasileiros – Me disseram que a senhora é hoje uma devota e caridosa.
Domitila – Sim, procuro socorrer os desamparados, protejo os miseráveis e famintos, cuido de doentes e dos estudantes ali da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Minha casa é o centro da sociedade paulistana. Dou muitos bailes de máscaras e saraus literários, apesar desta merda de doença que me corrói por dentro.
Brasileiros – A senhora se arrepende da vida devassa que levou?
Domitila – Devassa na sua opinião, biltre! Uma mulher que teve e criou 13 (treze!!!) filhos não pode ser devassa, caceta! Se está se referindo ao imperador, só lhe dei alegrias.
Brasileiros – E algumas gonorreias.
Ela se levanta, vai até uma porta, bate palmas, chegam dois escravos tipo leão de chácara. Não fala nada. Os dois ficam na porta me encarando.
Domitila – Prossiga, jovem. E gonorreia é a puta que te pariu!
Brasileiros – Onde, quando e como a senhora conheceu o imperador?
Domitila – Meu filho, o imperador havia se casado com aquela austríaca branquicela aos 19 anos. Ela era quase dois anos mais velha do que ele e estava encalhada lá na Europa. Trouxe vários cientistas, botânicos e pintores. Gente chata, falando línguas esquisitas. O Pedro não suportava aquela turma. Mesmo assim, fazia um filho por ano com ela. Quando ela chegou, foi o maior mal-estar na Corte. Era feia. Pode ver os retratos dela na Wikipédia. Portanto, quando eu conheci o imperador, ele estava de saco cheio com a casa dele.
Brasileiros – Foi seu primeiro amante? A facada que o seu marido…
Ela levantou a mão, os dois negros se aproximaram. Ela fez sinal para que ficassem ali, a dois metros de mim.
Domitila – Foi bom tu citares o meu primeiro marido. O Felício era milico, violento, e realmente me espancava e violentava. Portanto, era o Pedro insatisfeito com o casamento dele e eu com o meu. Tanto é que depois de dois anos de relacionamento com o Pedro, me divorciei. Em 1824.
Brasileiros – E a história que a senhora quis matar a sua irmã, a dona Maria Benedita?
Domitila – E não era pra matar? Eu comecei a desconfiar quando o Pedro começou dar empregos e títulos aos parentes do marido dela. Ninguém desconfiava, mas eu estava ligada. Quando nasceu o filho dela, eu matei a charada. Tinha aquele lábio inferior virado pra baixo, igualzinho ao do Pedro. É mentira que eu quis dar um tiro nela. Apenas ameacei educadamente com o revólver do marido dela. Ela confessou. Aí dei umas porradas nela. Mas sempre tratei muito bem o menino dela com o Pedro. Chamava-se Rodrigo. A cara do pai…
Brasileiros – A senhora foi amante do imperador até ele se mudar para Portugal?
Domitila – O problema é que, quando a branquela austríaca morreu, era de bom alvitre (gostaste do alvitre?) que ele se casasse com outra nobre europeia. Isso em 1826. A gente já estava juntos há cinco anos e tínhamos quatro filhos vivos.
Brasileiros – Em 1826, o imperador tinha 28 anos. E, pelas minha contas aqui, já tinha 14 filhos!
Domitila – Sim, 11 deles vivos. Mas eu estava dizendo do segundo casamento dele. Já em 1826, ele mandou o marquês de Barbacena à Europa para arrumar uma segunda esposa para ele. E impôs quatro condições: bom nascimento, bela, virtuosa e culta. Mas nem todas as princesas disponíveis tinham todas as virtudes. Além disso, a fama dele já corria às cortes europeias. Todo mundo sabia que ele tinha uma amante fixa com cinco filhos. Fora as outras amantes.
Brasileiros – Mesmo sem internet as notícias corriam fácil.
Domitila – Como?
Brasileiros – Prossiga, por favor.
Domitila – O que eu estava falando mesmo? Minha cabeça anda falhando muito.
Brasileiros – A cabeça de todo mundo anda falhando, marquesa. Todo mundo anda esquecendo. A senhora estava falando do marquês de Barbacena procurando uma princesa para o imperador.
Domitila – Isso. Obrigada. Pois então. Ele enfrentou a recusa de oito (oito!!!) princesas. Virou motivo de pilhéria nas cortes europeias. Aí, ele diminuiu as exigências e passou a procurar uma apenas bonita e virtuosa. E arranjou uma princesa de linhagem meio bomba, mas linda. Pedro mandou o marquês de Resende para confirmar a beleza da moça. Mas a filha da puta, “culta e sensível”, fez colocar no contrato de casamento que eu tinha de sumir do mapa, sob pena de anulação do casamento. E eu sumi.
Brasileiros – Mesmo?
Domitila – A filha da puta, além de bonita e gostosa, tinha 17 anos. Pedro, 30.
Brasileiros – Mas a senhora sumiu mesmo?
Ela olha para os dois leões de chácara.
Domitila – Por favor, acompanhem o jornalista.
Brasileiros – Só mais uma perguntinha. A senhora disse, no começo da entrevista, que cuidava dos estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Como assim?
Ela sorriu, fez sinal para os dois negros saírem. Me pegou pela mão e foi me levando por um corredor imenso. No fundo, do lado direito, o seu quarto, imenso e luxuoso. Entrou, trancou a porta. Foi até uma mesinha, me serviu uma bebida com a cor do uísque (experimentei, era uísque).
Domitila – Eu vou te mostrar como eu cuidava dos estudantes.
Brasileiros – Mas minha senhora…
Ela pega um revólver.
Domitila – Tava de olho em vosmecê desde que adentraste.
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