O sonho de qualquer escritor é ter um livro seu levado ao cinema por um grande diretor. Com o alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) aconteceu mais que isso. Em dobro. Três de seus mais importantes livros chegaram às telas por dois dos maiores cineastas brasileiros de todos os tempos. Nelson Pereira dos Santos filmou Vidas Secas (1963) e a autobiografia Memórias do Cárcere (1984). Leon Hirszman (1937-1987) adaptou São Bernardo (1971). Lançados apenas em VHS há mais de vinte anos, esses clássicos do cinema nacional finalmente saem em formato digital de DVD, em edições impecáveis do Instituto Moreira Salles (IMS), acompanhados de livretos reveladores e imprescindíveis sobre os bastidores, sua importância história e crítica. Os filmes podem ser adquiridos separadamente ou em uma caixa.
Nelson consegue um impressionante resultado em Vidas Secas, numa transposição fiel, filmado em preto e branco e com diálogos econômicos em que a imagem fala muito por si, exatamente como no texto original. A impressão é de que os personagens brotaram das páginas do romance, graças à marcante fotografia do hoje produtor Luiz Carlos Barreto. Na primeira cena, a cachorra Baleia, Sinhá Vitória, Fabiano e os dois meninos, depois de um dia de caminhada sob o sol implacável, começam a surgir na tela como pontos pequeninos e imprecisos. No fundo de uma imagem quase toda branca, eles se movem e se aproximam, até ganharem formas. E o espectador passa a acompanhar a tragédia de uma família encurralada entre a mudança de endereço e a fuga da seca, do fazendeiro, das contas, do soldado amarelo, da cadeia, do inferno. Nada disso, porém, reduz sua esperança de uma cama de couro como a de seu Tomás da bolandeira. No elenco, Átila Iório, Maria Ribeiro, Jofre Soares, Genivaldo Lima, Gilvan Lima e Orlando Macedo.
Mais de duas décadas depois, Nelson voltou a Graciliano. Dessa vez para contar sua vida no cativeiro do Estado Novo, de Getúlio Vargas, com Memórias do Cárcere. Um filme oportuno, no momento em que a ditadura militar vivia seus últimos meses de poder. Carlos Vereza faz o escritor, preso em março de 1936, quando era diretor de instrução do Estado de Alagoas, por suspeita de ter participado da Aliança Nacional Libertadora (ANL), grupo político formado por diferentes tendências de esquerda em oposição a Vargas. Sem julgamento, foi trancafiado nas masmorras da prisão em Maceió. Depois foi transferido para o quartel do exército de Recife, até ser levado de navio para a casa de detenção no Rio de Janeiro e daí para a colônia penal da Ilha Grande. O longa ganhou o Prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cannes, em 1984 e impressiona pelo desempenho de Vereza.
O combativo Hirszman, de Eles Não Usam Black Tie (1984) fez de São Bernardo uma obra de ponta do cinema brasileiro na década de 1970, descrito pelo crítico Sérgio Augusto como “um modelo singular de análise e crítica social”. Por seu conteúdo crítico, ficou sete meses preso na censura, o levou à falência da produtora do diretor, a Saga. Por isso, só chegou aos cinemas em novembro de 1973. Embora tenha se apoiado num ensaio de Antonio Cândido, manteve a essência de Graciliano, ao mostrar a tentativa frustrada de Paulo Honório em escrever um livro com a ajuda de amigos, o que faz com que ele se valha de seus próprios recursos para contar sua história. Na sua ficção, mostra como o narrador se tornou dono de pessoas e coisas. O diretor faz isso por meio de planos de longa duração com a câmera, quieta, fixa ou em movimentos lentos. Um clássico.
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