A luz como escrita

paisagem com capela, 2003 Trabalho inclui também os cenários bucólicos de sua cidade e a exploração de jogos de luz e sombra
PAISAGEM COM CAPELA, 2003 – Trabalho de Valdir Cruz inclui cenários bucólicos de sua cidade e a exploração de jogos de luz e sombra

O Projeto Maio Fotografia, realizado pelo MIS de São Paulo, apresenta sete exposições simultâneas. Olhares peculiares, aparentemente díspares entre si, que podem se encontrar na estética documentária. Visões jornalísticas, composições construídas, que procuram entender e analisar personagens, povos e situações. É o caso do lendário fotógrafo tcheco Josef Koudelka e suas inesquecíveis imagens que retratam a invasão de Praga, em 1968. Ele tinha, na época, 30 anos e durante 16 não pôde reconhecer a autoria de suas fotos, para evitar represálias. Ou do norte-americano Gregory Crewdson que mostra sua visão sobre o cotidiano de pessoas comuns em cidades anônimas por meio de fotos organizadas de maneira teatral. Composições desconcertantes, ficções construídas e produzidas como se fossem fotogramas de um filme. Do Brasil, os destaques da mostra são Robério Braga, baiano radicado em São Paulo, e Valdir Cruz, paranaense radicado nos Estados Unidos. Em tempos de fotos coloridas e multiplicidades de imagens, a escolha por uma estética em preto e branco é quase um silêncio que chama a atenção e nos oferece a possibilidade de respirar. A seguir, um pouco sobre os dois autores. 

SUTILEZAS - “Os adornos feitos pelas mulheres da tribo Maasai carregam um mundo rico em códigos sociais que se materializam em belas formas”. Foto: Robério Braga
SUTILEZAS – “Os adornos feitos pelas mulheres da tribo Maasai carregam um mundo rico em códigos sociais que se materializam em belas formas”. Foto de Robério Braga

ROBÉRIO BRAGA – Em seu ensaio Luz Negra, Robério Braga nos dá a oportunidade de encantamento por símbolos de resistência, que preservam tradições ancestrais de tribos da região do Quênia e Tanzânia, em seu ensaio-documentário feito na África Oriental. Durante um ano, ele visitou e fotografou os povos Maasai, Pokot e Samburu. Universo de signos que ele dá vida por meio da luz: “Trabalhar a luz sempre foi prioridade para mim, assim como fazia meu avô Mendonça Filho (1895-1964), baiano, pintor expressionista, que iluminava com maestria as marinhas de Salvador com seu pincel. Apesar de não pintar com o tradicional pincel, igual ao do velho artista que nunca conheci, hoje gosto de pensar que pinto com outro tipo de pincel. O pincel da luz”, escreveu o artista no texto que acompanha sua exposição.

Imagens únicas, em que o destaque na maioria das vezes é em um adereço em um pequeno ponto. Uma fotografia que não aparece revelada, precisa ser descoberta. Imagens que procuram fugir do clichê, pedem um olhar mais apurado porque as sutilezas e filigranas dos detalhes não se percebem à primeira vista. “Os adornos feitos pelas mulheres da tribo Maasai, por exemplo, carregam um mundo rico em códigos sociais que se materializam em belas formas, cores e padrões. Antes feitos de sementes, fibras vegetais e couro de zebras, leões, gnus e outros animais selvagens, hoje empregam miçangas plásticas, nylon e tecidos. Muda-se o significante, mas não seu significado.”

COTIDIANO SEM CLICHÊ O trabalho de Valdir Cruz estabelece relações entre o melhor da fotografia documental e o vasto campo narrativo
COTIDIANO SEM CLICHÊ  – O trabalho de Valdir Cruz estabelece relações entre o melhor da fotografia documental e o vasto campo narrativo

VALDIR CRUZ – Também com esse olhar que ultrapassa o mero documento, Valdir Cruz, apesar de morar nos Estados Unidos desde 1978, retratou durante 30 anos Guarapuava, sua cidade natal. Imagens analógicas, feitas com filme, que resultaram no livro Guarapuava, que reúne 90 imagens, e a exposição homônima, com 40 fotografias. Em seu ensaio sociodocumental, entra-se na cidade, que fica no centro-sul do Estado do Paraná, acompanha-se seu desenvolvimento e tenta-se descobrir como é esse município por meio dos olhos de seus habitantes, que nos fitam nos retratos realizados. São imigrantes, descendentes de poloneses, índios, ciganos, moradores de quilombolas. São vistas, paisagens, culturas e tradições. Um documentário socioambiental, que traduz com um olhar bastante singular e afinado a visão de sua terra natal, de suas raízes. Como escreve Rubens Fernandes Junior, pesquisador e curador, no prefácio do livro de Valdir Cruz: “Nada é clichê neste ensaio que estabelece relações entre o melhor da fotografia documental, que trava uma silenciosa batalha com aquilo que representa, e abre um campo narrativo que contempla diversas tendências de investigação visual – da mais tradicional às mais contemporâneas”. 

Numa época em que imagens parecem não mais nos tocar, que são repetição de receitas, encontrar ensaios capazes de nos fazer parar e refletir sobre a maneira de enxergar é sempre um achado.

TRÊS DÉCADAS DE IMAGENS Artista passou 30 anos fotografando a diversidade de Guarapuava, sua cidade Natal. Imigrantes e seus descendentes, quilombolas, ciganos, descendentes de índios: gente comum para uma proposta incomum
TRÊS DÉCADAS DE IMAGENS
Artista passou 30 anos fotografando a diversidade de Guarapuava, sua cidade Natal. Imigrantes e seus descendentes, quilombolas, ciganos, descendentes de índios: gente comum para uma proposta incomum

VALDIR CRUZ EM MAIS UMA MOSTRA
Da redação

Ao mesmo tempo em que apresenta “Guarapuava” no MIS, o fotógrafo Valdir Cruz abre a individual “Cronotopos” na Galeria Bolsa de Arte de São Paulo. A mostra, com curadoria de Rubens Fernandes Jr., apresenta 20 fotografias em grandes dimensões, de cinco diferentes séries da carreira do artista. Todas em preto e branco, as fotos foram feitas em diferentes épocas e lugares do País, e mostram o olhar profundo de Cruz sobre a natureza e o ser humano.

O título da exposição vem da junção de duas palavras gregas: “cronos”, que significa tempo, e “topos”, lugar. O conceito que surge daí, que se refere a uma unidade de espaço e tempo indissociável, foi inicialmente desenvolvido pelo filósofo Mikhail Bakhtin na década de 1930, mas tem relação direta com a obra de Cruz.

Serviço – Cronotopos – Galeria Bolsa de Arte (Mourato Coelho, 790). Abertura dia 27/5, às 19h; até 28/6; Grátis


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