Os primeiros livros de Petrarca (1304-1374) foram os autógrafos. Desconfiava o poeta que seus trabalhos fossem desvirtuados pelos copistas. Desse modo, ele escrevia e reproduzia de próprio punho seus textos, gesto que assegurava ao autor (auctor) a autoridade (auctoritas) e o pleno controle sobre sua arte.
A era inaugurada por Gutenberg (c.1398-1468) tornaria impraticável essa escolha. É bem verdade que apenas a nova ars impressoria pôde garantir à escrita, por meio da reprodução mecânica em série, regularidade e ampla difusão. Daí sua vitória sobre o manuscrito, processo que não se deu tranquilamente, tais foram as reservas que autores e leitores guardaram com relação à nova tecnologia. Era a “arte negra”, tomada pelo diabinho Tityvillus, que atentava revisores, compositores e impressores no processo de produção da letra impressa. Não falemos sobre as gralhas – erros tipográficos – que celebrizaram tantas edições princeps, as quais compõem todo um almanaque de curiosidades e de cobiças entre bibliófilos e bibliômanos.
Pensemos, antes, na figura do autor. Por fatalidade do destino ou fortuna, a maldição da letra impressa o fez refém da técnica, ao mesmo tempo que lhe rendeu honrarias e – quando muito afortunado – riquezas materiais. O sucesso e a fatalidade fizeram com que Cervantes (1547-1616) reinventasse seu Dom Quixote, em uma segunda jornada. Eis que o cavaleiro então se depara, em Barcelona, com uma tipografia. Entra e se encanta com a descoberta. A escrita é ardilosa, põe em cena os segredos da “arte negra”, ao mesmo tempo que discorre sobre as armadilhas da economia do livro, com seus muitos profissionais e interesses, não raro conflitantes, os quais opõem impressores, livreiros e autores.
Num golpe certeiro, o cavaleiro se dá conta de que estão emendando uma Segunda Parte do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, “composta por um tal habitante de Tordesilhas”. Não a verdadeira, mas uma edição espúria.
“Já tenho notícias deste livro”, disse Dom Quixote. “Em verdade e em minha consciência, pensei que já estivesse queimado e feito em pó, por impertinente.” Pelo contrário. Da figura do herói, em detrimento do autor, tanto se lhe tirava proveito, na medida em que se popularizava. Eis a armadilha.
A consciência de que a letra impressa rouba ao autor o controle sobre o escrito moveu teóricos e profissionais do livro por longos séculos. Tem significados profundos, até a contemporaneidade. O debate em torno do direito autoral frente às novas tecnologias está na ordem do dia. No fundo, estamos às voltas com a velha questão do império da forma (ou do suporte) sobre o conteúdo.
Mais vale pensar como Mario de Andrade (1893-1945) em uma solução consoladora perante um fato consumado. Escreve o autor à amiga Henriqueta Lisboa, em 10 de março de 1943: “É natural isso da gente cair num abatimento desiludido cada vez que publica um livro, eu sempre fico desolado quando enfim uma obra minha se converte a essa realidade brutal e castigadora de letra de forma”.
*Professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Autora, entre outros títulos, de O Império dos Livros. Instituições e Práticas de Leitura na São Paulo Oitocentista, Edusp/Fapesp, 2011 (vencedor do Prêmio Sérgio Buarque de Holanda – Melhor Ensaio Social 2011, da Fundação Biblioteca Nacional). Editora da Revista Livro, do Núcleo de Estudos do Livro e da Edição (Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária – USP).
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