Impaciente com o assédio de chefes e patrões, a garçonete Betty é uma garota voluptuosa, erotizada no simples gesto de tocar um lábio no outro para lubrificá-los com saliva, enquanto fala. Seus cabelos encaracolados costumam cair sobre o rosto e esconder seus grandes olhos de mangá japonês. Cheia de vida, de um momento para o outro, porém, ela deixa fluir sua dupla personalidade e se transforma. O humor desaparece e a explosão de ira ou de depressão toma conta dela. “Eu estava justamente olhando-a, achando-a ótima e, de repente, a vi se transformar na minha frente, ela ficou pálida e seu olhar se endureceu incrivelmente, isso me cortou a respiração”, conta o narrador, que é também o protagonista, Zorg, zelador de um motel, sobre a namorada. Em seguida, ele acrescenta: “Ela tinha um olhar vago, as duas mãos apertadas entre as pernas e os ombros dobrados como se repentinamente se sentisse cansada. Eu nunca a havia visto assim antes, só conhecia sua risada e achava que ela era de uma energia inabalável, eu me perguntava o que estava acontecendo”.
Para o leitor, Betty é uma garota irresistível e fácil de apaixonar, mesmo rebelde e impetuosa, que torce o nariz ou se rebela naturalmente contra os valores estabelecidos de beleza e comportamento. Vive intensamente, mas está num processo acelerado de depressão e loucura que suga tudo à sua volta. Principalmente o namorado. O romance “Betty Blue – 37,2º de Manhã”, do escritor francês Philippe Djian, lançado originalmente em 1985 e que teve uma única edição no Brasil pela Scritta Editora, em 1991, é uma história de amor louco, instável, imprevisível. De narrativa convencional quanto à sua estrutura, não traz experimentos lingüísticos ou rebuscamentos, o que o torna, certamente, pouco interessante para a crítica acadêmica, intelectualizada, exigente quanto a esses requisitos. Mas abre espaço para uma trama ímpar, furiosa, tensa, violenta, punk e dark ao mesmo tempo, devastadora, que o torna marcante, sobre um homem e uma mulher na casa dos 30 anos que vivem no cruzamento entre o comportamento radical dos anos de 1970 e a densa e sombria névoa depressiva da década de 1980. Uma sensação trazida pelo pesadelo do aparecimento da AIDS, que jogou as paixões e os relacionamentos nas trevas da idade média e fez aflorar a onda moralista que existia antes da Revolução Sexual iniciada na década de 1950.
A indicação da temperatura apontada no subtítulo da obra torna óbvia a intenção do autor de literalmente contar uma história “febril”, entre a normalidade de um sujeito pacato e acomodado, sugado para dentro do estado mental delirante que a febre costuma causar em Betty. A medição também faz referência à temperatura corporal de toda mulher grávida, um estado febril, pois está um grau acima da média. Assim, ele também descreve a bipolar garota porralouca que não está atrás de homens apenas por sexo, como ela explica numa de suas crises de personalidade. Djian, que tinha ousado com o seu subversivo Zona Erógena mistura na trama todo o realismo baixo astral de sua época com um espírito libertário de levar os personagens ao limite do suportável, claramente influenciado por autores da contracultura e da contramão do comportamento padrão, como os americanos Henry Miller (1891-1980) e Jack Kerouac (1922-1969) – líder do movimento beatnik.
O envolvimento dos personagens é mostrado de modo acelerado. Um dia, no horário do almoço, Betty chega com suas malas à casa de Zorg e ali decide morar. Os dois são dominados por uma paixão enlouquecida, ao mesmo tempo em que, para sobreviver, executam bicos de constância irregular, furtos, brigas e porres. Curiosa, ela vasculha sua vida e suas coisas e descobre que o companheiro tem um romance escrito em cadernos e o datilografa para enviar cópias às editoras. A busca por um editor, no entanto, só acontece quando isso não significa mais nada para os dois. O que move, excita e assusta o casal são as mudanças de humor de Betty que vão, aos poucos, transformando-se numa patologia que se aproxima e muito da loucura. A condução para isso é o trunfo maior do romance: a escrita em estilo cru em que o modo de mostrar situações, cenas e diálogos se sobrepõem à pretensão da elaboração literária, que nem sempre funciona.
Djian teve seu romance adaptado para o cinema em 1986, com direção de Jean-Jacques Beineix e não agradou o autor, apesar do sucesso de público e de crítica – a história nas telas termina no penúltimo capítulo do romance, sem o providencial e necessário epílogo. O longa tornou o escritor famoso em todo o mundo, mas virou notícia policial por causa das seguidas prisões por furtos e uso de drogas da atriz francesa Beatrice Dalle, que interpretou Betty, cuja beleza exótica a transformou em ícone do movimento punk na Europa. Beatrice simplesmente pareceu não ter conseguido se livrar do papel que representou tão bem no cinema e que deu “Betty Blue” um status de cult movie instantâneo tão interessante quanto a história contada no papel por Djian. Francês de origem tunisiana, o autor escreveu o poderia ser classificado como um clássico da literatura punk, mesmo com roupagem editorial discreta que o livro recebeu. À medida que o tempo passa, a obra não perde o vigor nem a força, ao mesmo tempo em que se consolida quase como uma obra histórica, antropológica, retrato de seu tempo, que se completa no seu triste e inesquecível desfecho.
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