A moral de um homem

No lançamento de Um Homem de Moral, filme de Ricardo Dias com estreia em 5 de junho, Paulo Vanzolini, tema e razão do trabalho, sentado na mesa ao lado do diretor disse, entre outras coisas, que “Chico Buarque é uma unanimidade”. Assim como ele próprio, desde que Adoniran Barbosa morreu em 1982, tornando-o símbolo maior do samba paulista. Afinal, as duas confluências paulistanas, por excelência, são da Avenida Ipiranga com a Avenida São João, citada por Vanzolini e repetida por Caetano Veloso, e “Ronda”, música de Vanzolini, com “Trem das Onze”, de Adoniran. Enquanto a situação geográfica ficou congelada no tradicional centro histórico, ofuscada por Paulistas, Berrinis, marginais e anéis rodoviários, a disputa entre os dois sambas consumiu mais chopes na madrugada do que a discussão sobre a supremacia de John Lennon ou Paul McCartney dentro “daquele” grupo inglês.

Empate na certa. Com toda propriedade, Ricardo Dias incluiu imagens de Adoniran no documentário e o samba “Seu Barbosa”, que Vanzolini compôs em homenagem ao colega – já que nunca foram parceiros. Os dois trocam elogios atemporais. Adoniran, de bigodinho, chapéu de feltro e gravata borboleta, diz que é do povo enquanto Vanzolini é mais intelectual, professor, “mexe com… zoológico… sei lá”, se atrapalha. Mas em samba, afirma, “é tudo igual, eu fiz ‘Praça da Sé’ e ele fez ‘Praça Clóvis’”. Vanzolini rindo lembra que o amigo parece uma caricatura – Ricardo colocou os dois vistos pelo caricaturista Cássio Loredano – e lembra das cachacinhas divididas.
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O lançamento do documentário coincide com o aniversário de 85 anos de Paulo Emílio Vanzolini, compositor não tão bissexto quanto quer ser visto e renomado zoólogo – Adoniran quase acertou. As filmagens tiveram início em 2002, quando a obra do compositor foi reunida em quatro CDs lançados pelo selo Biscoito Fino trazendo mais de meia centena de composições do cientista nas vozes de intérpretes, amigos, admiradores que vão de Inezita Barroso à Virgínia Rosa, passando por Paulinho Nogueira, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Martinho da Vila e muitos outros. Só craques. Ricardo filmou as gravações e os shows de lançamento, capitaneados pelo excelente violonista Ítalo Peron. Peron comandou também os shows do 85º aniversário em meados de abril deste ano. No palco, mais uma vez sentado em uma mesinha ao lado dos músicos, recebendo os intérpretes um a um, comentando as músicas, o próprio Vanzolini. Ricardo não esteve presente, ocupado com o lançamento do filme em outras praças. Sem trocadilho.

Vanzolini é uma festa por si só. Há poucos anos fui assistir Ângela Maria no Bar Brahma, na esquina da São João com a… Tudo bem. Fui com meus filhos e de repente Vanzolini entra e senta em uma das mesas. Falei para eles, “surpresa do papai”, maior mentira mas que dá moral. No meio do show, Ângela, divina, apresenta o compositor que, sem o menor pudor, se levanta e começa a agradecer, ensaia um discurso, no que é interrompido pela “Sapoti” – apelido que a acompanha há décadas. “Vanzolini, o show é aqui no palco!” e atacou de “Babalu”.

Médico formado pela Universidade de São Paulo (USP) e zoólogo por Harvard, herpetologista – dedicado aos répteis, não confundir – Vanzolini nunca fez música profissionalmente. “Ronda”, por exemplo, lançada por Inezita Barroso e consagrada por Márcia, que a gravou por sugestão de Eduardo Gudin – Gudin e Márcia cantaram no show de aniversário de Vanzolini, 25 de abril passado -, foi composta em 1945. Vanzolini pertencia à Cavalaria do Exército, que na época fazia o papel de PE, Polícia do Exército. Ou seja, ia na zona de baixo meretrício prender os desertores e vagabundos da corporação. Foi lá que viu mulheres à espreita, em busca de seus homens, fazendo a ronda.

Se teve suas músicas editadas, isso se deve ao pesquisador Marcus Pereira e ao compositor Luiz Carlos Paraná, dono do Jogral, casa noturna frequentada por Toninho França Pinto, o Paizão, por exemplo. Os três já faleceram. Os dois primeiros cuidaram de registrar sambas, às vezes cometendo erros, lamenta Vanzolini, embora agradecido. O terceiro é pai de Suzana Salles, uma das cantoras que se apresentaram no recente aniversário do compositor. Nada mais natural. Pois o mundo de Vanzolini é o da cordialidade. Ana Bernardo, sua atual mulher sempre presente e atuante nos projetos, cantora, é filha de Arthur Bernardo, um dos fundadores dos Demônios da Garoa – que ironicamente devem seu sucesso a Adoniran. Miúcha e Chico Buarque, Vanzolini conheceu pequenos. Quando Sérgião – o crítico e historiador Sérgio Buarque de Hollanda, pai dos dois, que aparece no filme em uma foto de Hélio Campos Mello – mudou-se para São Paulo com a mulher Maria Amélia e a filharada em 1946, Vanzolini foi encarregado de deixá-los à vontade. Nunca mais os deixou em paz, tal foi a paixão. Mútua. O próprio Ricardo Dias conheceu Vanzolini no início dos anos 1960, quando tinha 11, 12 anos. “Meu pai foi o diretor de construção da usina de Jupiá e Vanzolini fez o estudo do impacto ambiental da obra – talvez a primeira vez que isso tenha sido feito no Brasil, uma coleta e levantamento da diversidade faunística da região”, conta. Por um triz não virou cientista também. Estudou biologia e quando estava na pós-graduação em biomédicas entrou na Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP) – fazendo mestrado em cinema na New York University (NYU). Dirigiu programas no Globo Ciência, a estreia foi com Vanzolini é claro, que voltou em outros três em Rondônia. Os Calangos do Boiaçu, um documentário sobre o Rio Amazonas, acompanha o trabalho de Vanzolini em Roraima.

Em Um Homem de Moral, Ricardo entremeia as canções dos shows de 2002 com observações de Vanzolini, sempre divertidas, com sua pronúcia acaipirada. Por vezes as músicas são ilustradas por imagens extremamente poéticas de São Paulo que o cineasta credita ao olhar de Carlos Ebert, seu fotógrafo. Gente simples, que canta “Volta por Cima” – de onde foi tirado o verso que dá título ao filme – como se fosse um hino. Vanzolini diz que “Ronda” é o maior sucesso em karaokês. Jura que é a preferida de japonês com dor de corno. E se diverte quando Ana lhe entrega os pedidos escritos em guardanapos de papel. Nove entre dez pedem “Ronda” com H. Por essas e por outras que Paulo Emílio Vanzolini comenta, irônico, “eu gosto do povo, não de cada um pessoalmente, mas no geral gosto muito”.

VER
Um Homem de Moral
de Ricardo Dias

OUVIR

Acerto de Contas
de Paulo Vanzolini – Biscoito Fino


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