A mulher fora de foco

Francisco Brennand é um desses artistas que conseguem aprimorar seu ofício utilizando outras possibilidades dentro dele. Tanto é assim que ele vem ao longo desses anos fotografando com o intuito de poder, segundo ele, captar a essência da gestualidade humana, em particular da figura da mulher. Grande parte dessas fotografias vem com sua marca impressa, que é a falta de foco, em decorrência do tremor de suas mãos. Brennand completa 81 anos em 11 de junho e seus últimos desenhos, expostos recentemente em São Paulo, foram feitos com base nessas fotografias desfocadas. “Com o tempo, pela dimensão da minha obra cerâmica, sobretudo das esculturas, estou sendo reconhecido mais propriamente como escultor do que como pintor, o que não deixa de me causar espanto. Talvez por um motivo subjetivo: não me reconheço como escultor.” Essa frase do artista não deixa de causar estranheza, pois vem de um dos mais importantes escultores e ceramistas brasileiros, proprietário e idealizador do mais importante projeto arquitetônico de esculturas de cerâmica, localizado no Recife (PE). Mas quem se debruçar sobre sua trajetória pessoal e profissional verá que o artista começou seu caminho nas artes pelo desenho e pela pintura, nos idos de 1945, e só depois realizou sua primeira escultura de barro. Em todos eles, no entanto, o foco principal é a mulher e sua sexualidade, colocada dentro de um prisma não sedutor. Na ocasião da abertura da exposição, que aconteceu em abril, o artista falou com exclusividade a Brasileiros.

Brasileiros – O senhor foi um homem com uma vida cultural bastante agitada, que viajou muito, mas que nos últimos anos decidiu permanecer quase recluso em sua cidade natal, Recife. Por quê?
Francisco Brennand –
Quando você é um artista que está no centro da agitação, sobretudo na fase boêmia, quando a pessoa é mais jovem, há a necessidade de ter uma vida vertiginosa. Mas, com o avanço da idade, eu acredito que a necessidade de ficar recluso é inevitável, eu diria fatal. É fatal porque sua mobilidade não é mais a mesma e é ela que rege todo o núcleo de sua atividade. Além disso, eu tenho me empenhado, nesses últimos 37 anos, na reconstrução de um espaço que foi uma antiga fábrica do meu pai, onde hoje existem cerca de 2 mil cerâmicas em exposição. Se eu não tivesse me dedicado quase que exclusivamente a esse trabalho, seria impossível tê-lo na dimensão que ele tem hoje.

Brasileiros – O que o levou a se dedicar durante tantos anos à reconstrução de uma antiga fábrica que pertenceu ao seu pai?
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F.B. -É uma paixão e a intensificação de um desejo de recuperação de todo um conjunto arquitetônico que estava abandonado, e que tinha essa particularidade de ter pertencido a minha família. E todos nós, eu e meus irmãos, fizemos nossas primeiras brincadeiras nos corredores dessa fábrica. Então, existia uma memória intensa e também um fetiche. Para nós, não era uma fábrica propriamente dita. Aquilo representava um lugar de mistério. Nós brincávamos lá, porque achávamos que era um lugar misterioso. Então, eu temia que, durante a reconstrução daquele lugar, esse elemento fosse perdido. Eu só me certifiquei de que isso não havia acontecido quando um motorista de táxi, que fora levar alguns turistas para visitar o local reformado, falou para mim que aquilo lembrava o Egito. Ele, na sua humildade e por não ter muito estudo, foi mais perspicaz do que qualquer crítico de arte, que até então não havia falado a respeito do mistério na minha obra. Um lugar que não podia parecer com o Egito, nem culturalmente nem cronologicamente. Foi então que me certifiquei de que eu havia preservado o mistério, que minhas lembranças de menino haviam sido resguardadas.

Brasileiros – No atual estágio de globalização, como o senhor vê o papel que é reservado às artes, principalmente às artes plásticas, que no passado foram mais efervescentes e atuantes?
F.B. –
Eu diria que é um papel muito restrito, pois a interferência da mídia, de maneira geral, é danosa para as artes. Para as artes plásticas ela é ainda mais nefasta. Se no passado o mundo das artes teve um papel mais atuante, isso não se verifica hoje. Para mim é conseqüência desse processo de massificação das culturas locais, regionais, engendrado pela globalização, que nada mais é do que uma maneira de padronização de hábitos, valores e costumes, para tornar as pessoas consumistas dos produtos produzidos pelos países ricos.

Brasileiros – Como nasceu o seu interesse pela fotografia? O senhor já fez alguma exposição dessas imagens?
F.B. –
Vários fotógrafos têm insinuado que eu deveria fazer uma exposição delas, mas, por enquanto, não vejo necessidade. Eu venho no decorrer desses anos, sobretudo a partir de 1970, fotografando muito. O que me interessa nessas fotografias é captar certos detalhes que passam despercebidos pelo olhar humano. Não é uma fotografia de jornal que quer atacar algum político ou expor alguma celebridade. Quero captar algumas gestualidades que não são intencionais e que, por isso, se tornam poéticas. Muitos dos meus desenhos nascem das minhas próprias fotografias. Esse instantâneo da fotografia me fascina, e, num mundo cada vez mais vertiginoso, isso se torna essencial para contemplar a beleza dos detalhes. Essa exposição dos meus desenhos está sendo feita pela primeira vez. Tenho em torno de 800 desenhos que venho fazendo ao longo da minha trajetória de artista e, nos últimos anos, depois que comecei a fotografar, eles passaram a ter uma relação próxima com minhas fotografias. Quando as tiro, por causa da tremedeira das minhas mãos, elas saem fora de foco, e meus últimos desenhos são derivados dessa minha maneira de fotografar.

Brasileiros – Como o senhor vê a crítica de arte no Brasil atualmente?
F.B. –
Eu sou de uma época em que, na minha juventude, nos anos 1950 e 1960, em São Paulo e no Rio de Janeiro havia de seis a sete críticos atuantes em artes plásticas. Eram Dorival Machado, Geraldo Ferraz, Paulo Mendes Machado, críticos muito ativos e, principalmente, temidos pelos artistas. Hoje em dia nós temos críticos excelentes e muitíssimo bem preparados, mas a própria mídia está desinteressada das artes plásticas, pois, para ela, o grande público não se interessa mais por esse tipo de assunto. Então, os críticos perderam sua função e espaço na grande mídia.

Brasileiros – O escritor e ensaísta Umberto Eco escreveu que o mundo caminha para a barbárie, uma espécie de retorno à época medieval, onde prevaleciam a intolerância, a ignorância e o obscurantismo. O senhor acha que a humanidade corre esse risco?
F.B. –
Umberto Eco é um grande escritor e um semiólogo que eu admiro, mas acontece o seguinte: nós não vamos nos aperceber que caminhamos para a barbárie. Os bárbaros nunca pensaram que eram bárbaros. Eram as outras culturas que os chamavam de bárbaros. Para os gregos, todos os povos que estavam além das suas muralhas eram bárbaros. Essa era a concepção grega. Hoje as diferenças de etnias estão provocando situações desagradáveis e violentas no mundo todo. A grande preocupação na Europa é conter a imigração. Logo ela, que colonizou praticamente todo o mundo. E essa barbárie, se é que já não chegou, não será percebida com nitidez.


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