A nostalgia do reles

Estava vendo um show de música eletrônica do Edgard Scandurra, guitarrista brasileiro que fez parte das bandas Ultraje a Rigor e Ira! e também foi parceiro de Arnaldo Antunes, um dos meus músicos preferidos, quando me ligaram para dizer que minha tia Ivone, de 95 anos, tinha morrido antes de receber um prêmio da OAB por ter sido a primeira advogada mulher no Brasil.

Estava animada e só falava nisso, mas pediu à OAB para esperar, pois não queria receber o prêmio de braço quebrado, o que aconteceu ao saltar daquela barquinha do Clube Caiçaras, na Lagoa. Queria arrasar no visual e não usar um gesso no braço que não combinava nem com seu traje fino, que já estava separado no armário, nem com sua cabeça de esportista que tinha sido, e de onde hoje saíam histórias e poesias especiais.

Para ela, o gesso era um trambolho, uma espécie de “instalação” no braço, um ultraje ao seu requintado traje a rigor e um empecilho a que ela tocasse piano.

Minha tia foi casada com um homem fino e educado, mas que não gostava de uma prima dela, da qual era muito amiga. Achava-a antiquada e sem assunto. Já titia gostava muito dela e vivia dando-lhe presentes valiosos, como roupas, chapéus e até joias, que a prima nunca usava, pois continuava apegada a seu velho visual, o que fazia com que meu tio comentasse:

– Está vendo, Ivone? Não adianta… É a nostalgia do reles…

Meu tio morreu relativamente jovem e minha tia, aos 72 anos, reencontrou um ex-colega de colégio pelo qual fora apaixonada na época e casou-se com ele até ele morrer alguns anos depois.
Convidou, então, sua prima com a qual seu primeiro marido implicava, para morar com ela e já na primeira semana teve de sumir com um tapetinho que a prima lhe deu de presente, escrito “Seja bem-vindo” que colocara na porta.

Aos 90 anos, resolveu fazer um testamento, já que não tinha filhos, no qual deixou para a prima solitária, um apartamento pequeno e com uma vista esplendorosa para a praia. Em uma das últimas conversas que tive com tia Ivone, ela me contou que a prima teria vendido o apartamento no Leblon e comprado uma casinha ao pé de uma favela em Magé.

– Mas por que ela fez isso, tia? Perguntei, intrigada.
Minha tia pensou, olhou para mim e disse:
– Minha filha, é a nostalgia do reles…


*É atriz, atuou em mais de 50 filmes, 15 telenovelas e minisséries, além de peças de teatro. Também é cronista do Jornal do Brasil e autora do livro O Quebra-Cabeças (Imprensa Oficial, 2005), uma compilação de crônicas publicadas pelo jornal.


Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.