Nada como a Seleção em campo para mostrar a capacidade de união dos brasileiros. Fora dos estádios, no entanto, o pesado jogo da política provoca uma dividida sem precedentes. De um lado, estão os brasileiros que detestam os governos do PT. Depois de passar mais de uma década jogando para escanteio os inegáveis avanços inaugurados no governo Luiz Inácio Lula da Silva, esse grupo dedicou os últimos meses a fazer campanha contra a capacidade de o País abrigar um grande evento esportivo. Do outro lado, posicionam-se os que, desde 2002, vêm apoiando, de alguma forma, o governo Lula e o da presidenta Dilma Rousseff. “O Brasil nunca esteve tão dividido”, afirma o filósofo Roberto Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP). “Desde o mensalão, o País está cada vez mais dividido. Uma parte pequena da população acha que todo petista é bandido. E uma parte maior da população, mas que também não é maioria, acredita que todos os tucanos são traidores da pátria. Antes, existia mais diálogo entre os dois lados.”
Com a proximidade das eleições presidenciais, a tendência é a disputa entre esses dois oponentes se acirrar em proporção vertiginosa. Na chamada grande mídia, a batalha está praticamente ganha pelos que trabalham contra o PT, seja qual for o governo. Esta é uma posição histórica. No mundo virtual, uma campanha que não conhece escrúpulos acontece por meio de blogs e redes sociais (leia mais à página 46). Um pouco afastado da arena, mas suscetível a estilhaços, há outro grupo de brasileiros, “um terço gordo da população”, para usar uma expressão do filósofo Janine Ribeiro. Esse grupo será fundamental para decidir as eleições. Eles melhoraram muito de vida na década passada, mas acreditaram que continuariam a melhorar muito mais. “É como o rapaz que espera casar com Gisele Bündchen e casa com uma moça muito bonita”, compara o cientista político Fernando Abrucio, coordenador do curso de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas. “A moça é bonita, mas não é a Gisele Bündchen.”
A percepção da nova realidade, aliada à certeza de que os avanços não continuariam a acontecer no ritmo de antes, levou milhares a engrossar ou apoiar os protestos iniciados em junho de 2013. As manifestações acabaram desandando no rastro da violência. Restou, no entanto, uma onda sem precedentes de descrença no País. Uma síntese do sentimento passou a pontuar os diálogos mais triviais, diante de toda e qualquer dificuldade: “Quero ver na Copa”. Só não viu quem não quis. Usando uma gravata nas cores nacionais, Lula falou sobre a reversão do cenário, em palestra promovida pela Eurocâmaras e pela Câmara de Comércio França-Brasil, em São Paulo. Para a plateia formada na maioria por empresários europeus, Lula contou ter ficado “com pena” dos estrangeiros, pela “expectativa negativa” criada pela imprensa. Depois, lembrou que a Copa deixou muitos boquiabertos “de ver a relação civilizada, não só dentro do campo, mas fora do campo, nos dando até o luxo dos alemães gostarem da nossa cerveja”. Detalhe: na abertura do encontro, Octávio de Barros, economista-chefe do Bradesco, apresentou Lula como o presidente responsável por “aburguesar o Brasil”, por causa dos novos padrões de consumo da sociedade.
No mesmo dia, em Brasília, a presidenta Dilma também lembrou o infortúnio dos que apostaram na Copa como um vexame: “A vergonha é deles, por não reconhecer que o próprio País é capaz de entregar eventos dessa natureza”. Sem entrar em detalhes, ela disse ainda que espera por um jogo pesado nos próximos meses: “Sabemos que essa campanha terá muitas mentiras e muitos boatos, que haverá tentativa de disseminar um clima de pessimismo”. Na verdade, àquela altura, o pessimismo exacerbado já havia ultrapassado em muito os marcos civilizatórios. A agressão começou na área VIP da Arena Corinthians, em São Paulo, e se espalhou por outros setores do estádio, durante a abertura da Copa. “Ei, Dilma, vai tomar no cu”, começou a gritar a turma que pôde desembolsar R$ 990 por ingresso ou é Very Important People e ocupou o setor na condição de convidada, sem pagar nenhum tostão.
A reação imediata dos dois principais adversários da presidenta na campanha eleitoral refletiu uma pobreza de espírito similar à do xingamento. Parece até que combinaram. Ambos disseram que Dilma estava colhendo o que plantou. Poucas horas depois, o ex-governador Eduardo Campos (PSB) e o senador Aécio Neves (PSDB) se deram conta de que pessoas civilizadas não apoiam ataques do gênero. Também em sintonia, ambos voltaram atrás. Para o filósofo Janine Ribeiro, os dois presidenciáveis revelaram no episódio não entender que o xingamento partiu de um grupo que representa o atraso: “O mais grave é que o erro não foi cometido por maldade. Foi por falta de tirocínio.
Eles não entenderam que aquilo era o fim do mundo. Um líder precisa de assessores para questões técnicas, como economia. No que diz respeito a valores, ele não pode terceirizar”.
Nas questões técnicas, Aécio também se deu mal dois dias depois, quando foi instado a discutir a gestão do setor elétrico brasileiro pela jornalista Renata Lo Prete, durante entrevista ao vivo na GloboNews. Questionado sobre o apagão seguido de racionamento no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, o presidenciável chegou a argumentar que não era advogado do ex-presidente. Dando mostras de despreparo para analisar a gestão do sistema elétrico, Aécio tentou mudar o tema para o “sectarismo” e “intolerância política” do PT. Não deu certo. A jornalista voltou ao foco da entrevista. No final das contas, o presidenciável deixou escapar uma ótima oportunidade para expor suas propostas para o setor. É provável que, confiando na postura anti-PT da emissora, ele não tenha se preparado para a entrevista. E encontrou pela frente uma profissional que faz a lição de casa e não a lição da casa.
O governo, por sua vez, deixou brechas na resposta às reivindicações das ruas e ao que o ministro Gilberto Carvalho classificou como “pancadaria diária” promovida pela mídia. À frente da Secretaria-Geral da Presidência, Carvalho lançou um alerta: o xingamento à presidenta não veio apenas pela “elite branca”, expressão cunhada pelo advogado Claudio Lembo, quando governava São Paulo (leia mais à página 48). Em encontro com blogueiros e ativistas pró-governo, o ministro afirmou que, na falta de um contraponto consistente à grande mídia antipetista, preconceitos e valores da elite tão bem definida pelo ex-governador haviam se propagado pela sociedade. Carvalho não foi ao jogo, mas esteve nas imediações do estádio na abertura da Copa. “Tinha muito moleque gritando palavrão dentro do metrô”, afirmou o ministro, responsável pela interlocução do governo com os movimentos sociais. “A coisa desceu.
Isso foi gotejando, de água mole em pedra dura, esse cacete diário de que inventamos a corrupção, de que nós aparelhamos o Estado brasileiro, de que somos um bando de aventureiros que veio aqui para se locupletar. Essa história pegou.”
Conhecido por suas posições à direita do espectro ideológico, o historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos, discorda, é claro, da avaliação do ministro. Perguntado sobre a primeira reação de Eduardo Campos e Aécio Neves ao xingamento na Arena Corinthians, o historiador não analisou a postura dos presidenciáveis. Preferiu atacar o alvo dos palavrões: “A presidenta tentou se transformar em vítima. Pura malandragem no País de Macunaíma. Quem foi agredido foram os gastos bilionários da Copa, marcados pela corrupção, foi o povo brasileiro”. Com relação às redes sociais, Villa acredita que o problema principal são os blogs pró-governo. Em sua opinião, os governos petistas tiveram uma situação muito confortável desde que chegaram ao Palácio do Planalto, em janeiro de 2003: “A oposição, em quase 12 anos, bateu muito pouco no governo”. Ainda assim, o historiador acredita que as próximas eleições serão sujas, muito sujas.
O acirramento das posições políticas, como se vê, não só existe como tende a aumentar por causa das eleições de outubro. Por outro lado, o desconforto com o quadro institucional brasileiro e a discussão sobre uma possível agenda de pacto social está longe de ser novidade. Pode-se dizer que nasceu ainda em 1988, junto com a nova Constituição. O tema voltou agora à tona, principalmente pelo esgotamento de um sistema político-partidário com mais de 30 agremiações e quase nada de diferença programática. Publicada no Valor Econômico em meio aos jogos da Copa, uma entrevista do economista João Manuel Cardoso de Mello mostrou a necessidade de discutir uma reforma dessa natureza. Com o peso de quem foi professor e orientador no Instituto de Economia da Unicamp de Dilma Rousseff – e colega de José Serra na instituição –, é amigo de ambos há anos, votou em Dilma em 2010 e em Serra quando este concorreu a prefeito de São Paulo, o professor João Manuel propõe uma ação vigorosa para restaurar a representatividade do sistema.
“O grande problema brasileiro, ao contrário do que as pessoas pensam, é uma desordem político-institucional. A política se transformou em um negócio. O partido da presidenta tem 20% do Legislativo, logo a presidenta é refém de partidos de aluguel. Esse é o problema. São 39 ministérios necessários para acomodar os anões, para não dizer os ladrões. Uma campanha para presidente da República custa R$ 700 milhões. Portanto, se estabelecem aqui relações espúrias e incestuosas entre os financiadores da campanha e o Executivo. E aí vem o problema do financiamento público das campanhas”, relaciona João Manuel. O economista critica ainda o Poder Judiciário, a começar pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que estaria “legislando”, a despeito do espírito da Constituição.
Amigo de longa data e ex-professor de João Manuel, o ex-presidente do BNDES Carlos Lessa leu a entrevista maravilhado. Não resistiu a ligar para o velho companheiro para felicitá-lo pelas ideias e franqueza. Ao telefone, combinaram uma visita de Lessa a Campinas, para conversar, justamente a partir do que foi dito na entrevista. Ao contrário de Mello, que defende a eleição de uma Assembleia Constituinte para “reordenar” o quadro político-institucional, Lessa diz ver poucas chances de a iniciativa vingar, justamente devido à baixa representatividade dos partidos. “O absoluto da Constituição de 1988 é afastar a miséria, minimizar os problemas de saúde e garantir aposentadoria digna a todos os brasileiros. Foi isso o que foi pactuado naquela época”, diz Lessa.
Na avaliação do economista, de 1988 para cá, o núcleo relativo aos direitos dos trabalhadores foi “razoavelmente preservado”, mas os gastos sociais não foram completamente implementados. Ele critica ainda o fato de a Secretaria do Tesouro ser na prática quem decide o orçamento federal, não o Congresso Nacional. “As questões de desenvolvimento em si desapareceram do debate. O resultado é que somos uma caricatura do país projetado pela Constituição de 1988, após 40 mil medidas provisórias editadas, com a supremacia absurda do Executivo.” Ele defende consultas populares para saber a opinião da sociedade a respeito de temas como o monopólio estatal do petróleo e outros “divisores de água” ideológicos. “Quero saber qual é o projeto nacional, saber qual é a nossa utopia como sociedade”, afirma.
Ocorre que, quando o governo Dilma falou em ampliar a participação popular, o radicalismo ideológico logo deu as caras. Uma parcela da mídia logo taxou-a de antidemocrática, com inspiração chavista ou castrista, conforme o gosto do crítico. Poucos lembraram que essa é uma característica de democracias avançadas, caso da Suíça. A discussão em profundidade está para acontecer. O certo é que, daqui até a abertura das urnas, no jogo da política, vai faltar caneleira. Resta saber qual será o impacto dessa postura no “terço gordo” dos eleitores, aquele que não está rachado. Para o cientista político Fernando Abrucio, da Fundação Getúlio Vargas, quem joga pela polarização, só convence os próprios pares: “Uma grande parte do eleitorado não será convencida por um discurso de polarização, muito menos de intolerância”. Nessa temporada de campanha eleitoral, o ideal, na verdade, seria a entrada em campo de uma boa dose de alteridade. Em vez de tentar destruir o outro, desenvolver a capacidade de conviver com as diferenças.
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