Eles se deitaram numa nesga de grama em meio a enorme laje de pedra. Com os braços cruzados atrás, ficaram ali a tarde toda, vendo as nuvens passarem. Ela, extasiada nas alturas, identificava formas nas nuvens e sorria. Ele, encantado, deixou-se levar pela fantasia. Ela via leões e carneiros. Há sempre carneiros, disse ela. E assim foram por um tempo sem medida. Mas, então, vieram nuvens enroladas de escuro. Prenúncio de chuva. O vento foi desmanchando as nuvens. Vieram outras ainda mais escuras e logo trovoadas e alguns lampejos. Ele se deu conta do efêmero. Ela falou para descerem, era perigoso ficar ali no alto. Ele, por ele, ficaria lá. Seria carbonizado pelos raios, encharcado pelas águas e drenado morro abaixo. Mas, encantado, aquiesceu. Desceram molhados e apaixonados. Aquela coisa das nuvens.
Em poucos meses, foram morar juntos. Nas viagens, ia sempre ele ao volante e ela com os olhos nas nuvens e nas montanhas. Descobria formas, faces e animais. Com o tempo, passou a ver coisas nos fundos das xícaras de café, nas torradas e nas poças d’água. Via pessoas e animais. E então, quando vieram os filhos, três, ela passou a ver coisas nas fraldas. Fraldas sujas não têm a beleza das nuvens e das rochas, considerou o Noronha. Ela disse que não era questão de beleza, eram sinais. Ele estranhou. Se os padrões que ela antes via nas nuvens o encantavam, os que vinham das fraldas o assustavam. E quando ela passou a ver números nas músicas, ele teve medo. Anteviu encrenca. Dito e feito, ela passou a tomar decisões com base nos números e logo começou a jogar com o dinheiro que herdara da mãe, guardado para educação dos filhos. Jogava escondido. Perdeu tudo no bingo e no bicho. Perdeu as calças. E não foram só as próprias. Também as do Noronha foram embora numa enxurrada de cheques borracha, promissórias e faturas. um horror. Não havia mais diálogo e ela, frente à bancarrota, deu para fumar e beber. Entornava como gente grande. Ademais, foram surgindo as alucinações e um assustador discurso desorganizado. O Noronha não via saída.
Em janeiro de 2007, ele consultou amigos, psicólogo, médico e um advogado. Havia consenso: mulher louca. Se ele não pulasse fora do barco, iriam os cinco juntos para o fundo do mar. Ele não podia nem pensar em pular fora. Deixar seus três pequenos naquele inferno? Nem pensar. Havia que negociar uma solução. Cuidadosamente, aproximou-se mais dela e apresentou caminhos. Buscou soluções. De lá e de cá, com muito jeito, tentou salvar os filhos. Ela, para escapar do iminente abandono, se agarrava às crianças, valiosos reféns. O Noronha logo viu que daquele mato não saía coelho. Pragmático e sempre positivo, decidiu reduzir a tragédia a drama. Levou tempo e precisou de muita coragem, mas conseguiu. Salvou as crianças. Em julho, ele voltou ao mesmo advogado para abrir inventário da finada esposa. Havia testamento, mas nenhum bem. É coisa rápida, disse ele. O advogado, surpreso, expressou seu pesar e perguntou o que acontecera. Ele falou do terrível acidente na Pedra do Lobo, no Parque Nacional do Itatiaia. O advogado meneou a cabeça e pediu uns papéis. Não falou mais nada. Falar o quê?
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