Ele foi levado à pia batismal da Matriz de Ribeira de Murça, nas cabeceiras do Rio Douro, no dia 22 de janeiro de 1973. Recebeu o nome de Tiburcio Souto Brandão, um bom começo. Cresceu em ambiente abastecido e acolhedor. Feliz. Desde menino, à mesa, desfrutava os enchidos, as farinheiras e as morcelas feitas pelo pai. Um tipo de ossatura larga, bigode denso, muito sério.

Pequerrucho ainda, Tiburcio tinha olhares para além da Ribeira. Falava de África e das Américas. A velha avó, conhecida pitonisa da Ribeira, certa feita considerou que o neto era um puto de apetites gerais e prognosticou, para horror de todos, que ele seria varado à bala em terra de brutos. Aquilo deixou a família horrorizada.

Em setembro de 2003, Tiburcio veio para o Brasil. Com a fala firme, e sua bela estampa, foi se arranjando em São Paulo. Primeiro como garçom no Restaurante Itamarati. Depois, à cozinha, onde fazia o paio de lombo, o chouriço goês, a paiola e as alheiras. Aí, sim, foi um sucesso. Não tardou a montar seu negócio em um canto da rua da Cantareira. Criou fama.

Cativante, com seu apetite pelas coisas, descrevia cada produto a dar água na boca. Certa feita, estava ele ainda no balcão, quando entrou uma linda mulher. Tiburcio encantou-se com aqueles olhos, apeteceu-lhe a boca, o corpo e logo a voz. “Que mulher!” Contido, disse: “Em que posso ser útil?”. Mas não foi isso que disseram seus olhos. Ela percebeu. Naquele mesmo instante flamejou um encanto entre eles. Ele foi falando dos embutidos e do trato das carnes. A sonoridade daquilo encantou a mulher. “Que gosto pelas coisas!”, pensou. Ah, aquele apetite que extravasa e encanta quando educado e contido. Assim começou aquele flerte. Mas o marido dela, um juiz de Direito, não tardou em perceber traços do encantamento no olhar da mulher – isso se percebe – e supôs haver algo mais.

Para um juiz, é o que basta. Ao entardecer de uma sexta, com seu 38 na cintura, seis balas no tambor e mais seis no bolso, foi à justiça.

Encontrou Tiburcio só, ao fundo de seu pequeno comércio. À distância, pelas costas mesmo, descarregou o revólver no presumido comborço. O português tombou e o transtornado juiz fugiu. Tiburcio – afortunado – só teve duas balas encravadas na omoplata. Sobreviveu.

O juiz, enlouquecido, voltou para casa. Nem bem abriu o portão, descarregou o revólver na mulher, que regava o jardim. Não acertou nem sequer um tiro. Na verdade, acertou um gato – desafortunado – que dormitava no muro.

Foi precisamente a dona desse gato que trouxe tudo à tona. Nos jornais e na televisão a indignação foi grande. Inócua como sempre. O fato é que o magistrado, enfim, foi julgado por seus pares em foro privilegiado e absolvido. No caso de Tiburcio, prevaleceu a tese de legítima defesa. No caso da mulher, prevaleceu a tese de acidente doméstico com arma de fogo. A um jornalista que escreveu sobre a evidente passionalidade do desvairo, coube processo de difamação e pesada indenização. A mulher, que não conhecia o próprio marido, mas conhece juízes, não deu um pio. Nem no julgamento, nem depois.

Varado à bala em terra de brutos? Varado mesmo não foi, mas esse é um detalhe irrelevante. Há consenso em Ribeira de Murça.


*PhD pela Universidade de Cambridge, foi professor titular da USP. É autor dos livros Choro de Homem (Ateliê Editorial) e O Pai de Max Bauer (Ateliê Editorial/Editora Brasileiros).


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