Estudiosos e amigos?próximos garantem que Elizabeth Bishop sabia de sua qualidade literária e de sua importância como escritora. Mas dificilmente ela poderia imaginar que, no ano de seu centenário, comemorado dia 8 de fevereiro, tanta gente também soubesse disso. Considerada por muitos anos “poeta de poetas” e cultuada em um pequeno círculo de leitores refinados e professores de literatura, sua fama não parou de crescer nas três décadas que se passaram depois de sua morte, em consequência de um aneurisma, em 1979.Autora de uma pequena grande obra – pouco mais de 80 poemas, contos, um livro-reportagem, traduções e correspondência, esta, sim enorme -, ela é o tema de teses, biografias, romances, peças de teatro e filmes. Em 2005, chegou a Hollywood: seu poema mais conhecido, Uma Arte, foi lido por Cameron Diaz no filme Em seu Lugar (In Her Shoes).[nggallery id=14991]”Ela ficaria espantada”, acredita o poeta, professor e crítico musical Lloyd Schwartz, um dos maiores especialistas em sua obra e amigo próximo, em seus últimos anos de vida. “Ela chegou certamente a um pico de fama e admiração de que jamais desfrutou em vida”, reconhece. Schwartz foi um ativo participante da programação do centenário nos Estados Unidos. Organizou uma nova edição de sua prosa para a Editora Farrar, Straus & Giroux, uma nova publicação da obra completa para a coleção Biblioteca Americana e foi um dos integrantes da noite de leituras realizada em Boston, em fevereiro. As comemorações do centenário aconteceram nos Estados Unidos e no Canadá, a terra da família materna da poeta, onde ela viveu os poucos anos felizes de sua infância, na casa da avó, em um vilarejo da Nova Escócia. Os canadenses lhe prepararam, entre outras homenagens, um concerto sinfônico e um almoço brasileiro em uma churrascaria de Halifax. Também o mundo universitário americano se mexeu para a ocasião. Entre outros eventos, Vassar, a tradicional faculdade do Vale do Hudson, onde estudou, e que é dona do maior arquivo de documentos sobre ela, prepara uma exposição e um simpósio.No Brasil, onde ela viveu de 1951 a 1967, ao lado da companheira Lota Macedo Soares, e depois, por temporadas esparsas, na casa que possuía em Ouro Preto, Elizabeth Bishop foi, inicialmente, privilégio exclusivo das pessoas que conviveram com ela. Primeiramente, das que lhe foram apresentadas por Lota, filha de uma aristocrática família carioca e paisagista autodidata, ela integrou a equipe de Carlos Lacerda quando ele foi eleito governador do extinto Estado da Guanabara, em 1961. Deve-se ao seu empenho obstinado a construção do Parque do Flamengo, no Rio. Ovelha negra em seu meio, Lota tinha acesso à elite do País e impaciência com seus representantes, por conta de seu lugar transgressor de mulher homossexual. Os comentários ácidos sobre o Brasil que aparecem nas cartas de Elizabeth a seus amigos americanos – segundo ela, os grã-finos brasileiros nunca leram um livro, só querem saber de quem-vestiu-o-quê – ecoam as opiniões de Lota. Também reproduz o olhar politicamente conservador da amiga por seu aplauso ao Golpe Militar de 1964, o único remédio “para acabar com toda essa roubalheira”.Além dos amigos que frequentavam o apartamento no Leme e a moderníssima casa de Samambaia, na Serra Fluminense, projetada por Sergio Bernardes, onde viviam, Elizabeth conviveu aqui, pela primeira vez na vida e não sem espanto, com a categoria dos “empregados”. A cozinheira, o hortelão, o jardineiro, os pedreiros foram assuntos de infindáveis cartas e alguns poemas, entre eles Manuelzinho e Meeiros. Elizabeth envolvia-se pessoalmente com o destino deles – preocupava-se com a sopa dos bebês, queria ensinar inglês à empregada da casa de Ouro Preto. Interessou-se em conhecer escritores brasileiros, cujos nomes, ela brincava, davam câimbras na língua – Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira. Seu primeiro encanto literário local foi um livro de prosa – Minha Vida de Menina, de Helena Morley, o pseudônimo literário de Alice Caldeira Brant. Elizabeth o traduziu para o inglês, com o título de Black Beans and Diamonds. Já de volta aos Estados Unidos, em 1972, traduziria poetas contemporâneos em uma antologia que editou com Emanuel Brasil (An Anthology of Twentieth Century Brazilian Poetry).O convívio de Elizabeth com os brasileiros modificou-se depois da morte de Lota, em Nova York, em 1967. A relação das duas chegara sofridamente ao fim, Lota estava frágil e doente e Elizabeth decidiu partir. Inconformada, Lota foi encontrá-la em Nova York e, na mesma noite da chegada, tomou uma overdose de tranquilizantes e morreu depois de uma semana em coma. Os amigos brasileiros das duas apressaram-se em responsabilizar Elizabeth pela morte de Lota, o que a abalou profundamente. O artista plástico José Alberto Nemer, que a conheceu logo depois em Ouro Preto, disse que ela exibia “um olhar de animal ferido”. Rompida com os velhos conhecidos cariocas, ela incluiu mais amiúde em sua roda moradores de Ouro Preto que já conhecia, como Lili Correia de Araújo e seu filho Pedro, ou como Nemer e sua irmã, Linda, então estudante de Economia, a quem foi apresentada naquele começo dos anos 1970. Jovens escritores e estudantes iam à sua casa com certa reverência. Entre eles, Affonso Romano de Sant’anna e a hoje psicanalista Maria Ângela Moretzsohn.A proximidade dos mineiros contribuiu muito para alimentar no Brasil a mitologia de Elizabeth Bishop. Apreciadores de humor e sutileza, esses novos conhecidos e os amigos deles mantiveram vivos em conversas, entrevistas, prefácios e colunas de jornal, um delicioso repertório de casos e frases, nem sempre contemplados em teses e biografias. Os principais depositários desse tesouro são os Nemer.
A GRAVURA DE UM POEMACarta, na íntegra, do artista plástico José Alberto Nemer, amigo de Elizabeth Bishop, para Marta Góes, autora desta matériaHá pouco tempo, Lloyd Schwartz me escreveu, em nome dos editores, perguntando sobre a origem do poema Close, close all night, com um agravante: os editores precisavam desesperadamente de um “certificado de origem” do poema para incluí-lo na antologia que está saindo. Tive que dizer que este poema eu li pela primeira vez, em circunstâncias especiais, numa carta de Elizabeth endereçada a uma pessoa a quem prometi, mais que discrição, sigilo. Eu acabava de voltar definitivamente para o Brasil e Elizabeth tinha morrido havia poucos meses. Fiquei comovido com o poema e pedi para anotá-lo. Abri minha agenda e o copiei: 24 de agosto de 1980. No dia seguinte fiz um desenho inspirado nele. Poucos dias depois fiz a gravura em metal, com uma tiragem mínima (que não passa de 8 ou 10 exemplares), fora de comércio e que presenteei a quem, de alguma forma, entrou mais afetivamente na minha vida. Com a urgência e extrema necessidade “científica” de Lloyd e dos editores, tentei retomar os caminhos de busca, em vão. Temo que o original deste poema tenha se perdido para sempre.Pergunta: como ele veio à tona? Resposta: quando Lloyd esteve no Brasil para o lançamento de seu livro Elizabeth Bishop and Her Art, em 1990, viu a gravura emoldurada e leu o poema. Lembro-me da cara que fez naquele momento, algo comparável a um desses garimpeiros do Jequitinhonha quando vê um diamante de meio quilo no fundo da bateia. Ele me pediu e eu lhe prometi uma cópia. Pouco tempo depois, Lloyd publicou na revista New Yorker, de 30 de setembro de 1991, uma longuíssima (13 páginas) matéria – Annals of Poetry– sobre Bishop no Brasil. Você certamente conhece esse texto, mas já que estamos passando a limpo certas experiências e por tentação do diabo (ou anjo?) memorialista, transcrevo o trecho em que fala do poema:José Alberto Nemer, irmão de Linda e um pintor nacionalmente reconhecido was host. Bishop o encorajara – e até lhe emprestara dinheiro – quando ele era um artista principiante. Ele me perguntou se eu já vira “Close Close All Night”, o poema de Bishop que ele “gravara” como um presente de casamento para sua mulher. Respondi que não. Depois, no Rio, alguém a quem perguntei sobre o poema me recitou de memória, mas eu não o vi até voltar aos Estados Unidos, quando José Alberto, me mandou uma cópia de sua gravura. As linhas do poema estão escritas na caligrafia do artista, sob a imagem de duas amantes abraçadas numa cama. Um braço envolve um corpo de mulher, sob seu seio, a segunda figura escondida atrás dela, não identificada, andrógina. A silhueta dos lençóis sobre os quais elas se deitam sugere a moldura montanhosa de Ouro Preto, e na escuridão sobre as amantes flutua uma lua crescente”.Close close all nightthe lovers keep.They turn togetherin their sleep,close as two pagesin a bookthat read each otherin the dark.Each knows allthe other knows,learned by heartfrom head to toes.A partir daí, Lloyd se envereda por uma análise do poema e da conotação sexual nele. O fato é que, a partir dessa publicação, um poema inédito (e atípico?) de Elizabeth já estava no mundo e não foram poucos os pedidos que tive de biógrafos, doutorandos, etc. para “dar maiores explicações” sobre a trouvaille. Uma dessas especialistas, provavelmente já sabendo que eu não tinha muito a dizer além da gravura, resolveu me mandar uma carta bastante formal (com envelope timbrado para retorno), contendo duas dezenas de perguntas sherlockianas sobre o poema. Era um inquérito. No final das contas, sexual ou não, costumo resumir que, para mim, esta é a melhor reflexão poética sobre a 1001ª posição. Quando todas as outras se esvaziaram de sentido, é esta que prevalece. Graças à poesia, claro.O beijo do NemerPS: Como diria Lampedusa: tanto leu que tresleu. Sou assim quando me tentam. |
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Filhos de uma numerosa família libanesa de Ouro Preto, José Alberto e Linda (atual proprietária da casa que pertenceu à poeta) tiveram convivência muito próxima com Elizabeth em suas últimas temporadas no Brasil. Foram testemunhas de seus melhores e piores momentos naqueles anos, aos quais se referiam como “o tempo de Elizabeth”. Viram-na cozinhar suas famosas geleias e conservas, receber visitas, cuidar dos gatos Suzuki e Tobias e arrumar a casa. Viram-na também trancar-se em seu quarto e beber até o delírio, em algumas ocasiões, em que a acudiram carinhosamente.Foram eles que contaram uma das mais belas histórias reproduzidas pelo editor Robert Giroux em seu prefácio para o livro Uma Arte (One Art), a reunião de sua correspondência. Ao entrar um dia na casa da amiga, que recebia a visita do poeta americano James Merrill, Nemer a surpreendeu chorando. Diante de sua expressão preocupada, Elizabeth o tranquilizou: “Não se preocupe, José Alberto, só estou chorando em inglês”. Ele se lembra também de tê-la visto impaciente, em uma noite de frio, debruçada sobre a lareira de ferro, importada dos Estados Unidos. Munida de jornais, gravetos, álcool e fósforos, tentava havia algum tempo acender o fogo. Comentou com ele a injustiça da situação, com uma frase mais ou menos assim: “Se fosse para provocar um incêndio, bastaria uma fagulha”.Quando a poeta morreu, fazia sete anos que não via seus amigos mineiros. Deixou para Linda, em testamento, salas comerciais no centro do Rio de Janeiro. Alguns anos depois, com o dinheiro da venda dessas salas, Linda comprou a casa, que ficara para Alice Methfessel, sua principal herdeira, falecida em 2010. Com a ajuda do irmão, Linda mantém cuidadosamente a casa Mariana, assim batizada em homenagem à poeta Marianne Moore, madrinha literária de Elizabeth. A primeira reforma que fez no telhado foi custeada com a venda para Vassar de manuscritos que Elizabeth deixou aos cuidados da amiga em uma caixa de sapatos. “Um dia isso vai valer dinheiro e você pode vender”, recomendou. Entre eles estava um dos raros poemas em que ela se refere ao amor homossexual(Juntas, coladas, a noite toda/as amantes estremecem durante o sono/próximas como as páginas do mesmo livro/que se lêem no escuro/Cada uma sabe a outra/de cor, minuciosamente/da cabeça aos pés). De lá para cá, a manutenção esmerada ficou por conta de Linda. Neste ano, com ajuda da Sotheby’s, ela pôs a casa à venda. No melhor cenário, uma universidade americana ou uma empresa brasileira pode transformá-la em um centro de estudos. No pior, um empresário do setor hoteleiro quererá instalar uma piscina naquele jardim de copos de leite e banheiras jacuzzi sobre o assoalho secular.O Brasil teve forte impacto na vida e na obra de Elizabeth Bishop. Ao chegar aqui, com 41 anos, em uma escala da viagem de cargueiro que fazia em torno da América do Sul, ela era ainda uma mulher insegura, devastada pelo alcoolismo e uma escritora, senão principiante, pelo menos obscura. Só escrevera um livro (A Cold Spring) até então. A temporada no Brasil, prolongada inicialmente porque ela teve de ser internada, com forte crise alérgica, quando comeu um caju. E depois, por 15 anos, porque encontrou em Lota um grande amor, foi um período de conquistas e mudanças. Produziu aqui boa parte de sua obra e reportou-se àqueles anos em obras posteriores. Estava aqui ao ganhar o Pulitzer, em 1956, por North & South/A Cold Spring. Publicada no Brasil a partir dos anos 1990, pela Companhia das Letras, sua obra está esgotada. A editora estuda a possibilidade de alguma nova edição. A casa onde ela viveu, em Samambaia, está intacta (já que em Petrópolis apenas o Vale do Cuiabá foi atingido pela tragédia climática de janeiro), mas pertence a particulares, não pode ser visitada senão com a autorização dos proprietários. A casa de Ouro Preto espera um patrono. Agora que o Brasil é tão rico, bem que poderíamos nos proporcionar o luxo de dar uma sede a essa memória.
Lançamentos
Prose, Elizabeth Bishop. Edição de Lloyd Schwartz, Farrar, Straus and Giroux, 2011.Poems, Elizabeth Bishop. Edição de Saskia Hamilton, Farrar, Straus and Giroux, 2011.Elizabeth Bishop and theNew Yorker: the CompleteCorrespondence. Edited by Joelle Biele.Farrar, Straus and Giroux, 2011.Poems, Prose & Letters. Edição de Lloyd Schwartz, The American Library, 2008.Obra publicada no Brasil (esgotada)Uma Arte, Cartas de Elizabeth Bishop. Tradução de Paulo Henriques Britto,Companhia das Letras, 1994.Esforços do Afeto. Tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, 1996.Poemas do Brasil. Seleção, introdução e tradução de Paulo Henriques Britto,Companhia das Letras, 1999.O Iceberg Imaginário – Antologia Bilíngue do Trabalho Poético. Tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, 2001.Outras leiturasUm porto para Elizabeth Bishop. Texto da peça de Marta Góes, prefácio de HumbertoWerneck, Editora Terceiro Nome, 2001.Flores Raras e Banalíssimas.Carmen L. Oliveira, Editora Rocco, 1996.Elizabeth Bishop: Life and theMemory of It. Brett C. Millier’s, Universityof California Press, 1993.Elizabeth Bishop, the Biographyof a Poet. Lorrie Goldensohn,Columbia University Press, 1992.Elizabeth Bishop: Questions of Mastery. Bonnie Costello, 1991.Becoming a Poet. David Kalstone, 1989.Duas artes – Carlos Drummond de Andrade e Elizabeth Bishop. Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2007.Site do centenáriohttp://elizabethbishopcentenary.blogspot.com/ |
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Nota da redação: A peça Um Porto para Elizabeth Bishop
, de Marta Góes, que estreou em 2001, volta ao cartaz em maio, no teatro Eva Hertz, em São Paulo.
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