Um livro pode ser um dever. Quantas obras incômodas não somos obrigados a ler? De tratados de autoajuda a teses mal digeridas, de originais fracassados a artigos que atentam contra o bom senso. E quantos livros nós nunca saberemos se estavam ou não destinados a um leitor?
Depois que meu pai faleceu, eu soube que ele tinha escrito um livro. Manuscrito em caderno pequeno com espiral. Só havia letras de forma. Três meses antes, ele o incendiou. Por que alguém escreve um livro para queimar? Então, recordei as vezes em que ele ia ao fundo do quintal com folhas manuscritas e as queimava em uma fogueirinha de papel como se fosse um ritual de expiação.
Três meses antes de sua morte, ele me pediu para que lesse a Ponte de São Luiz Rei. O pedido não viera assim direto. O meu pai era soldado e não atirava palavras a esmo. Era ele mesmo quem limpava sua arma e só usava vocábulos escolhidos. Donde lhe vieram? Do avô que fez uma guerra e alguns poemas sobre o tempo e o amor? Não, meu pai só me pedia com sugestões interrogativas. E desafiava: “Você não leu a Ponte de São Luiz Rei!?”. E para evidenciar uma surpresa já esperada e nada surpreendida a exclamação vinha antes!
Felizmente, eu não conhecia ainda a existência do filme de Mary McGuckian, que conta com elenco de primeira ordem (Gabriel Byrne, Robert De Niro, Harvey Keitel, Geraldine Chaplin, Pilar López de Ayala e Kathy Bates no papel de Doña Maria, a Marquesa de Montemayor). Ainda assim, a majestosa recriação de uma época fez a película perder a complexidade da narrativa de Thornton Wilder.
E três meses se passaram. Do hospital no Cambuci, eu saí para a rua com os olhos secos. No Ornabi, velho alfarrábio paulistano do senhor Luiz, fora fácil encontrar a obra. Mas estava em uma língua bárbara que minha péssima formação escolar impedia. Desacostumado à arte, só lia naquela língua história, política e outras ciências menores.
O livro ficou ao largo de minha vida – que vida é aquilo que chamamos acordar, comer e dormir. Às vezes, sonhava entre um prato e outro. Como de manhã tomar a xícara de café e lágrimas? Tinha de fazer como todo mundo e não se arrastar por aí com a minha dor tão elegante.
Um dia cumpri a tarefa. Domei as dificuldades com afinco. Usei os dicionários que tinha e deparei-me com um único fato: em 20 de julho de 1714, no Peru, uma ponte desaba com cinco pessoas. Frei Juniper escreveu um livro sobre o caso, e é a partir daí que conhecemos as esperanças, os acasos, as lembranças e dores que levam cada personagem estar ali naquele exato momento. Talvez houvesse uma intenção?
Quantos livros nós lemos primeiro como tarefa e, depois, como descoberta? Um livro pode ser uma ponte entre o dever e a liberdade.
*Professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo.


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