Quando fui me encontrar com Facundo Guerra levei um estoque de piadinhas de argentino porque sempre li nas revistas que ele é “um empresário argentino”. Mas quem eu vejo no meio da reforma já no final é um cara que de argentino não tem absolutamente nada a não ser o passaporte. Ele fala (e pensa) perfeitamente em português sem nenhum sotaque. Nasceu na Argentina ainda por cima de pais brasileiros, de São Paulo e de esquerda, que fugiram para lá quando no Brasil a coisa ficou preta.
Eu digo pra ele que ao lado do Riviera tinha outro bar, mais modesto, chamado Ponto Quatro e em frente o Cine Belas Artes, onde passavam os melhores filmes da cidade. A gente ia ao cinema, depois atravessava a rua. Nos fins de semana as pessoas não cabiam dentro dos dois bares, conspiravam na calçada e ainda sobravam muitos no leito carroçável com seus copos de cerveja atrapalhando a passagem dos veículos e enlouquecendo os dois garçons.
Não sei porque comecei a ir ao Riviera, – eu disse ao Facundo – mas sei porque continuei. Era onde eu encontrava os meus amigos. A gente se encontrava lá antes da passeata e depois na volta para comentar como foi. Riviera era o programa de toda noite até fechar às 5 da manhã. Depois eu descia a Consolação em direção à Alameda Glete.
GARÇOM ESTRELA
A gente ia ao Riviera – viu, Facundo? – para encontrar meninas gostosas, papos ótimos e garçons totalmente fora do comum. O garçom mais antigo, o Zé, era um coroa que andava encurvado, usava um bigodinho de malandro e levava a noite sempre rindo, contando e ouvindo piada, com seu jaleco de dentista. O outro, Juvenal, se não fosse garçom, seria cover do Charles Chaplin. Era baixinho como o Chaplin, tinha o bigodinho e os trejeitos do Chaplin e era marrudo. Se o cliente chateava demais ele deixava pra lá, não atendia. Podia fazer isso sem medo de perder o emprego porque ele era uma estrela do Riviera. Se fosse demitido metade da freguesia debandaria em protesto. (A gente tinha essa fidelidade com os garçons.) Disputava o mesmo espaço com a Rita Lee e os Mutantes, que vi ao menos uma vez, o Riviera ficava a alguns passos do Teatro Record, o palco dos festivais de MPB.
Aliás, era Record a uns 50 metros, o atelier do Claudio Tozzi a uns 30 metros e a casa do Chico Buarque a uns 100 metros. Por aí dá pra calcular quem frequentava, de intelectual, político, artista a senhora de meia idade, desde que fosse filósofa ou socióloga ou antropóloga. O que nunca se viu lá dentro foi alguém de direita, o bar da direita ficava um pouco mais pra frente, na Alameda Santos esquina Bela Cintra.
Cenas inesquecíveis. Meu amigo Nelsinho Aguilar ficava até 3 ou 4 da manhã fazendo brilhantes resenhas dos grandes filósofos, acompanhadas de sua opinião pessoal a respeito, alguns ele xingava, outros adorava, não me lembro mais quais, em avançado estágio etílico.
ABAIXO A DITADURA
O que era o Riviera? Um ponto de encontro? Uma estação libertária em plena ditadura? Sei lá. Acho que era isso, ali dentro a gente falava mal dos milicos, xingava, sem ter o perigo de algum dedo duro ou pentelho ouvir e contestar. Todo mundo lá dentro detestava os milicos e os Estados Unidos! Abaixo a ditadura! Yankees go home! Isso nos unia a todos. Se algum dia aparecesse alguém lá dentro defendendo a ditadura seria atirado na rua na mesma hora, embora todo mundo ali fosse pacífico. Estávamos no tempo do paz e amor. Principalmente amor. Não existia Aids. As meninas bonitinhas, de pele macia, voz aveludada iam pra cama com a gente na mesma hora se fossem com a nossa cara ou o nosso papo. E a gente as encontrava no Riviera, geralmente borboleteando em torno do pintor galã Claudio Tozzi e do seu amigo também arquiteto Serginho Maravilha, o homem-sorriso, um cara que eu não nunca vi triste.
Me lembro de uma menina, que não consegui namorar, ela curtia fazer malhas de tricô, um dia me deu um gorro de cores psicodélicas. Éramos portanto psicodélicos de esquerda. Quem não tinha colírio usava óculos escuro. A gente lia Marx de baseado na mão.
O GÊNIO DO MAL
Os donos do Riviera também faziam parte do espetáculo. O dono dono era um coroa com dois filhos, com idade um pouco maior que a nossa. Um dos filhos ficava no caixa de cara amarrada, principalmente quando a gente pedia pra pagar no dia seguinte. O outro, desse eu me lembro o nome, Renato, era mais bonachão, não esquentava tanto (a não ser quando via prato quebrado por distração do Juvenal ou do Zé).
Um dia a prefeitura cismou de acabar com a nossa festa. (Estava demorando.) Algum gênio do mal inventou de construir ali uma “passagem subterrânea” , bem entre… o Riviera e o Belas Artes, como se alguém precisasse daquilo. Claro que não precisava. Fizeram aquilo para destruir a sua bela varanda e colocar uma concha bem na frente. Metade da freguesia se mandou.
A concha, eu acho, decretou o fechamento do Riviera, que ficou fechado por muitos anos. Esse Riviera que o Facundo e seu sócio Alex Atala vão reabrir tem o mesmo nome, fica no mesmo lugar esquina Consolação com Paulista (a concha continua lá) mas é claro que não é aquele dos anos 1970, da esquerda, do abaixo a ditadura, porque a ditadura caiu, estamos todos vivos e o Riviera vai ser um novo Riviera.
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