“Rejeitados, hostilizados, vítimas de violência doméstica.” As palavras que aparecem nos relatórios da Fundação Criança de São Bernardo do Campo (SP) descrevem características comuns a adolescentes atendidos pela instituição por terem comportamento agressivo. Entre as agressões, a prática de bullying. A palavra inglesa foi repetida à exaustão depois da tragédia em Realengo, como uma espécie de mantra, na tentativa de explicar o massacre. Os vídeos deixados por Wellington Menezes de Oliveira revelam o desejo de vingança contra as agressões sofridas quando aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira: “Uma ação que farei pelos meus semelhantes, que são humilhados, agredidos, desrespeitados em vários locais, principalmente em escolas e colégios, pelo fato de serem diferentes…”.
Humilhados, agredidos, desrespeitados… As palavras usadas por Wellington para descrever o sofrimento das vítimas do bullying são parecidas com as usadas pelos profissionais que cuidam dos jovens que agridem por meio dele. Para ativistas e especialistas que tratam da violência contra a criança, essa desconfortável semelhança não é contraditória: “A criança não é uma tabula rasa. Ela reproduz o que aprende, o que vê e o que sente. Ela não é cruel. Cruéis são os adultos à sua volta”, diz Cláudio Costa, advogado, ativista e professor do curso de mestrado Adolescente em Conflito com a Lei, da Universidade Bandeirantes, em São Paulo. “Agressores e agredidos são vítimas de um mesmo processo de falta de solidariedade, individualismo, desvalorização da família, disputa, competição”, avalia Ariel de Castro Alves, presidente da Fundação Criança de São Bernardo. “Esses são valores muito próprios do sistema capitalista e não parece coincidência que fenômenos como os de Realengo sejam mais comuns nos países de primeiro mundo”, completa. De fato, o bullying preocupa a sociedade norte-americana. Lá, a estimativa é a de que 35% das crianças estejam envolvidas em alguma forma de agressão e violência na escola.
No Brasil, o anglicismo costuma ser substituído por tirania, opressão, intimidação. Segundo estudo realizado pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (Abrapia), em 2002, no Rio de Janeiro, 40% dos alunos do 6o ao 9o ano do ensino fundamental relatavam envolvimento direto em atos de bullying. Agressões físicas, extorsão de dinheiro, realização forçada de atividades servis ou de comportamentos sexuais, insultos, apelidos…
A tragédia em Realengo deu fôlego à discussão na Câmara dos Deputados do projeto de lei que criminaliza a prática do bullying. A proposta parece soar como um alerta de tsunami para alguns: “É demagogia e oportunismo. Já existem figuras associadas ao bullying que estão previstas em nosso código penal: constrangimento ilegal, lesão corporal, calúnia, difamação. O problema é que até hoje essas situações não foram levadas a sério”, alerta Ariel.
Para Fernanda Lavarello, psicóloga e diretora do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Interlagos (Cedeca-Interlagos), criminalizar o bullying é devolver para a criança e o adolescente a culpa pelo crime. “Uma saída fácil para justificar o massacre”, diz. Ela mantém o tom indignado contra a proposta: “Criminalizar é deixar de refletir sobre o que faz com que uma criança oprima a outra. Nossos valores estão expressos em toda a parte e quais são eles? Quem são nossos heróis? O que é valorizado é o forte, o bonito, o poderoso, o esperto. O fraco, o feio e o gordo não são dignos de admiração. Essa dinâmica, que é do adulto, é que é reproduzida pelas crianças”.
Cláudio Costa continua a reflexão: “Nesse momento, o confronto em sala de aula ganha evidência. Mas todas as tentativas de explicação que surgem nesse turbilhão são como um barril de pólvora. Há de se ter cuidado. Condenar é o caminho mais fácil. Sinceramente, não gosto disso”. Enquanto analisa Realengo, o advogado se lembra do caso do ônibus 174, quando Sandro Nascimento, sobrevivente da chacina da Candelária, paralisou o Rio de Janeiro, em junho de 2000, com o sequestro de um ônibus, resultando na morte de uma das reféns e com Sandro sendo sufocado na viatura policial depois de rendido: “Encaramos Realengo como uma grande novidade, mas se pararmos para pensar, os dois casos têm muito em comum. Dois jovens, que lá atrás, no período de desenvolvimento escolar, enfrentaram problemas e que não receberam a atenção adequada. Existe um fenômeno muito palpável que é a ausência de um olhar cuidadoso da infância. Pelo prisma do adulto, tudo ganha o rótulo de delinquência, e o primeiro remédio apontado é a punição”.
Os especialistas fazem coro na interpretação de que o bullying, por si só, não justifica a tragédia de Realengo. “Quase todo mundo que estudou em escola pública ou particular já sofreu algum tipo de humilhação e constrangimento. Se o bullying fosse explicação, teríamos milhares de assassinos no Brasil atacando antigas escolas, antigas faculdades, antigos locais de trabalho”, argumenta Ariel.
Para Fernanda, a tragédia de Realengo serve para escancarar problemas arraigados, o que ela chama de nós: “Temos o nó da saúde mental, o nó da política educacional e o nó da segurança pública”. O desafio para a questão da saúde mental está na construção de um consenso que possa nortear as políticas públicas na área. “Existe uma disputa de concepções de como deve ser o atendimento da saúde mental no País. De um lado, uma concepção que coloca a reclusão como alternativa terapêutica. De outro, a proposta de que o cuidado deve ser dado na convivência social”, explica Fernanda. A cisão nesse campo é perceptível. Se Fernanda chama a reclusão de retrocesso, Ariel defende que em alguns casos, a reclusão é uma alternativa: “Foi um avanço acabar com as antigas masmorras, mas acredito que existem situações em que deve haver internação compulsória, inclusive com decisão judicial”. Entre propostas mais conservadoras e formatos progressistas, o que resta é um vazio que deixa a sociedade sem um caminho claro para lidar com os distúrbios psiquiátricos.
“Já na educação, temos o esvaziamento do sentido da escola. A escola deixou de ser um espaço de convivência e de aprendizado de uma comunidade. Hoje, ou ela é meramente técnica e prepara para o mercado de trabalho ou é instrumento de prevenção ao preencher o tempo dos jovens a fim de evitar infrações.” A infraestrutura da rede de ensino parece colaborar com o quadro. Para Ariel, enquanto o País vem conseguindo ampliar, dia após dia, o acesso às escolas, a qualidade, a estrutura administrativa e humana e a remuneração dos profissionais de educação permanecem paradas no tempo: “Seria importante que a escola contasse com um corpo de psicólogos, assistentes sociais e pedagogos que pudessem olhar o estudante em sua individualidade, perceber os problemas e dar o encaminhamento adequado para situações como agressividade, isolamento, evasão escolar. Existe toda uma rede de proteção formada por conselhos tutelares, centros de assistência psicossocial, promotorias da infância que poderiam atuar em parceria com o sistema de ensino”. Já Cláudio Costa faz um alerta: “Hoje, a sala de aula é melhor que a do passado. Existe mais liberdade de expressão, mais respeito às diferenças. Precisamos avançar e não retroceder. Não dá para começar a discussão pelos detectores de metais na entrada das escolas”.
No quesito segurança pública, um uníssono dos especialistas: a facilidade de acesso às armas de fogo. Um levantamento do Instituto Sou da Paz aponta que metade das 16 milhões de armas em circulação no País é ilegal. “Apenas prender os intermediários que venderam a arma que Wellington usou para o massacre é esconder o sol com a peneira e não ir fundo no problema do crime organizado que envolve, inclusive, a participação de agentes públicos”, critica Fernanda.
Deixe um comentário