Muito tempo atrás, já nem lembro quando, o diretor Walter Salles, irmão do meu amigo João Salles, me ligou para falar de uma reportagem que publiquei na “Folha de S. Paulo” sobre um menino de 12 anos que tinha dirigido um ônibus roubado pela cidade. A história poderia dar um filme, ele me falou.
Anteontem, ao encontrá-lo na pré-estréia do filme “Linha de Passe”, que entra em cartaz nesta sexta-feira, Walter fez uma festa quando me viu, e anunciou aos coleguinhas: “Ele é o responsável pela história”.
Bem, já que ele falou isso, vou seguir o conselho de Caíque Severo, diretor de conteúdo do iG, para escrever uma coluna sobre esta reportagem, pois vários colegas aqui no portal já trataram do filme nos últimos dias.
Tive que recorrer ao meu livro de memórias (“Do Golpe ao Planalto – Uma vida de repórter”), já que não me lembrava mais dos detalhes da história. A reportagem está resumida nas páginas 215 e 216 do livro, no trecho em que falo da minha volta à redação da “Folha”, no longínquo ano de 2001.
“As matérias que mais gostei de fazer tratavam de crianças. Lembro de uma em especial, quando uma pequena nota de registro policial publicada num fim de semana me chamou a atenção: um menino tinha sido preso roubando um ônibus em São Paulo”.
“Na segunda-feira, me ofereci para ir atrás da história, já que não se tratava de um fato comum do cotidiano; era preciso pedir autorização à Justiça para falar com o garoto, enfrentar alguns entraves burocráticos na Febem, descobrir em qual unidade ele estava. Mas no fim deu tudo certo e rendeu uma boa reportagem, que saiu no dia 15 de agosto com o título ‘A aventura do motorista de doze anos em busca do pai’. E o menino, graças à matéria, não ficou mofando nas masmorras da instituição”:
A inacreditável aventura do menino de doze anos, que entrou num ônibus sem motorista na Cidade Tiradentes, na zona leste, deu a partida, saiu dirigindo em direção ao centro e rodou por cerca de oitenta quilômetros em São Paulo, até ser parado pela polícia, na noite de quarta para quinta-feira passada, teve um final feliz ontem à tarde. Detido há seis dias na Febem, PCRS saiu do Fórum das Varas Especiais da Infância e da Juventude acompanhado da mãe (…) Ficará em regime de liberdade assistida e terá que prestar serviços à comunidade.
Baixinho e atarracado, meio envergonhado e meio orgulhoso com a traquinagem, mãos às costas como qualquer interno da Febem, ele ainda parecia assustado às nove horas da manhã de ontem ao entrar na sala de Sonia Regina Cesário, diretora da Unidade de Internação Provisória 7. (…)
A viagem de PCRS, na verdade, começou bem antes, há sete anos, quando “o pai largou da mãe, saiu de casa e desapareceu”. Mais velho dos seis filhos de Silvia e do cobrador de ônibus Sebastião Dias de Jesus, Brutus, como é chamado pelos colegas de rua na Vila Campanela, nunca se conformou com a separação dos pais. “Fiquei triste”, lembra o garoto.
E passou a procurar por Sebastião em todas as garagens de ônibus da zona leste. Tanto zanzou pelas garagens, que acabou fazendo amizade com motoristas, cobradores e mecânicos (…) _ e aprendeu a dirigir. (…)
Ri quando lhe perguntam como conseguia alcançar o pedal do acelerador com seu diminuto tamanho. “Ué, é só puxar o banco pra frente…”
Nunca mais tive contato com o menino, que tem hoje 19 anos, mas parecia que ele estava à minha frente quando vi o filme: o ator mirim Kaique de Jesus Santos está perfeito no papel de Brutus. Não poderiam ter escolhido ninguém melhor, mais parecido.
Para variar, o roteiro é de Bráulio Mantovani, namorado da minha filha caçula, Carolina. Trata-se de um casal de roteiristas que produz roteiros em linha de montagem. Todos os últimos filmes nacionais que assisti tem a assinatura de Bráulio nos roteiros.
Por coincidência ou não, “Cidade de Deus”, “Tropa de Elite”, “Última Parada – 174” e agora o “Linha de Passe” são ambientados em favelas, subúrbios e periferias, tratam de miséria e violência, são tensos e beiram a tragédia humana, deixando uma sufocante sensação de vida meio que sem saída.
Até já pedi ao Bráulio para que suas próximas histórias nos façam rir um pouco, tenham um final feliz. Cinema, afinal, também é diversão…”Linha de Passe” é muito bem dirigido pelo Walter, como sempre, os atores são todos ótimos, nem parece que estão representando. Mas também é um filme de uma tristeza profunda que deixa um gosto amargo sobre a nossa realidade social.
Confesso que não gosto muito disso. Prefiro a fantasia das comédias românticas, se forem musicais melhor ainda, com personagens de bem com a vida. Sinto saudade dos filmes de Oscarito, Grande Otelo, Mazzaropi, não perdia um.
Engraçado isso porque, como repórter, escravo do dia a dia, obrigado a relatar fielmente fatos da vida real, raramente na minha carreira consegui contar histórias com final feliz – talvez por isso mesmo procure sempre peças e filmes com histórias mais divertidas. Neste caso do menino do ônibus, porém, o filme acaba sendo mais triste do que a reportagem, que por acaso termina bem, com o menino saindo da Febem e sendo devolvido à mãe depois da travessura.
Por falar nisso, preciso registrar o final feliz da história de que tratei na coluna de quarta-feira, dia 3: os três jovens que foram torturados para confessar um crime que não cometeram, e passaram dois anos presos, foram soltos ontem mesmo.
Só resta saber agora quem do sistema policial e judiciário será punido por este crime bárbaro praticado contra os três e quanto tempo vai demorar ainda para que eles sejam indenizados pelo Estado.
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