Foto Camila Picolo
Um policial cumpre ordens. Sempre foi assim. No massacre do Carandiru, em outubro de 1992, quando policiais militares executaram 119 presos desarmados e encurralados em suas celas, foi assim. A defesa de todos eles no tribunal alegou exatamente isso. E ninguém até hoje assumiu que deu as ordens. A ação desproporcional e descontrolada da PM, ontem à noite, em São Paulo, contra estudantes e populares desarmados de armas e de espírito, não foi diferente. A ordem parecia ser uma só: bater com violência, para ferir, intimidar, acuar, sem nada perguntar. Ou seja, atacar quem estivesse na mira dos cassetetes, sprays de pimenta e rifles com balas de borracha. E sobrou socos – o alvo era sempre o rosto – para quem estava dentro de postos de gasolina, supermercados, estacionamentos, voltava do trabalho, passava pela rua vindo da padaria ou estava encurralado nos ônibus.
Policiais ensandecidos, desajustados, desequilibrados, enlouquecidos, saíram à caça de pessoas pelas ruas, para agredir. A ordem partiu de cima e a expressão de ira nos rostos dos PMs, mostrada nas fotos publicadas na Internet e nos jornais hoje, revelam uma orientação de guerra, de combate para aniquilar o inimigo. O pretexto de que pretendiam impedir que os manifestantes chegassem à avenida Paulista – símbolo sagrado da riqueza paulistana – foi revelador da patética operação estabelecida pelos descabidos estrategistas da PM: a disputa territorial por uma área simbólica, como numa guerra de ocupação. É como se a honra do poder estabelecido estivesse em jogo. A tal democracia ameaçada. Patético, repito. Trágico também, pois resultou num bando de selvagens à solta, de armas na mão.
Parecia uma guerra de classes. Parte daquela raiva era social. Policiais mal pagos, incitados por quem dava ordens, a bater em estudantes – muitos, jovens de classe média – que questionam uma medida que consideram abusiva, amparada na banalidade da onipresença e no poder inquestionável do Estado. Foi uma ação estratégia de guerra que se mostrou eficiente, cruel e covarde, com pessoas encurraladas em travessas entre a Augusta e a Consolação, com ordens humilhantes de rendição. Mas, como toda guerra, regras precisam ser respeitadas. A PM se esqueceu de obedecer a uma delas: poupar inocentes, mulheres e idosos, metralhados por balas de borracha. Outra falha grave: esse tipo de bala nunca deve ser usada acima do ombro, na hora da mira. O que se viu ontem foram muitos tiros apontados para a cabeça, com ferimentos gravíssimos. A conclusão é bem óbvia: faltou comando aos batalhões. Pura e simplesmente.
Seguiu-se uma série de violações de direitos básicos de cidadania, como o de ir e vir, constrangimento público ao serem presos sem motivo aparente, comunicabilidade para os presos – dar um telefonema – e o acesso da imprensa à informação. No centro de uma orientação autoritária, usa-se a interpretação ou a manipulação do texto da lei para violentá-la, com alegação de que os manifestantes devem ser enquadrados por formação de quadrilha – crime tido como inafiançável e só comumente usado contra traficantes e sequestradores.
As conseqüências da repressão policial de ontem podem se tornar perigosas. São Paulo amanheceu com toda a população contra a Polícia Militar e a questionar suas autoridades. A arrogância destas, somada à incompetência da polícia em lidar com um evento que aparentemente é de fácil controle, abrem precedentes para um agravamento da situação. O momento exige um recuo imediato dos dois governos em questão e a abertura de um diálogo. Boatos dão conta de que a ordem para a manifestação da próxima segunda é de que a repressão seja ainda maior. Corre-se agora o risco de se dobrar a multidão, se os pais dos estudantes aderirem ao movimento para dar legitimidade ou protegê-los, sem contar os simpatizantes que podem se juntar ao movimento.
Mais violência da PM e os protestos tendem a fugir do controle dos dois lados. E pensar que as possibilidades para a ala mais fraca – os manifestantes – são ainda imensas, enquanto a PM chegou ao seu limite antes do uso do armamento pesado, como armas de fogo – que nunca devem ser usadas em controle de manifestações. Sem conversa, abre-se caminho para que a ação contra o aumento da passagem leve a ações isoladas em diferentes locais e horários e se tornem uma forma corriqueira de protestos violentos. Como incêndios de ônibus, que ainda não aconteceu. Parece que quem dá ordens precisa parar de usar o discurso da democracia para aplicar atos de intolerância. Esse é um texto gasto, batido e que, hoje, em especial, amanheceu completamente desmoralizado.
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