A Revolta da Chibata

Por ordem do marinheiro negro João Cândido, o Minas Gerais disparou um tiro de canhão, na noite de 22 de novembro de 1910. O barulho foi ouvido no Clube da Tijuca, acima do som da orquestra que tocava um trecho da ópera Tannhäuser, de Richard Wagner. Murmúrios percorreram o salão, onde acontecia um jantar de gala em presença do recém-empossado presidente da república, marechal Hermes da Fonseca. Mas a cerimônia continuou como se nada houvesse acontecido.

O mesmo tiro teve outro efeito na baía da Guanabara. Era o sinal longamente esperado por um grupo de marinheiros. Eles sabiam o que queriam: ser tratados como gente. E tinham um chefe, agora de lenço vermelho no pescoço, que dava ordens da ponte de comando do mais poderoso encouraçado do planeta. Com sua linguagem seca e precisa, um dia João Cândido resumiu seus atos. O depoimento começava assim: “O castigo de 250 chibatadas no Marcelino Rodrigues precipitou tudo. O comitê geral resolveu deflagrar o movimento na mesma noite. O sinal seria a chamada de corneta das 22 horas. Como o Minas Gerais era muito grande, tinha os toques de comando repetidos na proa e na popa. Naquela noite, o clarim não pediu silêncio, mas combate. Cada um assumiu seu posto, e os oficiais foram presos nos camarotes. Não houve afobação, e cada canhão ficou guarnecido por cinco marinheiros com ordem de atirar para matar em quem tentasse impedir o levante”.
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Mas havia um oficial fora – e que oficial. O comandante do navio, João Batista das Neves, teve um dia comprido. No meio da tarde, comandou sua última cerimônia a bordo. Mandou perfilar toda a tripulação no convés, oficiais de um lado e marujos do outro. O clarim tocou silêncio e o comandante Batista Neves leu a proclamação pela qual condenava o marinheiro Marcelino Rodrigues de Meneses a 250 chibatadas. Então, os oficiais tiraram as algemas do condenado, arrancaram sua camisa e amarraram suas mãos no pé de carneiro. A um sinal do comandante, rufaram os tambores e Alípio Apicuim, o carrasco de bordo, começou seu serviço.

Ele tratava com cuidado seu açoite, colocando pequenos pregos de aço com todo cuidado em meio aos fios torcidos, deixando apenas um pequeno pedaço da ponta para fora. Assim, conseguia furar a pele sem machucar órgãos. Já no primeiro golpe, o sangue escorria. Os gemidos eram para os heróis, os gritos de dor para quase todos. Os tambores rufavam para encobrir tudo. Os oficiais tinham de encarar não apenas a cena, mas os marinheiros. Tentavam superar o desafio pelo formalismo, vestindo uniformes de gala, com luvas e espadas. Antes mesmo da metade do castigo, o marinheiro desmaiou. E o carrasco continuou batendo no corpo inerte. Os marinheiros começaram a estampar raiva nos rostos – e alguns oficiais desviaram o olhar.

Entre os fracos não estava o comandante. Depois de encerrada a sessão, ele teve de tomar uma suave decisão social. A baía da Guanabara estava lotada de navios estrangeiros, todos reunidos para saudar o novo presidente que tomava posse. Só naquela noite havia dois convites. De um lado, havia um jantar oferecido por João Lage aos oficiais do cruzador português Adamastor, que caíra nas graças do povo pela fama de ser “pequeno por fora e grande por dentro” – segundo o palhaço Benjamin de Oliveira, astro do Circo Spinelli em uma peça feita de encomenda para agradar os visitantes lusitanos e atrair a freguesia da colônia. Mas havia também o jantar a bordo do cruzador francês Duguay-Trouin – certamente, uma ironia gaulesa, mandando para a festa um navio com o nome do pirata que saqueara o próprio Rio de Janeiro, em 1711.

Entre o pequeno português e o francês com empáfia, o comandante escolheu o último. Eram pouco mais de 10 horas da noite quando subiu as escadas de bordo, voltando do jantar. Percebeu que havia um motim, e reagiu. Quando se viu lutando em minoria, tentou se trancar na sala de armas. Quase na porta, foi morto a machadadas. Seus poucos aliados se renderam, e receberam permissão para embarcar em uma lancha, levando os cadáveres dos mortos na luta.

João Cândido tinha o controle do navio – e da narrativa: “Às 22h50, quando acabou a luta no convés, mandei disparar o tiro de canhão, sinal combinado para chamar à fala os outros navios. Primeiro respondeu o São Paulo, seguido do Bahia. Expedi um rádio para o Catete, informando que a esquadra estava revoltada para acabar com os castigos corporais. O resto foi rotina em um navio de guerra”.

Num tempo em que o rádio era segredo militar (a primeira emissora pública só começaria a transmitir 12 anos mais tarde, em 1922, e mesmo assim em caráter experimental), havia apenas uma estação receptora na cidade, de uso exclusivo das forças armadas, no morro da Babilônia. Dali, a mensagem foi imediatamente levada para o palácio, chegando quase junto com o presidente da República que voltava da festa, agora já preocupado com os vários tiros de canhão ouvidos. Assim que recebeu, leu o texto curto e grosso, no estilo do líder: “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já. Caso não tenhamos, bombardearemos a cidade e navios que não se revoltarem. Guarnições Minas Gerais, São Paulo e Bahia”.

Eram três navios, entrando em três guerras.

A primeira era a propriamente militar. Já havia um tiro, e agora se ameaçavam outros. O marechal Hermes chefiou uma reunião do ministério, e decidiu não levar a sério a ameaça. Resolveu não responder ao ultimato – mesmo depois de ele ter escutado pessoalmente os relatos de oficiais corridos dos primeiros navios que aderiram, trazidos a sua presença pelo ministro da Marinha, Joaquim Marques Batista Leão. E mandou divulgar para a imprensa uma nota, avisando que, se os rebeldes não se rendessem, mandaria torpedear os navios revoltados. O presidente preferiu falar como comandante militar: exigiu obediência, mesmo sabendo que a revolta era extensa e os marujos controlavam os canhões.

O resultado desse erro de avaliação teve uma testemunha notável: madrugada alta, o escritor Oswald de Andrade saía de uma animada festa com as atrizes da Companhia Grassi. Assim que pisou na rua, tomou um susto. O povo já sabia de tudo: “Estranhei quando passou a trote um piquete de cavalaria. A estranheza cresceu quando ouvi falar a palavra revolução entre as pessoas que se juntavam na esquina. Revolução? Coisa assombrosa para a sede de emoção e conhecimento de minha mocidade. Perguntei como se passava a coisa e me apontaram para o mar. Apressei em alcançar a Praça Paris. Aproximei-me do cais e, entre sinais verdes e vermelhos, escutei um prolongado soluço de sereia. Aquele grito lúgubre no mar escuro me dava a exata medida da subversão. Que seria?”.

A manhã deu contornos mágicos aos pensamentos: “Era uma maravilhosa aurora de verão. A baía esplêndida, com seus morros e enseadas. E vi imediatamente na baía, em frente a mim, navios de guerra, todos de aço, que se dirigiam para a saída da barra. Reconheci o encouraçado Minas Gerais, que abria a marcha. Seguia-o o São Paulo, e mais outro. E todos ostentavam, em uma verga do mastro dianteiro, uma pequenina bandeira triangular vermelha. Eu estava diante da revolução. Seria toda revolução uma aurora?”.

Mas a realidade logo substituiu as divagações: “De repente, vi acender-se um ponto no costado do Minas Gerais, e um estrondo ecoou perto de mim, acordando a cidade. Novo ponto de luz, novo estrondo. Um estilhaço de granada bateu perto, em um poste da Light. Corri para me esconder. Era terrível o segundo que mediava entre o ponto aceso do canhão e o estrondo do disparo. Naquele minuto-século esperava me ver soterrado, parecia que era a mira do bombardeio. Comecei a correr para o morro da Glória. Varei uma casa fechada, onde uma moça correu para nos barrar a passagem. – Aqui não é asilo. Mas é a revolução! Entrei pelo quintal”.

O conhecimento da realidade militar da revolução levou o escritor diretamente à segunda guerra, a da política: “Corri até a casa de meu tio, em Botafogo. Ainda estavam todos dormindo, mas eu trazia uma notícia importante demais para não ser conhecida. Em minutos, estava narrando para meu tio, Herculano Inglês de Sousa, em “robe de chambre”, o que havia visto. Trocamos opiniões. Concluímos que se tratava de uma explosão de ódios longamente alimentada contra a ditadura do caudilho Pinheiro Machado, reforçada com a posse do marechal Hermes na presidência”.

A opção do governo não detonara apenas uma guerra militar. Abriu brecha para a guerra política – na qual também não teve nenhuma iniciativa. O bombardeio era um desafio aberto ao presidente. Não houve resposta nem torpedeamento – de modo que a segunda luta, a da política, ficou inteiramente ao sabor da multiplicação dos boatos. Nesse campo, as explosões das granadas tiveram um efeito bem maior que o de acordar a cidade. Estrondaram boatos, cada vez mais aterrorizantes.

Em nenhum deles o governo aparecia bem, de modo que a população entrou logo em desespero. Começou uma retirada em massa do Rio de Janeiro. Todas as ruas que levavam para longe do centro se encheram de gente. Os pobres corriam para os subúrbios, os ricos para a Zona Sul. A pé, a cavalo, de carroça, todos tentavam fugir para longe do teatro de guerra. Os ricos mais assustados lotaram a estação da Leopoldina. Só na manhã do dia 23, três mil pessoas fugiram para Petrópolis – o movimento na estação obrigou a empresa a colocar 12 composições extras na linha.

Enquanto isso, os três navios faziam manobras fora da baía. Pouco depois do meio-dia, os navios cruzaram de novo a barra. Em várias manobras, recolheram o grosso da tripulação de vários outros navios que haviam aderido à revolta – os mais poderosos entre os que haviam sobrado na frota. Na maioria deles, ficaram apenas uns poucos artilheiros. Nessa altura, bastava a qualquer pessoa olhar para o mar e entender: havia uma esquadra naval sob comando sólido dos revoltosos.

E nada de ação do governo para torpedear os rebeldes.

A tática deles se tornou clara. Cruzadores na baía, parados, armados, mirando as fortalezas de terra. Os encouraçados, Minas Gerais e São Paulo, mais o cruzador Bahia em movimento permanente e coordenado. Não se tornavam alvos fixos nem deixavam qualquer ponto fora do alcance direto de seus canhões. Mesmo os disparos que haviam dado eram calculados. Feitos apenas pelas peças de menor calibre, com direção precisa. O suficiente para mostrar à cidade que a ameaça era séria e às fortalezas que era melhor não reagir. Só um dos tiros se desviara do alvo, acertando um prédio na cidade.

Tudo isso foi analisado em detalhes pelos oficiais da Marinha encarregados de comandar a reação prometida pelo presidente. Supostamente, eram eles os únicos com conhecimentos de técnica de manobras e táticas de guerra. Ao longo do dia, eles empregaram todo seu conhecimento para esboçar uma reação. E o melhor que conseguiram não foi exatamente promissor.

Não acharam nenhum meio de retomar o controle dos cruzadores: para fazer isso, teriam eventualmente de abordar os navios no meio do mar, vencer uma luta com os ocupantes, embarcar uma tripulação, colocar os navios em movimento – tudo ao alcance do fogo dos outros cruzadores e dos encouraçados.

A tática foi deixada de lado, de modo que só restava aos oficiais planejar a partir do controle dos destróieres. Além de pequenos, sua posição não era nada favorável: estavam todos ancorados no fundo da baía, e teriam de passar pelos cruzadores antes de chegar aos encouraçados. Como não possuíam canhões com poder de perfurar a couraça dos grandes navios, precisavam manobrar até encontrar uma posição para acertar torpedos com precisão – dentro de uma baía com pouco espaço para manobras e mesmo sendo alvo fácil para os canhões dos navios maiores.

Para piorar as coisas, faltavam marinheiros até para os pequenos barcos – e foi preciso conseguir alguns improvisados em navios mercantes. Apareceram voluntários para o comando, que receberam, literalmente, uma carta branca do ministro. Tudo junto formava um plano. O ministro da Marinha deu ordem para que tudo fosse preparado – e foi para o Palácio do Catete para aprovar a ideia.

Assim que entrou na sala, já de noite, o ministro Joaquim Marques Batista Leão percebeu que teria muito trabalho para mostrar que a Marinha podia resolver o assunto torpedeando navios, como prometido na véspera ao presidente. Na mesa, além do marechal Hermes da Fonseca, estavam os ex-presidentes Rodrigues Alves e Campos Salles, o vice-presidente Wenceslau Braz e o condestável do governo, senador Pinheiro Machado. Eram verdadeiros veteranos do poder decidindo bem na frente de um presidente neófito. Frente ao plano do ministro, demoraram pouco tempo para impor outro caminho.

Militar, o marechal Hermes da Fonseca sabia: tinha perdido um dia inteiro de iniciativa, confiando na hierarquia da Marinha. Mas, mesmo sendo um político de pouca experiência, sabia que um presidente da República era mais que um comandante militar. Apostando na reação, tinha perdido mais que a autoridade de comandante das forças armadas: tinha sido fragorosamente derrotado na guerra política. O reconhecimento disso estava nas pessoas ao redor da mesa: ele já não decidia sozinho, mesmo sendo presidente. E nessa noite, aprendeu muito sobre a diferença entre comandar uma tropa e presidir uma nação.

Os políticos não tinham ficado parados, esperando a reação militar. Já na noite da véspera, assim que soube da revolta, o senador Pinheiro Machado mandou acordar em casa o deputado José Carlos de Carvalho. Gaúcho como ele, era também tenente da Marinha. Em pouco tempo, combinaram uma tática. Carvalho foi para casa, botou uniforme de gala, chapéu armado e sobrecasaca. Pegou um carro, foi até o Arsenal de Marinha.

Chegou lá no início da madrugada, no momento em que estava sendo desembarcado o cadáver do comandante Batista Neves – que viu ser levado para uma sala onde se acumulavam duas dúzias de outros corpos, de oficiais e marinheiros mortos na luta.

No meio do tumulto, conseguiu não ser visto nem como oficial nem como aderente à revolta. Com sangue frio, arrancou um lençol que envolvia um cadáver, transformando-o em bandeira branca. Convenceu alguns marujos a tripular uma lancha, hasteou o lençol e mandou tocar para o Minas Gerais. Conseguiu subir a bordo, apresentando-se como negociador.

Saiu dali para o São Paulo. Na ponte de comando, uma cena inusitada: o oficial de Marinha em uniforme de gala teve uma conversa com um marujo de uniforme branco e lenço vermelho no pescoço. Nela, João Cândido fez questão de deixar muito claros seus métodos de comando. Mostrou o cofre do navio intacto, a adega vazia – mandou jogar fora todo o álcool de bordo, para evitar efusões.

Explicou com extrema sobriedade os propósitos do movimento: era coisa de patriotas, cidadãos, gente que tinha orgulho da Marinha. Entregou um manifesto ao presidente da República, que começava assim: “Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha brasileira, a falta de proteção que a Pátria nos dá; e até então não nos chegou; rompemos o negro véu que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo”.

Pelo português se vê que não era exatamente o produto da pena de um erudito. Português bem diferente do empregado na proclamação mandada pelo rádio do navio no dia 23, logo depois do desembarque do deputado, que dizia: “Os marinheiros não têm outro intuito que não seja ver abolido de nossas corporações armadas o uso infamante da chibata. Do chefe da Nação, o ilustre marechal Hermes da Fonseca, cujo governo os marinheiros desejam seja coroado pela paz e o mais inexcedível brilho, só desejam os reclamantes a anistia geral, a abolição completa dos castigos corporais, para o engrandecimento moral de nossas classes armadas”.

Pela diferença gramatical, não é difícil imaginar que o comandante João Cândido e o deputado e oficial de Marinha José Carlos de Carvalho tenham traçado um programa comum. Esse programa foi exposto na reunião com o presidente.

Tanto quanto os oficiais de Marinha, os políticos foram surpreendidos pelo movimento. Mas trabalharam mais depressa e melhor numa solução para o problema – diretamente com quem interessava no momento, isto é, o verdadeiro almirante, com controle não apenas dos canhões, mas da palavra que encaminha a solução. Melhor ainda, tinham conseguido tudo isso sem comprometerem eles mesmos nem o governo.

Desse modo, os presentes à mesa de reunião no Palácio do Catete estavam perante duas opções: apostar no plano de torpedeamento ou em uma anistia, entre a palavra da hierarquia militar ou a de um marinheiro negro feito almirante de esquadra – palavra esta empenhada apenas informalmente a um político.
Entre salvar a honra da Marinha, bancando o plano dos oficiais, e salvar a autoridade que ele mesmo fizera desaparecer com uma ameaça difícil de executar, o presidente da república capitulou. Mandou um emissário com a ordem escrita para sustar a aventura dos oficiais da Marinha, e autorizou o encaminhamento da anistia. Nesse momento, perdia a terceira guerra, a maior de todas: aquela do orgulho.

O primeiro tiro dessa guerra havia sido disparado no início do governo de Afonso Pena, em 1906. Seu antecessor, Rodrigues Alves, destruíra meio Rio de Janeiro para rasgar avenidas – e mostrar ao mundo a modernidade do governo republicano. Já o próprio Pena escolheu a Marinha para criar sua imagem.
A encomenda do Minas Gerais foi notícia mundial, simplesmente porque se tratava de um país sem tradição comprando tecnologia de ponta. O encouraçado era produto direto do uso intensivo de aço especial, mais leve e resistente que o ferro. Permitia combinar canhões mais poderosos com couraça mais resistente. Havia apenas um no mundo, exatamente o inglês Dreadnought – tão novo de conceito que a palavra foi inicialmente empregada como sinônimo para a classe de navios com couraça – lançado ao mar em 1905.

Quando, em 1908, veio o lançamento do Minas Gerais, ele era o maior, mais rápido, mais bem armado e mais caro navio do mundo. Tinha 12 canhões de 12 polegadas, contra dez do Dreadnought; a couraça chegava a 24 cm de espessura, contra 18 cm do inglês. Construído pelo estaleiro Vickers Armstrong, em New Castle, custara 1,8 milhões de libras esterlinas – fora o armamento. O valor total da compra representava nada menos que 10% de todas as exportações brasileiras no ano da encomenda.

Mas se pagava em orgulho. O Brasil tinha o aço mais rijo, os canhões maiores e mais grossos, capazes de cuspir fogo mais longe. Antes de navegar, o Minas Gerais já atingia alvos. Assim que soube da notícia da encomenda, o presidente argentino Manoel Quintana, doente de morte, chamou em casa seu vice e sucessor, José Alcorta, para dizer: “Não podemos permitir que outro país sul-americano nos avantaje em poder naval. Nenhum sacrifício deve nos deter”.

Depois da morte do conselheiro, o sucessor seguiu a recomendação. Mandou seu ministro do Exterior, Estanislau Zeballos, abrir um contencioso contra o Brasil. Sem nada sólido para reclamar, ele simplesmente fez uma proposta muy hermana: pediu oficialmente ao Brasil para entregar o segundo encouraçado em construção à Argentina, em nome de um “equilíbrio naval”. Há muitos anos, o Barão do Rio Branco, ministro brasileiro, não tinha diversão tão grande em seus trabalhos com o vizinho.

O sentimento de orgulho militar se estendeu. O ministro do Exército de Afonso Pena era o marechal Hermes da Fonseca, que tratou de fazer um plano semelhante ao naval. Acabou convidado pelo kaiser alemão para assistir às manobras militares – e começou a aparecer como o homem capaz de encarnar força – e ser encarado como candidato potencial à presidência.

Enquanto tudo isso se passava, começava a construção do São Paulo e seguia o treinamento da tripulação do Minas Gerais na Inglaterra. Sendo um navio de alta tecnologia, tudo nele exigia destreza técnica. O armamento pesado exigia coordenação: o coice dos canhões era tão violento que os disparos tinham de seguir certa ordem. Havia todo um conjunto de portas estanques, que precisavam ser manobradas com coordenação em batalha. A marcha dependia do controle delicado de quatro turbinas de vapor. A comunicação por rádio exigia um profissional treinado – e o escolhido para a tarefa no Minas Gerais foi o marinheiro João Cândido.

A coordenação técnica necessária para operar o navio era tal que o almirantado inglês havia determinado novas normas para a distribuição do pessoal a bordo. Até então, mesmo os navios de ferro haviam mantido costumes seculares: capitães e oficiais ficavam instalados longe dos marinheiros e da ponte, seu local de trabalho. Havia duas classes de acomodações, comida e comportamento.

O encouraçado, máquina tecnológica, foi o primeiro navio com outra distribuição: cabines do capitão e oficiais perto da ponte onde trabalhavam e cabines de marinheiros dentro da couraça – portanto, perto dos oficiais. Alto e baixo conviviam de maneira mais íntima, dividindo inclusive refeitórios. Marinheiros viam oficiais trabalhando, faziam trabalhos técnicos eles mesmos; oficiais tinham sempre um marinheiro por perto.

A extensão dessa novidade técnica ficou restrita à tripulação -, pois não tinha nada a ver com o orgulho. Quando o navio chegou ao Rio de Janeiro, em 18 de abril de 1910, os jornais só falaram da parte do orgulho: “A chegada do Minas Gerais foi o grande acontecimento que fez palpitar a alma nacional, porque não foi só o Rio de Janeiro que recebeu o formidável dreadnought, foi o Brasil inteiro que saudou no vulto agigantado do colosso dos mares sul-americanos o símbolo de sua própria pujança, a expressão concreta de sua energia como nação”, escreveu um deles.

Nessa onda de pujança militar, o ministro Hermes da Fonseca se tornou candidato, e derrotou Rui Barbosa. A própria campanha ajudara a carregar ainda mais nas tintas do orgulho militar, pois o senador baiano chamou sua própria campanha de civilista. O marechal ganhou a eleição, mesmo passeando pela Europa – e fez questão de chegar ao Brasil em alto estilo militar.

A primeira viagem do São Paulo foi do estaleiro de Barrow-in-Furness para o porto de Cherburgo, na França. Ali, o encouraçado apanhou um ilustre passageiro, o presidente eleito, marechal Hermes da Fonseca. Partiu para o Brasil, onde chegou no dia 25 de outubro de 1910 – com outra festa apoteótica.

Com tudo isso, entende-se perfeitamente porque o dia 24 de novembro de 1910, menos de um mês depois da chegada a bordo do São Paulo, não tenha sido exatamente positivo para o orgulho do presidente Hermes da Fonseca. Toda a solução do problema militar foi construída bem longe de seu alcance – e a custa do orgulho militar.

Para arrancar uma lei em um dia do Congresso Nacional, era preciso fazer acordos. E, nesses acordos, coube ao candidato derrotado nas urnas, senador Rui Barbosa, apresentar e defender o projeto de anistia. Ele teve toda a educação possível: disse que, em princípio, era contra atender exigências de revoltosos armados, mas não via outro caminho, quando “a condescendência é o único caminho aberto para a salvação pública”. Mas não deixou de notar que os marinheiros se comportavam como patriotas sensatos lutando por uma causa justa, nem de comparar os oficiais que mandavam chicotear com feitores de escravos, para concluir: “Extinguimos a escravidão sobre a raça negra. Mantemos, porém, a escravidão para negros e brancos na Armada, entre servidores da Pátria. A civilização de nosso País reclama um outro sistema para nossos homens de guerra”.

Coube ao senador Pinheiro Machado a tarefa mais dura: convencer seus colegas de situação. E ele foi radical: “Nós todos, surpreendidos pelo levante, reconhecemos as justas causas que o geraram, nos inclinamos a proclamar a justiça das reclamações que o determinaram: alimentação escassa, serviço exagerado, castigos corporais, que não se coadunam mais com nosso regime liberal”. Com isso, conseguiu arrancar a aprovação do projeto em duas horas – e ele foi mandado no mesmo dia para a Câmara.

Ali, as coisas correram ainda mais rapidamente. O deputado José Carlos de Carvalho contou aos colegas sua experiência a bordo, com os detalhes do cofre guardado, bebida jogada fora e patriotismo dos marinheiros – sem se esquecer de descrever em detalhe o estado lamentável do marinheiro chicoteado, que comparou a “uma tainha lanhada para ser salgada”.

Foi o que bastou. Como já estava chegando a noite, os deputados encarregados de escrever um parecer pediram para adiar a votação até a manhã seguinte. Mas autorizaram Carvalho a mandar uma mensagem para João Cândido: “Senado votou anistia. Câmara votará amanhã. Confiem no presidente da República”.

A noite desse dia foi calma em terra e movimentada no mar. Enquanto o presidente da república ruminava suas derrotas, os marinheiros discutiam: dava para confiar em sua palavra? Os representantes do São Paulo e Bahia achavam que não, João Cândido acreditava que sim. Depois de uma noite de intensos debates e manobras navais, convenceu a todos.

Com a anistia aprovada na Câmara ainda de manhã, os três navios que ganharam três guerras começaram a fundear. À uma da tarde, a um sinal vindo do Minas Gerais, as bandeiras vermelhas foram arriadas dos navios. A outro sinal, subiram as bandeiras brasileiras até meio pau. O almirante João Cândido fez seu último gesto como comandante: uma breve homenagem aos mortos. Seguiu-se o toque de silêncio, enquanto ele retirava seu lenço vermelho.

Então, o capitão de mar e guerra João Pereira Leite entrou em uma lancha e partiu para o navio. João Cândido, formado junto com a tripulação, prestou continência, enquanto a banda tocava o Hino Nacional. Todos os navios foram devolvidos intactos.

A cidade estava mais que aliviada, uma descoberta revolucionária tinha acontecido: a potência nacional não estava apenas nos canhões. Em um artigo publicado no dia 27 de novembro, Gilberto Amado foi claro a respeito desse sentimento: “Enfim podemos respirar livremente. O almirante João Cândido teve a benemerência de apenas exigir, para nos deixar viver, a anistia que o Congresso foi solícito em votar. Apenas a anistia, e os direitos preliminares de respeito humano que a bordo dos dreadnoughts parece ter sido timbre em desconhecer”.

Mais que direitos, a revolta revelara qualidades: “Fora da baía, João Cândido, árbitro do Brasil, evoluía, fazia curvas complicadas; dentro, piruetava. O navio amado, orgulho de nosso patriotismo superficial, parecia inicialmente transmudado em navio fantasma, instrumento do mal. Entretanto, do assombro se foi à maravilha: Vejam como navegam os revoltosos! Que perícia magistral! E para esses marinheiros, os oficiais pediam instrutores estrangeiros. Isso bastou para, cessada a hipótese do perigo, borbotar o fácil entusiasmo. Quase chegamos a abençoar a revolta, pela surpresa da revelação”.

Assim a define: “João Cândido, símbolo, é esta coisa divina – um especialista que não divaga; um profissional que sabe a sua profissão; que, ainda mais, não precisou de cursos na escola. João Cândido nos agradou por isso. Afora a competência técnica, sua conduta tem algo de extraordinário. É de uma simplicidade de puritano – nem fanfarronadas, nem embevecimentos”.

Essa revelação, sim, poderia levar a uma nova nação: “Submeter-se a João Cândido. Tem-se a impressão que um século de civilização, todo nosso passado, a nossa história, se desmoronou”.

Infelizmente, não foi bem assim. A ideia de um orgulho civil, orgulho de cidadãos iguais de uma nação – mesmo quando um deve obediência a outro – era possível para um escritor naquele momento.

Mas os oficiais da Marinha tinham sido derrotados por um marinheiro – bem na frente dos comandantes de todas as marinhas do mundo, que assistiram a humilhação de camarote. Tinham também fracassado perante seu comandante, o primeiro militar eleito pelo voto para presidente da República. Pior, tinham contribuído para que esse mesmo surgisse como fracassado perante os políticos. Para completar, tudo foi resolvido pelos políticos que muitos odiavam.

Para enxergar o patriotismo e a competência dos marinheiros brasileiros a eles subordinados, seus chefes precisavam reconhecer suas próprias incompetências, engolir o orgulho ferido. Admitir que um marinheiro negro sabia comandar – e que eles mesmos não sabiam comandar um navio de alta tecnologia sem o arcaico chicote. Que eles estavam atrasados, não seus comandados.

Tinham razão os marinheiros que duvidavam da palavra do presidente, sob a qual fiaram a rendição, como suficiente para impor a anistia e impedir a vingança. Assim que voltaram ao comando, os oficiais trataram de providenciar um regime de terror capaz de provocar saudade da chibata.

Na noite de 9 de dezembro, depois de submetidos a maus-tratos em massa, os soldados do Batalhão Naval se revoltaram. Dessa vez era uma armadilha. A ilha das Cobras, onde estavam os amotinados, foi bombardeada impiedosamente, enquanto o presidente da República arrancava do Congresso a aprovação de “estado de sítio”. Quando os parlamentares aprovaram a medida, o bombardeio parou – e 550 dos 600 fuzileiros foram massacrados.

A fúria não parou aí. Aproveitando o poder de exceção, os 22 líderes da Revolta da Chibata, apesar de anistiados, foram presos e trancados em uma masmorra forrada de cal, sem ventilação. A chave foi entregue ao comandante do local, que saiu para passear na cidade. Dois dias depois, quando voltou e a porta foi aberta, havia apenas cadáveres putrefatos e um único sobrevivente: João Cândido.

Foi levado para o hospital, e por isso escapou da armadilha pior. Na noite de Natal de 1910, duas centenas de marinheiros participantes da revolta foram embarcados no navio mercante Satélite, que partiu para o norte. Antes mesmo da chegada a Recife, vários foram fuzilados e tiveram os corpos lançados ao mar. O restante da “carga” foi despejado sem roupas e sem meios nas barrancas do rio Amazonas.

João Cândido saiu do hospital para um hospício, do hospício para uma Corte Marcial – sob a acusação, entre outras, de manobrar o Minas Gerais depois da anistia. O julgamento demorou anos para acontecer. Mesmo inocentado, foi expulso da Marinha. Mesmo expulso da Marinha, foi perseguido em cada trabalho que encontrava. Acabou seus dias como trabalhador braçal do porto. Sobreviveu ao Minas Gerais, vendido como sucata em 1953. Morreu aos com 89 anos, em 1969. Teve, portanto, 59 anos de desventuras para medir o valor da palavra de um presidente da República, na qual confiou. E jamais deixou de se portar como um digno cidadão brasileiro.



Comentários

Uma resposta para “A Revolta da Chibata”

  1. Avatar de JOSÉ CARLOS PALES DA SILVA
    JOSÉ CARLOS PALES DA SILVA

    Ao Dr. Jorge Caldeira – Brasileiros.com.br
    Devo confessar ao Digníssimo Doutor que eu; J. C. P., Assimilei sua declaração no presente Artigo: “Pelo português se vê que não era exatamente o produto da pena de um erudito […]”. Relativo a carta enviada ao Sr. Presidente da República; Marechal Hermes da Fonseca. Acredito, Dr. Caldeira, que a resposta para o extraordinário Motim de 1910, está nesse manifesto dos Marinheiros. Sou acadêmico de História da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
    Atenciosamente:
    J. Carlos P. da Silva

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