A revolução das magrelas

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CENTENÁRIA – Roda de Bicicleta, obra de Duchamp criada em 1913, revolucionou o conceito de arte. Agora, as bicicletas começam a mudar o comportamento das grandes cidades


Há 100 anos
, o francês Marcel Duchamp colocou de pernas para o ar o mundo das artes ao criar uma escultura peculiar, feita a partir do aro de uma roda de bicicleta e uma banqueta de madeira, que teve o assento perfurado para que o garfo e o aro fossem nele fixados. Exercitando provocação tipicamente dadaísta, Duchamp deu à obra o nome literal de Bicycle Wheel (Roda de Bicicleta) e deixou puristas indignados com aquilo que não consideravam arte. Inaugurou com a obra o conceito de ready-made, no qual objetos ordinários do cotidiano são deslocados para o universo das interpretações subjetivas e ganham novos significados.

O episódio foi um divisor para a História da Arte. Naquele início de século, o mundo passava por transformações radicais, sobretudo com a consolidação de uma sociedade industrial pautada pelo uso de automóveis. Dez anos antes da obra de Duchamp, Henry Ford inaugurou em Detroit a Ford Motor Company. Em 1908, ele apresentou o primeiro exemplar do modelo T, que deu início ao conceito de linha de produção e fez com que milhares de carros ganhassem as ruas dos Estados Unidos e do mundo. Nesses 105 anos, benefícios e conveniências inaugurais do automóvel – possibilidade de deslocamento com liberdade, conforto proporcionado pela agilidade em relação a outros meios – foram gradativamente perdendo força, à medida que mais carros foram inseridos nos meios urbanos.

No Brasil, ruas e avenidas de grandes capitais, como Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, que recebem diariamente mais de 900 novos carros, vivem em colapso – e, de acordo com o Ministério das Cidades, os municípios têm autonomia para o planejamento, execução e avaliação da política de mobilidade urbana, bem como promover a regulamentação dos serviços de transporte urbano. Mas os congestionamentos se tornaram um problema tão crônico que tem feito com que brasileiros desistam de se deslocarem diariamente dentro de um carro e passem a utilizar a bicicleta como meio de locomoção. No entanto, o Ministério das Cidades informa que “uma das principais diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana trata da priorização dos meios de locomoção não motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado”.

Seja como for, se Duchamp subverteu a roda da bicicleta para revolucionar estatutos seculares das artes plásticas, a bicicleta vem ganhando mais defensores  em afirmar que ela também revolucionou suas vidas.  Foi o que aconteceu com o paulistano Daniel Guth, 29 anos. Em 2008, ele foi morar no bairro da Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, e se viu em um grande dilema: o prédio não tinha garagem. Na rua, impossível achar vagas. Guth, então, vendeu o carro e comprou uma bike. Fotógrafo de formação, mas atuando como assessor parlamentar e técnico da Secretaria Municipal de Transportes, naquele mesmo ano, começou a idealizar um projeto alternativo de ciclovias, implantado em 2012, em São Paulo, chamado Ciclofaixas de Lazer – ciclovias articuláveis que são montadas em vários pontos da cidade nos fins de semana. Também foi coordenador do programa Escola de Bicicleta, que ensina jovens a fabricarem bicicletas de bambu.

Junto com o CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Guth fez um estudo que mapeou todas as ciclorotas do centro expandido, que serviu de base para o Banco Itaú iniciar seu serviço de compartilhamento de bicicletas, o Bike Sampa. Realizado em parceria com a Prefeitura de São Paulo, o serviço (que existe em outras cidades, leia à página 68) tem hoje mais de 150 mil usuários, número que deverá chegar a 200 mil até o fim de 2013, quando o banco pretende disponibilizar três mil bicicletas, totalizando 300 estações.

Mesmo sendo bem-vinda, a chegada da cultura do compartilhamento de bikes é questionável para Guth, que morou em Paris, viu o mesmo processo acontecer na Cidade Luz, e defende que o modelo ideal foi desenvolvido em Nova York. “O trabalho americano deveria ser estudado e replicado. Lá, o sistema de compartilhamento foi lançado só após um longo processo estrutural. Em Paris, como em São Paulo, foi feito o contrário. Disponibilizaram os serviços antes de termos uma cultura de respeito ao ciclista. Por isso, é natural que haja confrontos entre bikers e motoristas. Nova York primeiro entendeu a demanda para criar espaços próprios para ciclistas, sem pudor de fechá-los para os carros. Gerou o trauma e as pessoas passaram a entender a importância daquela escolha.” 

No final de setembro, Guth pretende apresentar projeto que está sendo redigido pelos grupos de cicloativismo Ciclocidade e Frente Parlamentar em defesa da Mobilidade Humana da Câmara Municipal, chamado Política Municipal da Bicimobilidade. O documento prevê ações estruturais emergenciais, como a ampliação da rede cicloviária, algo visto com bons olhos por qualquer cidadão, mas deverá gerar polêmicas, como a imposição a estabelecimentos comerciais de disponibilizarem espaços para estacionar as magrelas.

Antecipando o impacto que tais transformações, que ressoam em âmbito nacional, vão trazer, a indústria nacional prepara terreno para a ascensão de um mercado que hoje é o terceiro maior do mundo. O Brasil produz em média 6 milhões de bicicletas por ano. Perde apenas, obviamente pela dimensão demográfica dos dois países, para a Índia, que produz 20 milhões, e a China, que ultrapassa a marca de 100 milhões, metade delas destinada ao mercado interno e a outra para exportação.

Camila Picolo
ROTINA – A cena é comum em grandes cidades, em que ciclista disputa espaço com carros e ônibus

Presidente da Aliança Bike, associação representativa de 52 sócios que vão de fabricantes, distribuidores, lojistas a atacadistas, em âmbito nacional, o empresário Marcelo Maciel também defende um cenário otimista para os próximos anos. Baseada em São Paulo, a entidade agrega associados de outros estados – Paraná, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, entre eles – e realiza, desde 2012, a Brasil Cicle Fair. A receita financeira da primeira edição da feira possibilitou à aliança encomendar um estudo feito pela consultoria Tendências, que tem entre os sócios o ex-ministro da Economia Maílson da Nóbrega. Os dados da pesquisa serão revelados no final deste mês e a tarefa demandou o empenho de 15 profissionais, liderados pelo ex-ministro. “Decidimos criar esse estudo para entender o tamanho do nosso mercado, seu impacto na economia brasileira, na geração de empregos e no recolhimento de impostos, para podermos mensurar o quanto esse mercado contribui para a sociedade e como potencializar esse impacto positivo”, explica Maciel. Entre 7 e 10 de outubro, a edição 2013 da Brasil Cicle Fair, que já ganhou o status de maior feira do setor na América Latina, será realizada em São Paulo. O evento reunirá 130 expositores.

Maciel, 47 anos, utiliza regularmente bicicletas há 25. Nos finais de semana, tem como hobby praticar mountain bike. Engenheiro naval, em 1992 ele montou uma loja de bicicletas com um amigo e nunca mais saiu do mercado. Seu otimismo com o cenário ascendente é inegável, mas ele, como tantos outros cicloativistas, tem na ponta da língua os principais gargalos para acelerar esse processo de consolidação. “A bicicleta precisa ser mais acessível ao público consumidor. As fabricadas no Brasil estão entre as mais caras do mundo. Com o produto acessível, com uma infraestrutura e segurança para o ciclista, a bicicleta se insere nas cidades com um papel muito claro para a mobilidade urbana: cobrir deslocamentos de trajetos curtos, em média 5 km, onde ela tem melhor resultado em relação a outros meios de transporte.”

Para Ana Lia de Castro, diretora executiva da ABRADIBI (Associação Brasileira da Indústria, Comércio, Importação e Exportação de Bicicletas, Peças e Acessórios), o fator custo é mesmo ponto central para a democratização do acesso às bicicletas e o governo federal precisa rever suas políticas de incentivo. “A bicicleta não tem status no governo, apesar de haver o Ministério das Cidades. Existem muitas barreiras econômicas para isso. No Brasil a tributação é a mais alta do mundo, 40%. Ao mesmo tempo que o governo estimula, coíbe o crescimento do mercado. Reduz o IPI dos carros, mas não reduz o das bicicletas.” O impacto de tamanha carga tributária é perceptível não só no preço das magrelas. Episódio sintomático de que algo precisa ser mudado foi a venda recente de 70% das ações da Caloi, o maior fabricante de bicicletas do País, fundada em 1898, para o grupo canadense Dorel. Outra gigante do mercado, tão presente na memória afetiva de milhões de brasileiros como a Caloi, a concorrente Monark reduziu significativamente sua produção em decorrência da disputa hostil com os produtos chineses, de baixíssimo custo. 

Ana Lia enxerga também outro aspecto negativo no uso indiscriminado do IPI zero para os automóveis: “Vende-se muito automóvel, mas os novos compradores não foram educados para conviver com os ciclistas”. Opinião compartilhada por Guth, que observa um dado curioso. Nos grandes centros expandidos, a utilização da bicicleta causa empatia, a pessoa é vista como alguém bem informada, com consciência ambiental. Já nas periferias e subúrbios, a magrela é considerada um signo de pobreza, em contraposição ao status social que o carro e a motocicleta, como acreditam esses novos consumidores, agrega.   


Independentemente de classe social, é indiscutível que as bikes ganharam importância nos grandes centros urbanos e essa é uma realidade sem volta. O reflexo dos novos tempos é perceptível em capitais como Rio de Janeiro, campeão de ciclovias no País, com mais de 300 km (uma das maiores malhas da América Latina), e São Paulo que, agregando ciclovias e ciclofaixas temporárias (abertas nos fins de semana), soma 245 km de trajetos – sem elas, a cidade ainda é fraca em ciclovias: apenas 30 km.

Há muito a ser feito. Porto Alegre, por exemplo, tem hoje 15,7 km de ciclovias. A EPTC (Empresa Pública e Transporte e Circulação), responsável por ampliar esses números, promete  4,6 km para o final deste mês de setembro. Em Manaus, havia o plano de construir, em 2013, 21 km. Até o momento, só 3,1 km foram entregues à população. Os dois lados do Eixo Monumental de Brasília serão interligados por uma ciclovia de 20 km, até abril de 2014. Salvador, que tem hoje 20 km de ciclovias, pretende apostar nas magrelas para atender as demandas de mobilidade da Copa de 2014. Idealizado pela Companhia de Desenvolvimento Urbano do Governo do Estado da Bahia – Conder, o chamado Plano de Mobilidade Urbana para Salvador promete entregar até a Copa 217 km.

Cem anos depois de Duchamp “reinventar a roda”, no Brasil, as rodas das magrelas começam a revolucionar hábitos consolidados no século 20. A indústria automobilística, já algum tempo, vem manifestando o temor de que os carros passarão a ser cada vez menos significativos na vida das futuras gerações. Por essa, Henry Ford não esperava.


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