A revolução elétr(ôn)ica de João Donato

bad donato quinteMesmo tendo se tornando um alto-executivo a serviço da indústria fonográfica a partir de seu ingresso no início dos anos 1960, na Decca Records, o americano Bob Krasnow, hoje com 79 anos, pode ser considerado, em seu meio, dessas figuras raras, pela sensibilidade de valorizar artistas dignos de tratamento diferenciado. A experiência adquirida na Decca fez com que – talvez, em busca de um meio termo entre o executivo preocupado com a saúde financeira das companhias que atuava e o apaixonado por música – ele se aventurasse, depois, em selos de sua propriedade, como a MK Records e a Loma Records. Incursão posterior, na Kama Sutra Records, como vice-presidente, propiciou a Krasnow a criação da subsidiária Buddah Records.

Mas, em 1968, ele decidiu abandonar a dobradinha Kama Sutra/Buddah e novamente apostar em projeto 100% autônomo, que ganhou o nome Blue Thumb Records. Tendo como maior atrativo inicial o lançamento de Outta Season (1969), coletânea de Ike & Tina Turner, o selo também acolheu trabalhos solo de Marc Bolan, líder do T-Rex; Out Here, o quinto álbum de estúdio da banda californiana de rock psicodélico Love; o bluesman John Mayall que, na segunda metade dos anos 1970, lançou seis álbuns pelo selo; e trabalhos de artistas brasileiros, como o grupo Bossa Rio, de Pery Ribeiro que, desde 1969, embalado pelo sucesso do Brasil 66’, de Sérgio Mendes, também tentava emplacar carreira internacional, com o lançamento de um primeiro álbum, nos EUA, pela A&M Records (ouça Saiubá, versão de Por Causa de Você, Menina, de Jorge Ben).

Sem grande repercussão de sua estreia americana, o Bossa Rio acabou sendo acolhido pela Blue Thumb de Krasnow que, havia anos, com o advento da Bossa Nova, era apaixonado por música brasileira. Produzido (não por acaso) por Sergio Mendes (que coincidentemente, ou não, teve um sexteto com o mesmo nome) o segundo álbum americano do Bossa Rio foi lançado, nos EUA, via Blue Thumb e ganhou o nome de Alegria! (recentemente os dois álbuns foram relançados no Brasil, na caixa Pery Internacional, do selo Discobertas). Composto de dez faixas Alegria! traz músicas cantadas em português, entre elas: Zazuera e Que Pena (colhidas do repertório genial de Jorge Ben, à época, ambas faziam grande sucesso, respectivamente, nas vozes de Wilson Simonal  e Gal Costa) e With Your Love Now, uma releitura, vertida para o inglês por Norman Gimbel, de Mustang Cor de Sangue, dos irmãos Marcos e Paulo Sergio Valle. Reverberando expediente comum ao Brasil’ 66 de Sérgio Mendes, as canções internacionais incluídas no álbum, claro, foram extraídas das paradas mundiais de sucesso. Estão no segundo Bossa Rio, por exemplo, duas versões dos Beatles, Eleanor Rigby e Blackbyrd, além de outra música onipresente naquele ano de 1970, Spinning Wheel, composta por David Clayton-Thomas, um dos vocalistas do Blood, Sweat & Tears (ouça, também, além da versão do Bossa Rio, uma releitura em português do grupo Impacto 8, liderado por Raul de Souza, intitulada Vida Torta). 

Se as escolhas de Krasnow e o Bossa Rio em Alegria! sugerem artifícios comerciais dos mais previsíveis, perspectiva diametralmente oposta é patente em outro título brasileiro da Blue Thumb lançado pelo selo americano em 1970, o álbum A Bad Donato, de João Donato. À época, o pianista acreano vivia na Califórnia, estava casado com a atriz americana Patricia del Sausser e teve com ela uma filha, então com  7 anos, chamada Jodel. Fascinado pela grande arte de Donato, Krasnow deu a ele carta branca para fazer o álbum como bem entendesse. A começar pelo orçamento de produção, generosamente engordado para que Donato pudesse se municiar do que havia de mais moderno no quesito “instrumentos de teclas”. E o momento era propício para descobertas e experimentações. Afinal, começavam a surgir no mercado novos sintetizadores, pianos elétricos e órgãos compactos. A diversidade de timbres desses instrumentos é absolutamente perceptível em cada um dos dez temas instrumentais que compõem A Bad Donato. A carta branca de Krasnow, no entanto, tinha uma saudável “ingerência”, que também foi decisiva para a sonoridade vigorosa e vanguardista registrada no LP: ele pediu a João que atentamente ouvisse novos artistas e novos gêneros musicais, como o funk de James Brown e seus pares (a propósito, Krasnow atuou por um breve período como agente do Mr. Dynamite), e o rock de expoentes do psicodelismo, como o Experience, de Jimi Hendrix.

Em artigo dos mais coerentes publicado em 1969, no jornal O Pasquim, o filósofo Luiz Carlos Maciel –colunista do tabloide, que mantinha nele a seção Underground, dedicada à contracultura – faz uma análise da importância de Hendrix para fomentar ambiente de maiores experimentações na seara da música popular por meio da eletricidade e da eletrônica. “Ao contrário da maioria de seus companheiros de viagem, Hendrix concentra suas experiências sobre o aparato elétrico de seus instrumentos. Até mesmo a distorção deliberada do registro elétrico de suas gravações foi amplamente utilizada. O que a música eletrônica aspirou a fazer, Hendrix realiza, no âmbito da música popular”, defende Maciel, no texto intitulado Jimi Hendrix Está na Dele. Tendo Donato como alquimista dessa incursão pela eletrônica e pela eletricidade, lógica similar devia passar na cabeça de Krasnow quando impôs a ele as exigências de modernização dos instrumentos e essas novas, e ousadas, audições. Afinal, o que se ouve em A Bad Donato é João Donato embalado de forma quase irreconhecível, porém, irresistível. Claro, seus melhores predicados – a riqueza melódica, a sutileza de seu ostinato para construir células rítmicas de entortar o esqueleto – estão no álbum, mas vestidos em arranjos e sonoridades a anos luz das facetas que consolidaram Donato, internacionalmente; primeiro com um dos artífices da Bossa Nova, depois, como requisitado músico de apoio de ícones do jazz latino, como os percussionistas Tito Puente e Mongo Santamaria e o vibrafonista Cal Tjader.    

João Donato em imagem da contracapa de A Bad Donato (Blue Thumb Records)
João Donato em imagem da contracapa de A Bad Donato (Blue Thumb Records)

Outra evidência de que Krasnow garantiu a Donato os melhores recursos possíveis para a gravação do disco foi a escolha de Eumir Deodato (que, na verdade, se ofereceu para realizar o trabalho, logo que soube do novo projeto do conterrâneo) para escrever os arranjos a quatro mãos com Donato e conduzi-los durante os registros. Deodato estava radicado nos Estados Unidos, desde 1967, quando lá chegou à convite de Luiz Bonfá (e jamais voltou). O menino prodígio da Bossa Nova ainda não havia lançado nenhum título autoral por lá – em 1973, ele faria estrondoso sucesso mundial com Prelude (saiba mais) –, mas já havia assinado importantes trabalhos, como arranjador, para gravadoras de renome, entre eles o álbum que marcou o encontro de Tom Jobim e Frank Sinatra, Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, lançado em 1967 pela Verve Records. Além da escolha acertada de colocar Deodato para dividir e reger os arranjos, Krasnow também consentiu sugestão inusitada de Donato: registrar alguns instrumentos “dobrados” – dois trombones, dois saxofones tenores, dois barítonos, dois trompetes e duas baterias. Quanto aos músicos envolvidos (para a alegria de Donato, que era devoto do maestro desde a adolescência), parte deles integrou a orquestra de Stan Kenton, como os saxofonistas Ernie Watts, Jack Nimitz, Don Menza, Bill Hood, os trombonistas Jimmy Cleveland e Ken Shroyer, os trompetistas (e irmãos) Pete e Conti Candoli e Jimmy Zito.  Além deles, o supergrupo ainda incluía Warren Klein (guitarra), Oscar Castro Neves (violão), Chuck Domanico (baixo), os bateristas Mark Stevens, Paulinho Magalhães e Dom Um Romão, os percussionistas Joe Porcaro e Emil Richards (este último também assina a produção de A Bad Donato) e o flautista Bud Shank (com quem Donato integrou, pelo selo Pacific Jazz Records, em 1965, um belo álbum Bud Shank & His Brazilian Friends, com repertório composto de vários temas do pianista brasileiro, e participação de Rosinha de Valença – ouça Minha Saudade e leia mais sobre Rosinha).

Quanto ao repertório, que influenciou experiências de outros músicos americanos naqueles anos 1970 marcadas pelo advento do fusion e do jazz-rock, A Bad Donato reúne dez temas inéditos, de grande unidade estética e equivalência de qualidade. Desses álbuns que basta dar play, ou inserir a agulha no primeiro sulco e deixar rolar (lógico, comentário este válido apenas àqueles que tem a sorte de possuí-lo em LP, afinal, trata-se de obra nunca lançada no Brasil neste formato e, portanto, um exemplar original, da Blue Thumb, custa uma nota preta nos círculos de colecionismo). Regularidade de repertório a parte, algumas faixas se destacam à primeira audição, como as ultra-dançantes Debutante’s Ball, Bambu, Celestial Showers e Lunar Tune – esta última, conforme revelou depois o próprio Donato, foi registrada sob efeito de LSD, segundo ele a pedido de Krasnow, que gostaria que ele estivesse sob influência da droga lisérgica durante o registro do solo. The Frog, tema de abertura do álbum que, depois, ganhou letra de Caetano Veloso, foi regravado na volta de João Donato ao Brasil, em 1973, no clássico álbum Quem é Quem… É João Donato (ouça a íntegra). Recentemente, Donato teve a felicidade de tocar o repertório do LP, pela primeira vez, em São Paulo e em Recife (leia artigo do músico escrito antes das apresentações).

Na ocasião, aproveitando o burburinho em torno dos shows de Quem é Quem…, Donato tirou uma preciosidade de seu baú de memórias, uma carta (leia) escrita ao amigo João Gilberto (os dois se conheceram em meados dos anos 1950, no Rio de Janeiro) falando de seu entusiasmo e de suas impressões sobre a nova cria. A correspondência também foi destacada quando publiquei em Quintessência um texto sobre o álbum Muito à Vontade, de 1962 (leia). A propósito, o leitor mais atento haverá de perceber que esta é a primeira ocasião que recomendo um segundo álbum de um mesmo artista em Quintessência. Lógico, há muita gente boa que ainda não foi devidamente reverenciada aqui, mas nada mais justo do que tratar como exceção alguém da estatura de João Donato, que está em plena atividade e vive ano dos mais especiais, pois está às vésperas de completar 80 anos (em 17 de agosto). As celebrações deverão ser marcadas por uma série de shows e o registro de um álbum inédito. 

Dito isto, resta àqueles que ainda não tiveram essa experiência sensorial conferir a íntegra de A Bad Donato, na Rádio UOL.

Boas audições e até a próxima Quintessência!

Em tempo:

– Vale conferir também Bossa Nova Combina Com Tudo, belo artigo escrito pelo próprio Donato, em 2008, para a revista Piauí.   

– No Brasil, o selo carioca Dubas lançou o álbum em CD. Apesar da bela iniciativa, vale ressalvar, como pontos questionáveis, a intervenção na capa original e o adendo, desnecessário, do subtítulo “João Donato’s Psichedelic Funky Experience”.

– Uma curiosidade: provavelmente inspirado no título de A Bad Donato, o guitarrista George Benson lançou em 1974, pelo selo CTI Records, o álbum Bad Benson (ouça a íntegra)


Comentários

2 respostas para “A revolução elétr(ôn)ica de João Donato”

  1. Caro Alexandre, Percebi esse equívoco, quando reli o texto ontem, e fiz a devida correção. A propósito, no post sobre o "Prelude", informei os dias de gravação (entre 11 e 14 de setembro de 1972). Agradeço o prestígio de sua leitura e a recomendação do link do Arnaldo, figura imprescindível para o resgate e a manutenção da belíssima história de nossa música popular. Forte abraço!

  2. Avatar de Alexandre
    Alexandre

    Parabéns por este belíssimo texto sobre “A Bad Donato” de joão Donato, Marcelo. Apenas corrigindo uma pequena errata sobre a menção de Eumir Deodato no texto: Ele fez sucesso com o álbum “Prelude”, sim, mas foi no ano de 1973 (não em 1972, como foi digitado), já que o vinil chegaria às lojas dos EUA somente no mês de fevereiro daquele ano. Deixo aqui o link do especialista em “Prelude”, Arnaldo DeSouteiro: jazzstation-oblogdearnaldodesouteiros.blogspot.com.br/2013/09/40-years-of-deodatos-prelude.html
    Valeu, um abraço.

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