João Donato, à vontade mesmo

joao_donato_capaAs noites de hoje, 27.2, e amanhã, prometem ser memoráveis para os fãs paulistanos de João Donato. Pela primeira vez, o pianista acreano, nascido em Rio Branco, tocará o repertório de uma das obras-primas de sua discografia, o álbum Quem é Quem… É João Donato, de 1973. Os dois shows serão realizados no Sesc Pinheiros, zona oeste da capital, e terão a participação de convidados especiais. Donato cantará (o álbum traz os primeiros registros vocais do compositor) e tocará acompanhado de ninguém menos que Marcos Valle, produtor do biscoito fino, que tocará sintetizador MiniMoog e piano elétrico (o clássico Fender Rhodes também tocado por Donato). Entrosadíssimos em centenas de shows da big-band Bixiga 70, tocarão também os músicos Maurício Fleury (guitarra), Marcelo Dworecki (contrabaixo), Décio 7 (bateria) e Cuca Ferreira (sax barítono, flauta e flautim). Além deles, reforça o time o percussionista Guilherme Kastrup, que em 2013 lançou o ótimo trabalho autoral Kastrupismo (ouça, baixe ou compre), Anderson Quevedo (sax tenor, sax barítono e flauta), Richard Fermino (trombone, clarone e flauta) e as cantoras Mariana Aydar e Tulipa Ruiz.
O show é um dos pontos altos das celebrações aos 80 anos de Donato (que serão completados em 17 de agosto), e foi idealizado e produzido pelo jornalista Ronaldo Evangelista, grande conhecedor e entusiasta da obra do genial pianista, que também é trombonista, acordeonista e arranjador de mão cheia.

Como
Quem é Quem…, infelizmente, não está disponível para audição na internet, Quintessência presta hoje reverência a outro momento divisor na careira de Donato, o álbum João Donato e Seu Trio, Muito à Vontade, lançado em 1962. Gravado em um hiato de passagem de Donato pelo Brasil (à época, ele vivia nos EUA), em dezembro de 1961, pela Polydor/CBD, Muito à Vontade é o primeiro LP em 12 polegadas da carreira do pianista – muito embora ele já tivesse gravado sete compactos em 78rpm e registros de irresistível apelo dançante, como o LP Chá Dançante (1956), e participações em coletâneas como Vamos Dançar (1957) e Dance Conosco (1958).

Na contracapa original de Muito à Vontade, a apresentação do artista é precisa como seus acordes certeiros e obsessivos: “Ao primeiro contato, o ouvinte percebe imediatamente que ali estão galvanicamente unidos o compositor, o pianista e o arranjador, formando uma trindade indissolúvel e igualmente atraente em suas três facetas. Utilizando quase sempre acordes cheios, harmonicamente curiosos e intrincados, Donato investiga exaustivamente o tema, extraindo toda a seiva harmônica e melódica que o mesmo contém.”

Os tais temas, uma seleção de pérolas: de Donato, Muito a vontade, Vamos Nessa, Naquela Base, Só Se For Agora, Caminho de Casa e Tema Teimoso; de Donato e parceiros Sambou Sambou (com João Mello), Minha Saudade (com João Gilberto) e Jodel (escrito em parceria com sua mulher, a atriz americana Patricia del Sausser, o tema seria repaginado em A Bad Donato (1970) e em Donato/Deodato (1972), em homenagem a única filha do casal, Jodel, depois, ganharia letra de Marcos Valle em Quem é Quem…). Há também um clássico do sambalanço Olhou Pra Mim (de Ed Lincoln e Silvio César), e Tim Dom-Dom, canção de João Mello e Codó, que faria grande sucesso no primeiro álbum de Jorge Ben, Samba Esquema Novo (ouça a releitura e leia reportagem sobre os 50 anos da estreia e Ben Jor).  

Os amigos João Donato e João Gilberto passeiam pela zona sul do Rio de Janeiro, em 1957 (arquivo pessoal, João Donato)
Os amigos João Donato e João Gilberto, que assinam o tema “Minha Saudade, de “Muito à Vontade”, passeiam pela zona sul do Rio de Janeiro, em 1957 (arquivo pessoal, João Donato)

Quanto aos músicos envolvidos nos registros de Muito a Vontade, um trio de feras: na cozinha, Tião Neto, baixista do lendário Bossa Três, e ninguém menos que o Pai da batida Bossa Nova na bateria, Milton Banana (leia post sobre o primeiro álbum solo de Banana). Fechando a teia percussiva, o bongoísta e pandeirista Amaury, craque da Boate Drink, de Djalma Ferreira. O acabamento de luxo ficou a cargo de Ismael Corrêa (produtor), Célio Martins (técnico de gravação) e Sylvio Rabello (engenheiro de som). A embalagem tropical e bem humorada, que sintetiza a atmosfera “muito a vontade” do álbum e dos temas escolhidos, foi criada por Paulo Breves.

Donato partiu do Acre, com os pais, para o Rio de Janeiro em 1948. Logo, aos 15 anos, foi tocar acordeon no conjunto de Fafá Lemos, residente da extinta boate Monte Carlo. Pouco depois, ao lado dos amigos Miltinho, Nanó, João Luís, Freddy, Chico e Julinho, também empunhando seu acordeon, integrou o conjunto vocal Os Namorados. Com o grupo, Donato gravou, pela mesma CBD que lançou Muito A Vontade, um LP homônimo, em 1953. Em 1958, além do acordeon, passou a se dedicar também aos estudos de piano e trombone. No ano seguinte partiu para os Estados Unidos. Em Los Angels, na Califórnia, onde passou a residir, conheceu a futura esposa Patricia (a propósito, quando voltou ao Brasil, em dezembro de 1972, eles haviam acabado de romper a relação e Donato vivia dias difíceis).

Nesses mais de 10 anos em solo americano, carismático e talentosíssimo, o pianista ganhou a amizade de músicos do primeiro time do jazz americano, integrando combos, especialmente de jazz-latino, em apresentações e em registros fonográficos – entre eles, dos percussionistas Mongo Santamaria e Tito Puente, do flautista Herbie Mann e do vibrafonista Cal Tjader.

Para os fãs que vão as shows no SESC, e também àqueles que perderão esse momento mágico, encerro com uma preciosidade entregue pelo músico a Ronaldo Evangelista: uma carta escrita de próprio punho ao amigo João Gilberto onde Donato descreve os bastidores e detalhes, canção por canção, desse tesouro da música brasileira chamado Quem é Quem… Leia a íntegra da carta.

Ouça a íntegra de Muito à Vontade (o álbum foi relançado em CD, pelo selo Dubas, em 2002)

Boas audições e até a próxima Quintessência


Comments

3 respostas para “João Donato, à vontade mesmo”

  1. Avatar de Alexandre Porrto
    Alexandre Porrto

    Só um pequeno detalhe; Salvo engano meu, em 1953 “Os Namorados” não gravou um LP, mas dois discos de 78rpm, os dois pela Sinter.

    Eu quero um samba / Três Ave-Marias
    Palpite Infeliz / Pagode em Xerem

  2. Avatar de Alexandre
    Alexandre

    Olá, Marcelo, olha eu aqui de novo. Aproveitei o embalo e resolvi dar uma conferida na matéria sobre o álbum “Muito À Vontade”, de João Donato. Novamente, adorei o texto, mas como fã ardoroso, gostaria de corrigir algumas erratas no texto. Primeiro, João Donato retornaria ao Brasil em dezembro de 1972, deixando nos EUA sua ex-esposa americana Patricia, sua filha de nove anos, Jodel, e um disco inacabado (Donato/Deodato), pois naquele mês a gravadora Muse Records entraria em férias coletivas e só reabriria em janeiro do ano seguinte. Enquanto isso, ainda nos EUA, Eumir Deodato, que já era residente na terra do Tio Sam desde o fim dos anos 60, concluiu as gravações e os arranjos do disco “Donato/Deodato” nos dias 26 de março e 10 de abril de 1973 – estas informações constam no encarte original do vinil -, praticamente dois meses após ter lançado o LP “Prelude”, e o lançamento de “Donato/Deodato” só ocorreria em meados de 1973 (sim, de novo, o LP “Donato/Deodato” foi lançado em 1973, não em 1972, como foi digitado). Para finalizar, por algum motivo, alguns relançamentos posteriores tiveram somente o nome de João Donato creditado como artista solo do disco, deixando Deodato de fora, cujo assunto é tabu entre os dois até os dias de hoje.

    1. Caro Alexandre,

      Fique sempre à vontade, parafraseando o poetinha: esta é “casa” que “vive aberta”. De fato, a volta de João foi em dezembro de 1972, e não no começo de 1973, pois, segundo relato do próprio Donato, a gênese do “Quem é Quem…” deu-se em um papo informal entre ele, Agostinho dos Santos e Marcos Valle, no Natal de 1972. Quanto a essa história dos bastidores do “Donato/Deodato”, realmente nebulosa. Já li textos, com os dois, nos quais o assunto é abordado, evitado, e fica a dúvida se eles continuam sendo bons amigos. Uma pena, perdemos nós e nossa música, afinal, os dois estão em atividade e poderiam dar continuidade a essa dobradinha fantástica.

      Forte abraço.

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