A segunda revolução

O mercado de câmbio brasileiro estava mais tenso que de costume no dia 23 de novembro. A cotação do dólar passava de R$ 2,10, quando o Banco Central fez um leilão de swap cambial (o que equivale a vender a moeda americana no mercado futuro) e inverteu a tendência de alta. Pela manhã, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, teria afirmado para uma plateia de empresários que ainda não era o ideal. “Não falei que o câmbio ia mais para cima”, salientou o ministro, horas mais tarde, durante a entrevista concedida à Brasileiros, em seu gabinete na capital paulista. “Mas isso já bastou para chutar a cotação para cima.” Em vez de lamentar o episódio, Mantega ressaltou como os pronunciamentos das autoridades do governo ganharam uma influência inédita sobre os mercados. “Instrumento bom é aquele que não precisa nem usar”, comentou, lembrando que as regras adotadas para coibir a especulação com o real deixaram em estado de alerta os investidores. Essa maior sensibilidade dos agentes econômicos é um dos trunfos da equipe econômica para deixar no passado a época em que a alteração da taxa básica de juros era praticamente a única ferramenta de política monetária. Superado esse obstáculo, abre-se caminho para mudanças na condução da economia, que o ministro comenta nas linhas a seguir.

Brasileiros – As mudanças ocorridas no Brasil nos últimos cinco anos configuram, de fato, uma revolução?
Guido Mantega –
Tivemos uma primeira grande transformação da economia e da sociedade brasileira no primeiro governo Lula e, particularmente, no segundo mandato. Essa revolução significou a volta do desenvolvimento socioeconômico no País. No período de 2007 a 2010, a economia teve um forte crescimento, apesar da crise de 2008. Na média, crescemos 4,6%. O vigor foi dado pela combinação de programas econômicos e sociais. Com a retomada da atividade econômica, tivemos forte geração de emprego e mobilidade social. Em 1994, era preciso quatro salários para comprar uma geladeira. Em 2006, um salário mínimo comprava uma geladeira. Em 2010, um salário mínimo comprava 1,3 geladeira.

Brasileiros – Ou seja, além de comprar, o trabalhador abastece a geladeira…
Mantega –
Em 2003, tínhamos 66 milhões de pessoas na classe de renda C. Em 2010, 100 milhões. A classe C quase dobrou, em detrimento das classes D e E, que passaram de 96,2 milhões, em 2003, para 69,6 milhões em 2009. É uma ascensão social clara. Isso é uma revolução. A taxa de desemprego em 2002 era em torno de 12%, e hoje está em 5,2%. A economia brasileira trabalha, desde 2010, com pleno emprego. Isso significa que o salário real e a massa salarial estão crescendo. Essa situação, somada aos programas sociais que atingem milhões de brasileiros, criou uma grande classe média, um grande mercado de consumo que dinamiza a economia. O mérito disso foi tê-lo feito com um fortalecimento da situação fiscal do País e controle da inflação, que esteve mais equilibrada do que no período anterior.

Brasileiros – Mas a inflação ainda está acima do centro da meta. Isso não traz riscos?
Mantega –
Existem mitos na economia brasileira que vão sendo desmontados. A economia não pode crescer sem gerar inflação. Outro mito: a economia não controla a inflação sem taxas de juros elevadas. Ou que a economia não pode crescer com os trabalhadores ganhando mais. Estamos desmontando vários mitos e, com isso, modificando a política econômica. O País se fortaleceu. Era muito dependente dos organismos internacionais e do grande capital financeiro. Não tínhamos reservas que, em 2003, eram de US$ 15 bilhões. Hoje, elas são de US$ 370 bilhões.

Brasileiros – O que o aumento das reservas representa para o Brasil, no âmbito internacional?
Mantega –
Deixamos de ser um país subordinado, que seguia ordens do Fundo Monetário (Internacional, o FMI). Em 2010, o Brasil passou a emprestar para o FMI. Hoje, damos um crédito de US$ 14 bilhões para o fundo. Foi feita uma reforma de cotas e o Brasil passou a ser uma das dez economias com maior peso. Éramos figurantes e passamos a protagonistas na cena internacional. Fomos um dos criadores do G20. Hoje, o Brasil participa do fórum que toma as decisões na economia internacional.

Brasileiros – O senhor foi o primeiro a utilizar a expressão “guerra cambial” nesses fóruns.
Mantega –
É bom saber onde falei isso. Em uma reunião do G20, onde estavam Ben Bernanke (o presidente do Fed, o Banco Central dos EUA), Tim Geithner (o secretário do Tesouro americano) e os ministros dos países mais importantes. O Bernanke torceu o nariz quando falei que fazer política monetária expansionista é correto quando as economias estão em dificuldades, mas exagerar e não acoplá-la a uma política fiscal também de estímulo, expansionista, significava apenas uma política de desvalorização da moeda, que iria apenas favorecer aquele país no comércio internacional. O Financial Times elogiou a iniciativa.

Brasileiros – Os estímulos fiscais ajudaram o Brasil a ser um dos primeiros países a se recuperarem das turbulências de 2008 no mercado internacional.
Mantega –
No final de 2009, já estávamos acelerando, em função das políticas anticíclicas que fizemos. Desde 1973, no segundo PND do Geisel, não se fazia uma política anticíclica dessa magnitude no País. Depois disso, a economia brasileira sempre fez políticas pós-cíclicas, mesmo porque talvez não tivesse condições de fazer diferente.

Brasileiros – É possível comparar as atitudes tomadas no Brasil agora com a estratégia usada após 2008?
Mantega –
Uma crise é apenas a continuação da outra. Alguns países tiveram uma recuperação rápida. Foi o caso do Brasil. Mas outros permaneceram em crise até hoje, com epicentro no sistema financeiro europeu. E o sistema financeiro americano foi estabilizado, não corrigido. Eles estão corrigindo a golpes monetários. Os EUA fazem hoje a política monetária mais heterodoxa de que eu tenho notícia. O que não é necessariamente um defeito. Anunciam que o juro não vai subir nos próximos três anos, se necessário for, e que vão jogar um caminhão de dinheiro na economia mundial. A primeira rodada de afrouxamento valorizou todas as moedas. O dólar chegou a quase R$ 1,55. Foi aí que começamos uma reação mais forte.

Brasileiros – Estamos prontos para uma nova etapa de mudanças profundas na economia?
Mantega –
A segunda revolução é a que está em curso. Ela se baseia naquilo que foi conquistado nessa primeira parte, que é uma situação fiscal sólida, menor dependência do exterior. O mercado passou a respeitar o governo em matéria cambial e financeira. Hoje, quando o governo fala “nós não vamos deixar valorizar”, o mercado acredita. Se jogar contra, ele perde. A segunda revolução é constituída de uma política monetária mais eficiente, que consegue controlar a inflação com taxas de juros mais baixas, usando mais instrumentos, como medidas macroprudenciais, que têm o mesmo efeito sobre a oferta de crédito e de liquidez. São às vezes até mais eficazes. As medidas que foram tomadas em dezembro de 2010 reduziram violentamente o crédito, ao reduzir o número de prestações nos empréstimos. Temos também uma política cambial que exerce o câmbio flutuante, mas mantém a competitividade. Fazemos um câmbio flutuante sujo.

Brasileiros – Os economistas mais ortodoxos criticam essa interferência do governo no câmbio.
Mantega –
Nunca vi nenhum país praticar o câmbio flutuante limpo. Ou mantém bandas cambiais, ou faz como a China, que controla totalmente o câmbio. Mas o tripé se mantém. Só que a política fiscal é anticíclica, sempre buscando a solidez e a redução do endividamento. Quando está sobrando, a gente poupa mais e, quando precisa estimular a economia, é o que a gente faz. Antigamente, achava-se que bastava fazer uma política de redução de dívida e isso automaticamente ia produzir o crescimento. Não é verdade. Não basta ter inflação baixa e redução de gasto público para a economia deslanchar. É uma balela. Precisa fazer política anticíclica, de estímulo.

Brasileiros – Qual é o tamanho do alívio que o juro mais baixo traz para a área fiscal?
Mantega –
No ano passado, o governo federal gastou 5,8% do PIB em juros. Este ano, vai gastar 4,9%. Caiu quase 1 ponto percentual, o que é mais ou menos a desoneração que fizemos neste ano, de R$ 45 bilhões. Isso é caminhar para uma economia equilibrada. Em uma economia com juro alto e com tributos elevados, quem paga o pato é a produção, porque o custo do capital fica elevado e ela ainda paga os tributos elevados.

Brasileiros – Boa parte do lucro das empresas brasileiras vinha de aplicações financeiras.
Mantega –
A vigência de juros altos durante um longo tempo causou distorções na economia, que se viciou nos juros altos. Para se defender, o setor produtivo teve de entrar na ciranda financeira. Porque, muitas vezes, ganhava mais aplicando a sobra de caixa que na atividade produtiva. Uma parte da classe média alta também tinha poupança ou outra aplicação financeira, e não conseguiu ainda reverter isso para outro tipo de rendimento. Vai surgir um novo mercado de capitais, como ativos originários da produção, e não do setor financeiro.

Brasileiros – Que tipo de ativos?
Mantega –
Debêntures e outros títulos financeiros lançados pelas empresas. Um ano atrás, para a empresa lançar uma debênture tinha de oferecer 12% a 14% de juros anuais. Hoje, ela pode captar recursos com pouco mais do que a Selic. Diminuiu o custo financeiro da empresa. As carteiras de aplicação também vão se modificar. Vai ter mais renda variável. Isso não apareceu ainda, porque nós temos essa crise internacional que derruba as bolsas, mas daqui a pouco as empresas vão fazer mais IPOs (ofertas públicas iniciais de ações, na sigla em inglês), vai haver uma dinamização desse mercado. O mercado de debêntures já está crescendo bastante.

Brasileiros – Vai haver mais IPO?
Mantega –
Sim, embora dependa da regularização da economia internacional. No momento em que isso ocorrer, a economia vai bombar. Mas já estão bombando outros ativos, como debêntures de infraestrutura, um título que não paga imposto de renda. É um título que a empresa lança acoplado a um projeto de investimento. Por exemplo, estou fazendo uma hidrelétrica, vou captar dinheiro para construir. Ele lança uma debênture, que tem de ser de ao menos quatro anos. E agora há apetite para o longo prazo.

Brasileiros – Há projetos de infraestrutura suficientes para abastecer esse mercado?
Mantega –
Lançamos um programa de concessões de R$ 130 bilhões. Ferrovias e rodovias vão permitir a oferta de debêntures a quem tem recursos para financiar. Isso muda completamente a estrutura financeira e produtiva do País. Essa é a quarta perna dessa matriz macroeconômica, um forte estímulo ao investimento, com concessões e programas de estímulo ao financiamento. Agora, vamos lançar um grande programa de portos e aeroportos. Nós vamos fazer 10 mil km de ferrovias, além das que estão sendo feitas. Teremos trem de alta velocidade e 8 mil km de novas rodovias, ou ampliação das existentes. Os portos também vão ter uma modernização, que vai ser lançada nas próximas semanas. E nos aeroportos o trabalho já começou. Um dos dinamizadores do crescimento que teremos agora será investimento, o outro é o mercado consumidor, que continua vigoroso. Nós estamos na transição para esse modelo.

Brasileiros – O que falta para essa transição se concretizar?
Mantega –
Para migrar para esse novo modelo, é preciso fazer primeiro a desintoxicação, porque está todo mundo acostumado com câmbio valorizado e juro alto. O próprio empresário produtivo, quando o câmbio estava valorizado, pegava dinheiro emprestado lá fora e se endividava em dólar. Quando o câmbio se desvaloriza, mesmo que seja melhor para ele como produtor, a conta fica mais alta, e é preciso refazer a estrutura de financiamento.  O empresário estava acostumado a importar máquinas mais baratas, e vai ter de importar um pouco mais caro.

Brasileiros – O dólar mais alto pressiona a inflação?
Mantega –
Pode ser, mas podemos dizer que temos sucesso com a inflação. O índice atual tem o impacto do câmbio, que é once for all. Quando o câmbio para, a inflação para. Tem uma pressão, mas os benefícios compensam. Isso está sendo percebido. E tem medidas que vão entrar em vigor em 2013. Por exemplo, desoneração da folha, para vários setores, e a eliminação da guerra dos portos só começam em janeiro.

Brasileiros – O que ainda falta fazer?
Mantega –
Ainda temos de baixar os spreads bancários. E os bancos públicos continuam na linha de frente. A Caixa e o Banco do Brasil aumentaram o crédito em R$ 180 bilhões. O Santander, o Bradesco e o Itaú aumentaram em R$ 55 bilhões. E os bancos públicos têm uma inadimplência que é metade da dos privados. Os bancos privados reduziram o spread, que era 40% e foi para 30%. Houve uma queda, mas dá para cair muito mais. Continuamos com um dos maiores spreads do mundo, e não se justifica. Assim como a nossa taxa de juro real, que antes era a maior do mundo e, agora, é a terceira ou quarta.

Brasileiros – Uma crítica de parte do mercado é a demora para levar a inflação ao centro da meta.
Mantega –
A inflação começou o ano muito bem comportada. Depois houve um choque de oferta nos EUA. As commodities subiram, criou-se uma corcova, que está sendo superada. Os IGPs, que são índices de atacado, estão todos negativos, mas chegaram a crescer mais de 1% ao mês. Significa que a inflação está caindo, e vai cair mais nos próximos meses. Se não tivesse esse choque de oferta neste ano, estaríamos na meta.

Brasileiros – Com todos esses avanços, por que as ações de grandes empresas brasileiras estão em queda na Bolsa?
Mantega –
Em um período de crise internacional as commodities são atingidas. E as ações de Petrobras e Vale são as mais movimentadas. Também há a desaceleração da China, que demanda muito petróleo e muito minério. O minério caiu de preço. Mas isso é circunstancial. Ambas as empresas são muito sólidas, têm uma reserva de valor muito grande. A Petrobras ainda está começando o pré-sal, está na fase de investimento muito elevado e o retorno ainda não veio. Está em uma grande mobilização, são mais de 40 bilhões de dólares por ano de investimento. A tendência de longo prazo é o fortalecimento dessa empresas.

Brasileiros – A Eletrobras é outra empresa que perdeu muito valor, mas por conta do esforço do governo para baixar as tarifas de energia. Fazem sentido as reclamações das empresas do setor elétrico contra o modo como o governo conduz esse processo?
Mantega –
O Brasil tem uma distorção grande, que é o alto custo da energia elétrica. Temos uma das melhores matrizes de energia, abundância de hidroeletricidade e, no entanto, pratica taxas elevadas. Não podemos continuar assim. O governo estudou uma forma de fazê-lo respeitando os contratos estabelecidos, porém possibilitando uma redução de tarifas na economia brasileira, beneficiando todo mundo, o produtor e o consumidor. Isso significa uma grande redução de custo. Quando a gente baixar a tarifa, a inflação vai cair de 0,2 a 0,5 ponto percentual. A tarifa média cairá em 20%. Em segmentos de alta tensão, chega a 28%.

Brasileiros – Como essa redução será feita?
Mantega –
De maneira a expurgar da tarifa o custo da depreciação da energia. Usando rigorosamente a legislação, que foi estabelecida em 1995 e faculta ao governo a possibilidade de renovar ou não as concessões. Estabelecemos que renovaríamos as concessões por mais 30 anos, em contrapartida disso já antecipando para agora a redução de tarifas que já ocorreria a partir de 2015. A empresa pode concordar ou correr o risco de perder a concessão, e vale dizer que 90% delas são do setor público. As empresas gostariam de ter a renovação da concessão e manter a tarifa cheia, ou seja, de uma energia já depreciada. O que não tem sentido, porque seria manter o privilégio de meia dúzia. Houve fundos que apostaram nessas empresas e nessa filosofia, e fizeram uma avaliação equivocada, de que o governo renovaria mais uma vez com a tarifa cheia. Porque o governo diz há anos que quer baixar a tarifa de energia, e é vital para o Brasil baixar a tarifa de energia. E não em 2015, baixar agora.


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