Foto: Luiza Sigulem
Foto: Luiza Sigulem
Foram cerca de 40 anos até que o passado emergisse como ficção – uma ficção, diga-se, em que quase tudo é verdade. Desiludido com a política, na qual militou dentro do PT e como assessor especial do presidente Lula entre 2003 e 2006, crítico ferrenho do jornalismo, profissão que abraçou depois de se formar em Física, com centenas de reportagens reveladoras, tendo trabalhado nos principais veículos do País, inclusive os independentes, e ex-professor da área, na USP, Bernardo Kucinski, hoje com 76 anos, adotou o estilo solitário de Clint Eastwood, ator com quem se assemelha vagamente, e mergulhou de corpo e alma na literatura.

Publicado em 2011 por uma editora pequena (Expressão Popular), e finalista do Portugal Telecom, K. é agora relançado pela Cosac Naify, juntamente com um livro de contos que trata do mesmo universo sombrio: a ditadura. Se o primeiro livro – quase também um livro de contos, pois bastante fragmentado –, trata do desaparecimento de Ana Rosa, sua irmã, e da busca desesperada pelo pai, Majer, que enfrenta um pesadelo kafkiano de labirintos burocráticos, contrapistas e ameaças, Você Vai Voltar pra Mim busca abraçar um cenário mais amplo, com histórias de repressão a metalúrgicos, histórias na cadeia, cenas de sequestro, de tortura, de confissões, delações, loucura. São textos breves, escritos em registro direto, cada qual com uma estrutura própria.

Visivelmente entusiasmado com seu momento de escritor, Kucinski, antes tido como amargo, difícil, chega a sorrir nessa conversa realizada na Brasileiros e, entre tantas outras coisas, revela que já tem outros três livros prontos: duas antologias de contos e um policial que se passa na USP, a ser lançado ainda essa ano.

Capa do novo livro
Capa do novo livro

BrasileirosComo em K., os contos publicados agora são ficcionais, mas há neles muita coisa de verdadeiro, de factual. Um exemplo é o conto O Velório, que remete a Ruy Berbert, desaparecido que foi enterrado simbolicamente – as pessoas não sabiam que estavam velando um caixão sem restos mortais, que lá dentro só tinha um terno e um par de sapatos.

Bernardo Kucinski – Eu tenho uma limitação, não consigo inventar totalmente, preciso de um ponto de partida. Nesse conto a única coisa que eu sabia é que havia o caso de um pai que fez um enterro com um paletó e um par de sapatos. O resto é inventado, com muitos elementos da minha memória, de pessoas que eu conheci. Aliás, esse conto é o de que eu mais gosto, porque não acontece nada, na verdade. É apenas um velório.

 BrasileirosAliás, antes de começar a entrevista, você comentava que se considera mais um escritor de contos.

B.K. – É uma modalidade com a qual eu tenho muita facilidade. Porque o conto não exige um tratamento psicológico do personagem, um aprofundamento maior. À medida que fui escrevendo mais e mais contos, fui pegando o jeito. Só que eu escrevo com tanta facilidade que acho que alguns deles ficam meio banais, viram mais crônica do que conto. Estou tentando dar uma lapidada, mas tem muitos que já são bons do jeito que saem, estão prontos.

 BrasileirosE você tem muitos escritos… Você fala na introdução que são 150.

B.K. – É, eu escrevi até agora um total de 150. Tirando os que acabaram compondo o K., que tem capítulos praticamente autônomos, como o da amante do Fleury e o da faxineira, e tirando os 28 que estão em Você Vai Voltar pra Mim, ainda sobram aí uns 60, 70. Agora, eu organizei duas antologias, mas ainda preciso ver o que faço com elas: uma em torno da questão da família e outra sobre distopias, uma incursão num terreno do surrealismo, meio no estilo do Italo Calvino.

 BrasileirosTem outros sobre a ditadura que ficaram de fora do Você Vai Voltar pra Mim?

B.K. – Eu escrevi alguns agora, depois de assistir a uma sessão da Comissão da Verdade, que não estão no livro, mas são bons. Fiz uma experiência com o minimalismo, depois de reler o Dalton Trevisan, e deu certo.

 BrasileirosJá que você mencionou, o que está achando do trabalho da Comissão Nacional da Verdade? Está acompanhando?

B.K. – Não dá para acompanhar porque as sessões são fechadas. Eu acompanho as de São Paulo, que são abertas. Imagino que alguma coisa de importante eles estão fazendo. Eles criaram muitas subcomissões, estão delegando poderes a outras comissões. Ontem eu soube que tem uma na PUC, que tem outra em Ribeirão Preto, que tem comissões novas nas universidades.

BrasileirosSão quase cem no Brasil.

B.K. – Acho que esse é um fenômeno positivo, mas basicamente a minha avaliação é a seguinte: a sociedade brasileira não está interessada nisso. Inclusive se você pega os livros dos novos autores, que surgem nesses concursos todos da nova literatura brasileira, o tema não existe, não inquieta a alma brasileira.

 BrasileirosÉ verdade, ele aparece até em alguns livros, mas sempre de forma meio tangencial.

B.K. – Tangencial e às vezes até forçada. Não é o tema central porque não houve trauma na sociedade brasileira. Essa é a minha tese. Não foi como na Argentina, no Chile, na Alemanha nazista, em que a sociedade como um todo ficou traumatizada e tem de lidar com esse trauma. Aqui foram grupos pequenos que estavam isolados da sociedade, foram tratados de forma isolada e foram exterminados de forma isolada. E a sociedade estava vivendo o milagre econômico, as pessoas vindo da Bahia para São Paulo porque tinha emprego, e os salários lá em cima, e toda essa hegemonia burguesa conseguindo tratar tudo como se nada estivesse acontecendo. Um setor que eu acho que sofreu um trauma é o da universidade. Se você olhar bem, eles expulsaram da universidade umas duas centenas das pessoas mais importantes que havia. É só pensar os nomes: Paulo Freire, Celso Furtado, Fernando Henrique, Octavio Ianni, Luiz Hildebrando, Isaias Raw e muitos outros. Eram químicos, biólogos, médicos, cientistas sociais, filósofos, entende? Por isso, a universidade que você tem hoje é isso aí, medíocre. Mas nos outros setores… O judiciário foi abalado? Nada, eles todos foram cúmplices, complacentes. O Exército acha até hoje que fez bem. Então não há ruptura.

 BrasileirosMesma coisa com o em­­pre­sariado…

B.K. – A mídia também agora fica dizendo que era contra a ditadura, mas eles a apoiaram. É por isso que não é um tema. É um tema só para alguns.

 Brasileiros Voltando um pouco para o livro: com tantos contos na mão, como ele foi montado?

B.K. – Eu mandei para a editora (a Cosac Naify) um monte de contos. Aí, eles optaram por um conjunto de temas que fosse parecido com o do K., Mas tinham outros, sobre outros assuntos também. Depois que a gente fechou o tema, eu escrevi mais alguns, no sentido de completar o panorama. Por exemplo, a história do metalúrgico eu escrevi depois. Aliás é um pouco a minha história, pois eu fui metalúrgico no começo dos anos 1960. Fui preso em uma assembleia de greve do sindicato, em que um cara me acusou de ser judeu. O cara fez um discurso antissemita e eu me levantei e o cara do Dops estava lá. Na saída, ele me levou. O resto do conto é inventado. Achei que precisava de uma história assim, senão ficava faltando esse lado dos dirigentes sindicais e tal. Se bem que, fechado o livro, achei que talvez ele desse uma ideia menos brutal de como eram as coisas na época.

 BrasileirosO episódio da Iluminata (Sobre a Natureza do Homem) é bem brutal e é logo no começo do livro. Assim como o conto do título. O livro impressiona. Você continua a escrever contos com esse tema?

B.K. – Não muito, eu estou fazendo uma coisa meio experimental. Outro dia, resolvi mimetizar escritores célebres. Então, peguei aquele conto Missa do Galo de Machado de Assis e escrevi um conto que começa do mesmo jeito, com a mesma frase, e depois não tem nada a ver, mas tem aquela mesma atmosfera. Depois, resolvi fazer um imitando um conto do Tchekhov que se chama O Acontecimento, e escrevi outro que imita Mrs Dalloway (romance de Virginia Woolf). Estou um pouco fascinado com essa coisa da arte de escrever e explorando o meu próprio limite. Duas semanas atrás, resolvi escrever uns contos eróticos, um gênero que para mim é difícil, pois sou meio pudico. Aí, escrevi três histórias de sexo e ficaram boas. Uma delas ficou muito boa, aliás.

 BrasileirosSeu estilo é muito direto e preciso, feito de frases curtas, cortantes. Você diria que ele vem do Jornalismo, de um gosto pessoal, de alguma influência…

B.K. – Bom, é uma coisa que estou ainda procurando. No Jornalismo, eu já prezava uma escrita bonita, sempre muito clara. A Veja estimulava isso, de recuperar um português bonito, sem chavões, mas na época do Opinião e do Movimento eu já sofri uma regressão, porque a gente tinha de escrever feio, pesado, para derrubar o censor. Se você pegar as matérias daquela época, vai ver como eram pernósticas, acadêmicas.

 BrasileirosPara derrubar o censor como?

B.K. – Ah, cansar ele com prolegômenos, com um nariz de cera enorme, com certa chatice. Quando eu passo para a literatura, volto a buscar a linguagem mais bonita. Por outro lado, tenho consciência de que literatura não pode ser pedagógica, didática, ter um objetivo de denúncia, nada disso. Ela tem toda a ambiguidade que o ser humano tem. Eu rompi com o Jornalismo, parei de escrever qualquer coisa que não seja ficção. Agora quero enriquecer meu vocabulário. Sinto que muito dos escritores brasileiros atuais têm, como eu, um vocabulário limitado.

 BrasileirosVocê lê literatura contem­porânea?

B.K. – Depois que virei escritor, passei a ler todos eles. Acho O Filho Eterno, do Cristovão Tezza muito bom; li uma gaúcha que eu não lembro o nome (Ana Mariano), o livro é Atado de Ervas, uma saga de uma família em uma fazenda, muito bem escrito; li um que achei sensacional, o Poltrona 27, não lembro o nome do cara (Carlos Herculano Lopes). Ele viajava de Belo Horizonte para o sítio dele sempre na poltrona 27 e vai descrevendo as viagens. Literatura é linguagem, não é o tema. Eu leio muito Mia Couto, acho que li todos os livros dele. Os portugueses, acho que são superiores a nós nessa questão da linguagem. Aquele Pepetela eu li, do próprio Saramago, que é um chato, eu li alguns livros.

 BrasileirosDepois de tanto tempo como jornalista, inclusive com vários livros publicados (o livro Jornalismo Econômico, publicado pela Edusp, ganhou o Jabuti em 1997), como afinal se tornou escritor de ficção?

B.K. – Olha, o caminho é o seguinte: acho que não começou com esse tema da repressão, mas com meu desejo de virar escritor, um desejo que veio realmente por acaso. Eu queria escrever alguma coisa sobre a USP, as malandragens, a decadência, o burocratismo, a mediocridade… E aí, em uma viagem de Israel para o Brasil eu estava lendo uma escritora israelense de histórias policiais, e o método dela é assim: ela mergulha em um determinado universo e faz quase que uma sociologia daquilo, o crime é só um pretexto – no caso desse livro é o assassinato em um kibutz.

 BrasileirosQual o nome dela?

B.K. – Batya Gur. Já morreu. Esse foi o segundo livro dela que li. O primeiro era sobre um assassinato no departamento de psiquiatria da universidade de Jerusalém, muito bom também. Eu falei: “Pô, vou contar essa história na USP na forma de uma novela policial”. Para que fazer uma coisa acadêmica, com nota de rodapé, referência, rigor científico? Eu faço a novela, invento, postulo a vítima, crio quatro suspeitos e cada suspeito vai me servir para eu tratar de um problema: o problema da apropriação do trabalho alheio, o problema da opressão da mulher, o problema da burocracia, sabe? Eu fiz um esqueminha e comecei a escrever.

 BrasileirosSó para contextualizar, isso foi logo que você se aposentou como professor?

B.K. – É, também coincidiu com essas coisas. Me aposentaram violentamente, pela compulsória, eu tinha saído do governo Lula, então foi um momento de vazio mesmo. O livro saiu fácil, sentei a bunda na cadeira e em quatro semanas estava pronto. Depois mexi e tal, mas a partir dessa experiência comecei a escrever uns contos também. Os primeiros contos eram sobre o meu pai, por isso acho que a gênese do K. está aí, e eram contos engraçados, porque ele era muito engraçado.

O jovem Bernardo com amigos
O jovem Bernardo com amigos

 BrasileirosEle andando pela Zona Norte com a charrete, essas coisas? (Na capa deste caderno há a imagem da carta de habilitação de condutor de charrete do pai.)

B.K. – Sim, e também histórias sobre os meus primos, sobre o irmão do meu pai que era trotskista e acabou indo com a família para Israel morar num kibutz, o que é engraçado, porque meu pai era sionista e nunca foi para lá. E nessas, acabei escrevendo o monólogo da amante do torturador (que corresponde ao capítulo “Paixão, compaixão”, em K.). Saiu assim direto. Eu tinha vagamente no fundo da minha psique uma ideia de um livro, em que o sujeito escreve sobre a tragédia ao mesmo tempo que se sente culpado por fazer da tragédia uma inspiração para ele se fazer de bacana, entende? Uma coisa bem judaica de culpa. É a culpa de ter sobrevivido em vez do outro. E ele procura alguma evidência da culpa, mas na verdade a culpa existe sem evidência, é só a culpa de ter sobrevivido. Quando eu estava no governo, vendo aqueles milicos todos ali, entrando e saindo, aquela coisa toda, aquela máquina de Estado, a mesma de sempre, eu falei: “Porra, eu tô aqui e eles não fazem nada a respeito da minha irmã?”. Comecei a sentir um certo mal-estar. Pequeno no começo, mas as coisas foram se juntando. Quando K. começa a assumir forma, nasce como se já estivesse pronto. Como uma criança que você gestou, só abre as pernas e dá à luz. O K. nasceu do ventre.

 BrasileirosVocê estava na Inglaterra quando a Ana Rosa desapareceu?

B.K. – Eu estava lá. Trabalhava na BBC e era correspondente para a Gazeta Mercantil e o Opinião. Meu pai aparece um dia, dizendo que não tem notícias dela já faz um mês e aí eu volto para o Brasil. Foi um período difícil, esses primeiros meses, o período da busca, o pessoal da Gazeta Mercantil me deu muito apoio na época, mas hoje em retrospecto acho que foi um período mais curto do que eu pensava. Meu pai sofreu muito, foi um cataclismo para ele, só pensava nisso, só escrevia sobre isso, escrevia cartas para todo mundo, artigos de jornal. No fim, acho que ele teria vivido um pouco mais se não fosse isso, ele sofreu muito. (O pai morreu em 1976, de apoplexia.) Também tenho um irmão em Israel que sofreu muito porque ele nem conhecia minha irmã. Ele era cinco anos mais velho que eu, então talvez ele tivesse um sentimento duplo também, não digo de culpa, mas ele se empenhou muito em ajudar.

Até hoje não se sabe o destino da irmã do autor
Até hoje não se sabe o destino da irmã do autor

BrasileirosVocê sabia do envolvimento dela na luta armada?

B.K. – Não, essa é uma parte que tem até uma certa ironia trágica, porque ela chegou a me advertir que eu precisava tomar cuidado com o que eu fazia, que o SNI (Serviço Nacional de Informações) estava de olho em mim por conta de uma reportagem sobre medicamentos proibidos, não sei. Só que no fim eu que tinha de advertir a ela e não ela a mim, isso foi uma coisa que me desarmou. Em uma das vezes que vim ao Brasil, acho que foi quando fui fazer um filme para a BBC na Amazônia, eu senti uma tensão, sabe? No momento em que ela se despediu de mim, saiu meio correndo, sabe? Eu sabia que o marido estava envolvido em política. Mas não sabia o grau de envolvimento e muito menos o dela.

 BrasileirosEntão você sabia do casamento? Pelo romance, o casamento tinha sido clandestino.

B.K. – Soube do casamento, em certo momento ela me falou. O Wilson foi o meu colega na Física, nós tínhamos uma afinidade política, ideológica. Uma vez, ele me pediu para ajudar a roubar uns mimeógrafos, isso foi o mais forte que fiz com ele. Na época, encarei isso como uma disputa entre grêmios. Mas talvez já fosse coisa da ALN (Ação Libertadora Nacional).

 BrasileirosÉ mais fácil trabalhar a busca da sua irmã numa obra de ficção do que numa obra que seja puramente factual?

B.K. – Essa pergunta nunca ninguém fez, e suscita uma nova reflexão. Mesmo depois que eu escrevi K., pensei que devia escrever a história dessa busca como reportagem investigativa. E mesmo me meter na investigação de novo (muitas das investigações do pai em K., na verdade, foram feitas pelo próprio Bernardo). Mas, não sei, alguma coisa me impede de fazer isso, entende? Então,  acho que K., em certo sentido, realmente é uma solução para esse impedimento.


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