A tempestade criativa de um animador

O 18º Festival Internacional de animação do Brasil, o Anima Mundi, acabou no último domingo em São Paulo, com sucesso de público e de crítica. O mesmo havia acontecido no Rio de Janeiro, de 16 a 25 de julho. O Brasil, de uns anos para cá, vem se transformando em um celeiro de profissionais talentosos, a maioria jovens, que trabalha com animação. Com várias técnicas, tanto para o mercado internacional, que é a principal demanda, como para o mercado interno, que ainda carece de investimento e de público, eles estão aparecendo cada vez mais. Muitos desses jovens trabalham com publicidade, mas alguns, como é o caso do diretor César Cabral, se aventuram em fazer animação de curta (fazer longa de animação no Brasil ainda é um horizonte difuso, com pouca visibilidade).Formado em Cinema pela ECA/USP, Cabral já tem no currículo dois curtas que foram muito premiados e festejados, tanto pelo público quanto pela crítica. O segundo, Tempestade, lhe conferiu o merecido prêmio de curta nacional no Festival de Paulínia que aconteceu agora em julho. A ideia do curta nasceu de uma música dos Beatles, Eleanor Rigby, mas o diretor se utilizou de outras referências, como a luz e a cor das obras do pintor romântico inglês, William Turner (1775-1851). O primeiro curta de Cabral, Dossiê Rê Bordosa, realizado em 2007, o tornou conhecido no meio cinematográfico e lhe conferiu reputação. Apesar de fazer animação, que a princípio parece coisa de criança, os filmes do diretor são destinados ao público adulto, pois ele desenvolve seus temas de forma sombria e séria. Mas isso não exclui as crianças de apreciarem as imagens dos seus curtas. Em conversa no Festival de Paulínia, Cabral falou sobre sua carreira, seus filmes e o mercado de animação no Brasil. Confira os principais trechos abaixo.Brasileiros – Por que você decidiu fazer cinema e, especificamente, cinema de animação?César Cabral – Falando um pouco da minha história: sou formado em cinema, pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP (Universidade de São Paulo). Na faculdade, a gente tinha de optar, no final do curso, por uma especialidade a seguir dentro do cinema. Eu optei por som e animação. No final, fiz um curta, que era um exercício de filmagem, em animação Stop Motion, animação com bonecos de massinha. De lá pra cá, comecei a trabalhar muito com animação Shplush. [nggallery id=14219] Brasileiros – O que é Shplush?C.C. – É uma animação feita com os personagens do cartunista Laerte. Na verdade, estou muito envolvido com quadrinhos. Sempre fui muito envolvido com isso. Lia muito, gostava de desenhar. Então, na faculdade fiz esse curta, que era um exercício. Tinha uns três ou quatro minutos de duração, mais ou menos. Na sequência, comecei a trabalhar muito em publicidade, fazendo coisas sempre voltadas para animação. Em 2007, ganhei um edital para fazer um curta, que foi o Dossiê Rê Bordosa, uma animação baseada nas tirinhas de Angeli. Agora estou com o filme Tempestade, animação com roteiro original.Trailer de Dossiê Rê BordosaBrasileiros – Li que o filme se baseava em uma canção dos Beatles, Eleanor RigbyC.C. – Na verdade, é o seguinte: eu ganhei um prêmio da Cultura Inglesa. Para inscrever um projeto, era preciso que o roteiro fosse inspirado em uma obra inglesa. Realmente, foi ouvindo uma música dos Beatles que pensei na história do curta. A música fala de solidão, de pessoas sozinhas, ali no seu dia a dia. O filme é uma inspiração. O filme que se transformou em Tempestade não tem nada a ver com a letra da música. Acho que tem a ver com a temática, que é solidão. A história é um marinheiro no meio de uma tempestade. A princípio, a vida dele está sob controle. Ele vai em direção da amada. É uma história de amor, melhor dizendo, de amor platônico. No meio do caminho, as coisas começam a mudar. Ele começa a perder o rumo, começa a tentar achar (o caminho), começa a desconfiar da própria lucidez. Eu trabalhei muito com a questão simbólica e com a plasticidade do filme. É adulto, no sentido do pictórico das imagens. Quando a gente fala massinha, não são bonecos de massinha fofinhos. São bonecos mais sérios, com características bem humanas, com roupas, texturas de roupas humanas. Eu tentei ressaltar ao máximo essa condição da animação Stop Motion, de construir o mar com celofanes, com tubos que simulassem água, etc. Mas, na verdade, tudo tem a cara de animação Stop Motion, que é físico. Talvez pensando um pouco mais agora, é uma coisa de propósito, artesanal, que o Stop Motion tem. O filme busca muito isso, não ser computador.Brasileiros – A questão da solidão é muito contemporânea. Além da solidão, quais são as suas buscas ao fazer cinema de animação?C.C. – Cada filme tem uma temática que sobressai. O que eu busco ou, pelo menos, o que tenho tentado fazer ultimamente é desenvolver, a partir da animação, algumas coisas que me interessam. Acho que no Dossiê Rê Bordosa trabalhei um pouco com a linguagem do documental no universo da animação, que teoricamente é onde mais permite você experimentar e viajar em um roteiro. Esse meu filme tem uma estrutura documental. Peguei uma câmera e entrevistei as pessoas. E dessas entrevistas reais, eu construí uma história de animação. Claro que não é só documentário, pois eu misturo com ficção. A gente ficcionou uma parte. Fora essa construção do roteiro, a gente usou adaptações das tirinhas do Angeli. Em Tempestade, a busca que tive era realmente experimentar a linguagem narrativa. Ter um desafio inicial, que era contar uma história sem diálogos. Contei essa história com imagens. É uma história densa, que fala de amor, de solidão, de uma pessoa perdida em alto-mar. Talvez essa tenha sido a grande busca. Junto a isso, trabalhei a parte estética. Fora a referência da música dos Beatles, tive outra referência que foi a obra de William Turner (pintor romântico inglês, um dos precursores do Impressionismo). Não que eu ache que meu filme se transformou na imagem ou nos quadros do Turner. Ele serviu para a gente buscar essa coisa da textura, da luz. Dessa narrativa que tem nos quadros do pintor inglês. Achei que podia experimentar em cima disso no meu filme. Foi o grande desafio.Brasileiros – A luz que William Turner imprimia em suas telas servia, na maioria das vezes, para tirar a nitidez das coisas…C.C. – É uma forma de você ver. O que eu vi no trabalho dele, essa interpretação da luz e da cor, foi uma forma de expressão interna, interior. Tanto é que ele antecipa, por exemplo, os impressionistas, o Impressionismo, que viria, sei lá, 50 anos depois. Ele é um pintor romântico por volta de 1830/40, que foi o auge de sua pintura, antecipou o que viria no final do século XIX, que foi o Impressionismo. Mas tem essa leitura também que você falou, porque essa de deixar as coisas mais difusas, talvez, fosse mostrar mais a parte interior das pessoas, uma visão interior. Em Turner, a visão não é realista. Nesse sentido, acho que a gente conseguiu imprimir no filme Tempestade.Brasileiros – Por que no Brasil temos ainda poucos longas de animação?C.C. – Acho que o principal fator seja por causa da questão da produção em si do cinema nacional. Fazer animação não é barato. Sempre é muito caro, muito demorado, tem de ter uma equipe muito grande. Mesmo se você pensar um estúdio com todo suporte, como, por exemplo, uma produção hollywoodiana, leva três anos para se fazer um filme, em média. E custa, sei lá, em torno de US$ 50 milhões ou até mais. Fazer um filme de longa, mesmo de animação, é viver o reflexo do cinema brasileiro.Brasileiros – Tem a questão de não existir um mercado formado de animação…C.C. – Exatamente. Não existe um mercado formado de animação em que as pessoas trabalhem e vivam disso.Brasileiros – Vi recentemente uma matéria na televisão, por conta do Festival Anima Mundi, que mostrou que o mercado de trabalho do profissional de animação está aquecido. Muitos jovens estão sendo contratados e ganhando bem, por empresas do ramo de animação. Mas essa produção é para o mercado externo…C.C. – A maioria produz para fora. Mas o mercado interno, que está se consolidando, começa a aparecer mais. Sei que a gente está engatinhando ainda. Nos últimos anos, houve uma demanda por parte do governo, que injetou um suporte financeiro para produzir animação, que foi o Anima TV. Isso permitiu o investimento em pilotos e até em projetos em série. Acho que isso é de fundamental importância para consolidar a demanda de animação. Mas a demanda do longa de animação ainda é uma questão, como falei antes, do cinema nacional.Brasileiros – Como foi a participação do filme Tempestade no Anima Mundi, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Esperava o prêmio do público?C.C. – Foi muito legal. Muita gente, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, veio falar comigo no final das exibições de Tempestade. Não esperava prêmio, pois o público do Anima Mundi vota mais em animações com tom de comédia, e meu filme é tratado de forma mais séria. Mas valeu mesmo assim, pois é muito gratificante poder exibir seu filme de animação para o público acolhedor e atento, como acontece no Anima Mundi.

Doutrina e liberdade


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