No prefácio que escreveu para Lira Paulistana: Um Delírio de Porão, o jornalista e geógrafo Mouzar Benedito cita Che Guevara. “Quando o extraordinário se torna cotidiano, é a revolução”. Frase sob medida para descrever aquele porão situado na Rua Teodoro Sampaio, 1.091, na zona oeste de São Paulo que, a partir de 1979, tornou-se o olho do furacão que varreu a cultura nacional nos estertores da ditadura. Riba de Castro, cearense radicado na Espanha, um dos sócios do Lira, começou a pensar no livro em 2003, com a morte de Itamar Assumpção, o principal nome surgido daquele porão. Sentiu necessidade de preservar aquele momento. Dono de um respeitável acervo, reuniu tanto material que, antes de o livro se materializar, dirigiu um filme, Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista, lançado há dois anos.
O teatro foi inaugurado, em outubro de 1979, com uma peça, claro. Fogo Paulista, criação coletiva dirigida por Mario Masetti, que batizou o local, inspirado em Mário de Andrade. Os donos do porão eram Waldir Galeano, que logo se mudaria para Ilhabela, e Wilson Souto Jr., o Gordo, músico, ex-estudante de Engenharia, considerado a espinha dorsal do empreendimento. Ocorre que o bairro de Pinheiros, mais precisamente a Vila Madalena, a meio caminho da USP e do centro da cidade, estava se tornando uma espécie de Greenwich Village, um quartier latin paulistano, cheio de produtoras de cinema, escritórios de arquitetos, publicitários, artistas plásticos, músicos, atores, intelectuais tipinhos de todas as galáxias pontificando em cada barzinho. O Lira, que já havia atraído outros sócios como o estudante de filosofia Chico Pardal e o engenheiro Plínio Chaves, que se revezavam como iluminadores, bilheteiros, contra regra e o que pintasse, começou a apresentar e ser procurado para shows musicais. Tornou-se tão importante que o prêmio mais cobiçado do Festival de Música da Vila Madalena, realizado em agosto de 1980, era uma temporada em seu palco.
Itamar Assumpção não venceu o festival. Foi o terceiro colocado. Mas as suas apresentações no Lira viraram a cabeça dos sócios que resolveram gravar um disco com ele. Havia toda uma resistência das gravadoras contra o Feito em Casa, disco independente de Antonio Adolfo, ao movimento punk, em escala mundial, e sua filosofia do it yourself. Surge assim o selo Lira Paulistana Gravadora e Editora, cujo disco no 001 é o Beleléu, leléu, eu de Itamar. Na sequência, vieram Tiago Araripe, Premê (então Premeditando o Breque), Língua de Trapo e os dois discos do Rumo, que já estavam prontos e embarcaram no selo, e muitos outros. Arrigo Barnabé já havia lançado o seu Clara Crocodilo, mais independente ainda, e sempre foi uma figura distante do Lira. Mas, como se pode notar, a tal vanguarda paulista era em sua origem um movimento de produção independente, de acordo com o espírito rebelde daqueles tempos.
Bem na época do lançamento do Beleléu, Riba de Castro juntou-se ao grupo ao aparecer com uma cópia do filme O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade, que queria exibir. Há meses fora das salas de cinema, o trabalho foi exibido no Lira na semana em que ganhou a medalha de ouro no Festival Internacional de Cinema de Moscou, provocando uma corrida. Ou seja, as filas para os filmes começaram a rivalizar com a multidão que frequentava os shows – ou melhor, multidinha, já que no Lira não cabiam nem 150 pessoas. Com Riba, que tinha inúmeras ideias plásticas, da diagramação de cartazes à cenografia dos shows, chegou também Fernando Alexandre, o Fernandão, editor do jornal Gazeta de Pinheiros, que tinha o sonho de criar um jornal informativo de cultura, nos moldes do Pariscope francês e do Time Out inglês.
A agitação fez com que o Lira se estendesse para um sobrado do outro lado da rua, no número 42, na Praça Benedito Calixto, onde o Centro de Artes, Gravadora e Editora Lira Paulistana era vizinho da Associação de Feministas, do Olhar Eletrônico (de onde sairiam Marcelo Machado, Fernando Meirelles e Marcelo Tas), do espaço de ensaios do grupo Rumo, de um núcleo do recém-criado PT e do badalado Bar Macondo. Sem contar que aos sábados havia a feirinha!
E o Lira continuou se expandindo. A começar pelo muro, ao lado da entrada do teatro, que seria transformado em um disputado mural, inaugurado por Riba de Castro, seguido por Edith Derdyk, Carlos Matuck, Ricardo Seyssel, entre outros artistas. Na qualidade de carro chefe da vanguarda paulista, seus artistas mereceram um especial de fim de ano em 1981 na Rede Bandeirantes. Intitulado Vertigem, o espetáculo teve direção artística do maestro Júlio Medaglia e contou com apresentações de Itamar, Arrigo, Premê e Rumo.
Sem perder o pique, no ano seguinte, no aniversário de São Paulo, 25 de janeiro, o Lira ocupou a Benedito Calixto e, em 1983, a Avenida Paulista. Mas tal euforia escondia o começo do fim. Aquele porão não comportava mais o público dos artistas ligados ao Lira. Itamar já caíra fora depois de Vertigem; o Gordo afastou-se da direção e foi trabalhar na Continental, chefiando o selo Lira-Continental que lançou títulos importantes; o jornal Lira Paulistana durou 12 números, 12 semanas apenas, mas que dariam origem a publicações como a Vejinha; a editora publicou o primeiro livro de Glauco, Minorias, mas fechou antes de publicar o seguinte, que seria de Laerte. A agonia durou até 1986, sem perder a agitação. Grupos do nascente BRock, como Titãs do Iê-Iê-Iê, futuros Titãs, Ultraje a Rigor, Ira! e Capital Inicial, deram seus primeiros passos ali no Lira. Cólera, Inocentes, Mercenárias e Ratos do Porão, os primeiros urros.
Ribamar registra toda essa trajetória com emoção e apuro visual nas 200 páginas de seu livro (custa só R$ 20). Eu mesmo participei dessa história como colega de faculdade do Gordo, guitarrista da banda Isca de Polícia, de Itamar, amigo da turma. Éramos reis. Eu me lembro de entrar em bares lotados e lá do fundo Fernandão gritava: “E aí, Chagas? Conhece algum guitarrista bom?”. Respondia no mesmo volume: “Não, só filho da (*)!”. Eu me emociono ao ver todos os dias em algum roteiro o convite para um show de alguém daquela época. Ou do filho de alguém. Há certa coerência, como se a história nos fizesse justiça. Outro dia, às vésperas de um show do Isca, ainda na ativa, meu celular vibrou em plena madrugada. Fui ver e era um WhatsApp do Fernandão, que hoje mora em Florianópolis, dizendo: “E aí, Chagas? Conhece algum guitarrista bom?”. Há 33 anos ouço isso e ainda acho graça.
Por falar nisso, acabo de saber que o Premê original vai se reunir!
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