A USP é caso de polícia?

A morte do estudante Felipe Ramos de Paiva, de 24 anos, na noite de 18 de maio no campus da USP, em São Paulo, expôs muito mais do que a vulnerabilidade de quem frequenta a Cidade Universitária, o enorme espaço de quase 4,5 milhões de metros quadrados que abriga hoje 15 faculdades e 14 institutos, dispersos entre quilômetros de asfalto e várzeas arborizadas, desertas e mal iluminadas.

Perseguido por um assaltante, a poucos metros de alcançar seu carro blindado, Felipe foi assassinado com um disparo fulminante em frente ao estacionamento da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA-USP), onde cursava o 5o ano de Ciências Atuariais. O latrocínio chocou a comunidade acadêmica e escancarou a fragilidade da Guarda Universitária, grupo desarmado, responsável pela segurança patrimonial do campus. Estudantes ouvidos nesta reportagem relataram delitos graves, como assaltos, estupros e sequestros relâmpagos. O paliativo contra o medo foi a criação de um polêmico convênio entre a universidade e a PM de São Paulo, defendido pelo reitor, João Grandino Rodas, e o governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, como “a escolha da maioria dos alunos”, que sequer foram ouvidos em sua totalidade (um universo de quase 90 mil alunos). Implantado em maio, o convênio com a PM foi mantido ao longo de cinco meses, em que a “sensação de segurança” foi acentuada, como defendeu o reitor Rodas, em entrevista exclusiva à Brasileiros. Uma aparente calmaria colocada em cheque com o flagrante policial de três alunos da Faculdade de História fumando maconha dentro do campus, ação que teve como reação imediata a articulação de um diminuto grupo de estudantes e militantes de partidos e facções de esquerda, como o PCO (Partido da Causa Operária) e o MNN – Movimento Negação da Negação (leia entrevista na página 98), contrários à abordagem policial e à condução dos colegas ao 91o DP para assinarem termo circunstanciado (que prevê penas alternativas a usuários de drogas leves, como a maconha).

A “averiguação de rotina” foi o estopim de uma crescente celeuma que culminou na ocupação da reitoria, retomada na madrugada de 8 de novembro, após sete longos dias de assembleias e negociações. A desocupação partiu da ordem judicial de reintegração de posse, consumada com o apoio de 400 homens da Tropa de Choque, ônibus, helicópteros, cães e bombas de gás lacrimogêneo. A ação teve início às 5h30 do dia 8 de novembro e resultou na prisão de 73 pessoas, 19 delas “mercenários sem vínculo algum com a universidade”, como enfatizou Rodas. Contrariando a ação “pacífica”, como definiu o reitor, alunos ouvidos nesta reportagem relataram excessos no CRUSP (o conjunto residencial de estudantes da USP), como a explosão de bombas de gás. Fato é, que com a chegada da Tropa de Choque, as manifestações contra a presença da PM recrudesceram e assembleias reunindo de 2 a 4 mil alunos foram realizadas. Já na primeira delas, em 1o de novembro, o dia da ocupação da reitoria, cerca de 2 mil alunos decretaram uma greve geral, como estratégia de pressão e, além de pleitear o fim do convênio com a PM, passaram a exigir a saída imediata de Rodas, acusado de ser repressor, antidemocrático e protagonizar uma gestão ilegítima. Acusações que ganharam corpo no inquérito civil no qual ele é alvo de investigação do Ministério Público Estadual (leia mais na entrevista a seguir). Além da investigação civil que corre em sigilo, em um outro expediente previsto em lei, mas com sabor de derrota para muitos, Rodas foi nomeado em 2009, indiretamente, pelo ex-governador José Serra, contrariando dois terços da comunidade acadêmica, que não o queriam no cargo.

Segundo suas lideranças, o Fora Rodas! e o Fora PM! agrega hoje 25 mil estudantes, entre militantes e apoiadores. Números incertos de manifestações que no calor da situação foram jocosamente interpretadas por veículos de imprensa, como a revista Veja, que definiu o episódio como “A Rebelião dos Mimados”, em artigo de Marcelo Sperandio. Nele, questões amplas e carentes de investigações são reduzidas à mera “bagunça e pirraça”. Veja ainda conclui sua “análise” recomendando que pais e mães aplicassem “castigos” em seus rebentos, classificados por ele de “filhinhos de papais”. Aqui, vale lembrar: uma pesquisa feita em 2009 pela FUVEST atesta que 75% dos estudantes que pretendem ingressar na USP têm uma renda familiar de R$ 7.440,00, orçamento mensal que não confere ao herdeiro de um núcleo minimamente formado por três pessoas o nobre status de “filhinho de papai”. A análise da Veja não é um fato isolado, é a ponta de um nefasto iceberg submerso em papel, em redes sociais e em campos de comentários de notícias virtuais. Um submundo da chamada opinião pública que se tornou refúgio de “cidadãos” armados de argumentos rancorosos contra tudo e todos. Reação que só contribui para desviar o foco de questões emergenciais, dispersas em cortinas de fumaça como a da “maconha” e a suposta vida fácil dos alunos. Os mesmos julgamentos rasos estampados em cartazes afixados por skinheads em alguns postes da USP, em que advertem que, se os alunos não querem a PM no campus, serão eles que farão a caça aos maconheiros. Outro cartaz atribuído ao grupo, foi mais além, apropriou-se da famosa foto que delatou a morte covarde do jornalista Vladimir Herzog em 1975, associada à frase sarcástica e desprezível: “Suicídio, triste, né?!”.

Remelentos & Mafaldinhas ou desobediência civil?

Nos dias que sucederam a ocupação, uma das acusações mais recorrentes foi a de que, ao supostamente defender a liberdade de fumar maconha no campus, o movimento estudantil banalizou seu conteúdo político. O próprio reitor da USP defende que o espírito contestador é indispensável para a manutenção da democracia: “O vigor e o idealismo da juventude são essenciais para um país…”. Mas o discurso de Rodas logo ganhou remendo em defesa própria: “É inadmissível, porém, a tentativa de impor ideologia, por meio do uso da força”. Ironicamente, a demonstração de força de Rodas ao concordar com a presença da Tropa de Choque foi o episódio que mais repercutiu negativamente em setores progressistas da sociedade. Embora amparado pela Constituição de 1988, o gesto de Rodas feriu o consenso de que universidades são territórios livres. Uma cultura de respeito, marcada por episódios emblemáticos, como quando o campus da PUC (Pontifícia Universidade Católica), em São Paulo, foi violentamente invadido, em 1977, pelas tropas do temido general Erasmo Dias.

O ano de 1977 também foi marcado por uma série de protestos estudantis que somaram força de resistência com os movimentos embrionários da luta sindical no ABC paulista e essas duas frentes foram determinantes para acelerar o processo de abertura política. O hoje vereador de São Paulo pelo PT, José Américo, foi vice-presidente do CA Lupe Cotrim, da ECA, o centro acadêmico da Escola de Comunicação e Artes da USP. Américo formou-se jornalista em 1977, pela ECA, e foi um dos braços fortes da Libelu (Liberdade e Luta), que ajudou a ressuscitar o movimento estudantil, depois do quase extermínio imposto pelo AI-5, que recrudesceu os poucos grupos em atividade – como o VAR-Palmares (Vanguarda Revolucionária Palmares), que teve como integrante a presidente Dilma Rousseff – e os levou à luta armada. Américo cursava o segundo ano, em 1974, quando soube da prisão de Luiz Carlos Moreira, aluno de teatro da EAD (Escola de Artes Dramáticas), seu amigo e presidente do CA. Moreira foi levado aos porões do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna e Arbitrariedade) e Américo decidiu liderar uma ocupação da reitoria ao lado de outros 79 alunos. Havia menos de um ano, a morte de Alexandre Vannucchi Leme chocou a comunidade uspiana. Vannucchi cursava o último ano de Geologia, tinha 22 anos e integrava a ALN (Aliança de Libertação Nacional). Desapareceu no campus da USP e foi encontrado morto, 24 horas depois, com a versão de que fora atropelado por um caminhão. Moreira não poderia ter o mesmo fim. O vereador compara o episódio com a recente ocupação e provoca: “Miguel Reale era um dos ideólogos do Regime, não era um Rodas qualquer. Havia acabado de cumprir sua gestão como reitor (na ocasião, o reitor era o doutor Orlando Marques de Paiva), conversou comigo e prometeu: ‘Seu colega está bem e vai sair amanhã, às 14 horas. Tem a minha palavra’. Dei um voto de confiança e abandonamos o prédio. Em nenhum momento fomos tratados como bandidos. Se o Reale estalasse os dedos, 500 soldados estariam lá’.”

A Rebelião dos Remelentos & Mafaldinhas (uma alusão à personagem de cartum, ícone da luta pela redemocratização na Argentina), como classificou o colunista Reinaldo Azevedo, encontrou um oponente sereno na figura do escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva. Marcelo engrossou a lista de articulistas que saíram em defesa dos estudantes e ajudou a equilibrar a balança de um tribunal sedento por punições. Em entrevista à Brasileiros, ele questionou a cobertura feita por parte da imprensa: “É evidente que a imprensa ficou em cima do fato de três estudantes terem sido presos com maconha e sequer questionou temas urgentes, como as posições do polêmico reitor, o papel da polícia e desse Estado repressor”. A exemplo do escritor Luiz Carlos Maciel, que viu na ocupação da reitoria um “gesto de desobediência civil” (leia entrevista na página 97), Marcelo considera que os episódios recentes vão resultar em interpretações mais amplas dos graves problemas da USP: “Todo homem é um ser político e esta geração tem suas pautas. As universidades devem servir como laboratórios de novas experiências sociais”.

Até o fechamento desta edição, o convênio da PM com a USP permanecia suspenso, cabendo aos policiais uma itinerância preventiva com o apoio de bases móveis. Os estudantes também mantinham a greve e, até 8 de dezembro, pretendiam colher 10 mil assinaturas para anular os inquéritos policiais abertos contra os 73 invasores da reitoria, acusados de depredação do patrimônio público, desobediência à ordem judicial e formação de quadrilha. No turbilhão de incertezas da USP em 2011, os aspirantes a “heróis da classe estudantil”, antes de partir para a luta, precisam provar que não é preciso ser marginal para ser herói.


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