Depois de duas semanas consecutivas dedicadas a canções irresistíveis de Orlandivo, Gil e Jorge Ben, voltemos agora aos biscoitos finos da música instrumental produzida no Brasil dos anos 1960, período áureo de renovação, quando a sigla MPB nem sequer sonhava existir e a música popular moderna era rotulada, exatamente, de M.P.M., como atestam os álbuns A Hora e a Vez da M.P.M., do Rio 65 Trio, de Dom Salvador, e Flora é M.P.M., da cantora Flora Purim. A movimentação em busca do novo, pós-revolução da bossa, era caminho natural, perseguido por alguns dos artistas mais expressivos do País nesses dias em que álbuns ganhavam títulos como Nova Dimensão (saiba mais), do maestro Lyrio Panicalli, É Samba Novo (saiba mais), do baterista Edison Machado, A Nova Dimensão do Samba, de Wilson Simonal, Samba, Nova Geração, do violonista Geraldo Vespar, Novas Ideias, do quinteto Os Poligonais, e Novas Estruturas, a brilhante estreia solo do pianista Luiz Carlos Vinhas, tema de hoje em Quintessência!
Em 1958, assíduo nas jam-sessions vespertinas do Beco das Garrafas, Vinhas, que estudava piano clássico desde os 4 anos de idade, era considerado uma espécie de menino prodígio da cena instrumental carioca. Naquele mesmo ano, aos 17, deixou registrada a elegância de seu piano nas sessões de estúdio de O Barquinho, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli. Cinco anos mais tarde, em 1963, ao lado do maestro J.T. Meirelles (aliás, patrono dessa coluna entenda), Vinhas foi um dos responsáveis pela requintada sonoridade de Samba Esquema Novo (leia reportagem especial sobre os 50 anos do LP), a clássica estreia de Jorge Ben (ouça Chove Chuva e A Tamba, com arranjos do pianista). Também em 1963, ele foi parar nos Estados Unidos, liderando o Bossa Três, combo, criado por ele em 1961, que era composto por outros dois craques, o contrabaixista Tião Neto e o energético baterista Edison Machado – dupla que, aliás, também compunha a poderosa cozinha do Sexteto Bossa Rio, de Sergio Mendes (leia post sobre Você Ainda Não Ouviu Nada!).
De volta ao Brasil no ano seguinte, o Bossa Três trouxe na bagagem experiência de palco, de showbizz e reconhecimento do público e da crítica americana. A recepção foi tamanha que eles chegaram, inclusive, a se apresentar com Lennie Dale no Ed Sullivan Show, um dos mais populares programas de TV dos EUA. Contratado pelo empresário e produtor Sidney Frey, parceiro do Itamaraty na realização do célebre show da Bossa Nova realizado no Carnegie Hall em novembro 1962, o trio lançou no mercado americano, pelo selo Audio Fidelity, de Frey, seus dois primeiros álbuns: The Bossa Três e Os Bossa Três e Jo Basile, que contou com a participação do acordeonista francês. Além deles, o combo lançaria outra trinca de álbuns: Bossa Três e os Amigos (também lançado pela Audio Fidelity é o último a contar com a formação original, acrescida de três convidados especiais, os saxofonistas Sonny Simmons e Cliff Jordan, e o flautista Prince Lasha); Os Reis do Ritmo e Bossa Três em Forma! (registros em que o trio passou a ser formado por Vinhas, o baixista Octavio Bailly Jr. e o baterista Ronald Mesquita – ouça Sambete n° 4, Silk Stop e veja também vídeo onde os três aparecem tocando em plena praia do Arpoador, em cena do filme Rio, Verão e Amor, de Watson Macedo).
Em 1964, relembrando o encontro com o coreógrafo que, depois, formaria o anárquico Dzi Croquetes, o Bossa Três gravou pelo selo Elenco (saiba mais), o álbum Um Show de Bossa: Lennie Dale com Os Bossa Três. O ano também seria marcado pela chegada ao mercado de uma verdadeira obra-prima, a estreia solo de Luiz Carlos Vinhas, Novas Estruturas, um dos primeiros títulos do lendário selo Forma, dos produtores Roberto Quartin e Wadih Gebara (saiba mais). O time de músicos reunidos para executar os arranjos escritos por J.T. Meirelles (que também toca flauta transversal) dá pistas do que há por vir: Octavio Bailly Jr., Zezinho e Luiz Marinho (contrabaixo), Edison Machado e Ronald Mesquita (bateria), Mauricio Einhorn (harmonica), Raul de Souza e os irmãos Edson e Edmundo Maciel (trombone), Paulo Moura, (sax alto), Pedro Paulo e Hamilton (trompete), Jorge Ferreira da Silva, (sax alto e flauta), Sandoval (sax tenor), Aurino (sax barítono e clarineta) e o grande maestro Waltel Branco (violão). O repertório de Novas Estruturas compila dez composições, entre elas Reza (Edu Lobo e Ruy Guerra), Primavera (Carlinhos Lyra e Vinicius), Mas, Que Nada! (Jorge Ben) e Batucada (curiosamente atribuída a Murilo A. Pessoa, mas, na verdade, Batucada Surgiu, de Marcos e Paulo Sérgio Valle). Há também dois temas de Mauricio Einhorn e Arnaldo Costa, Curta Metragem e Ad Vinhas, este último, claro, uma homenagem da dupla ao pianista, e o clássico Inútil Paisagem, do maestro Tom Jobim.
Apesar da excelência de Novas Estruturas, um primor desde a capa, reprodução de uma tela da artista Patricia Tattersfield, a carreira solo de Vinhas daria uma estagnada na segunda metade dos anos 1960. No final de 1965, ele fechou uma parceria que também mudaria os rumos do Bossa Três. O grupo passou a integrar os cantores Pery Ribeiro e Leny Andrade e ganhou novo nome, Gemini V. Com grande aceitação popular, o quinteto fez inúmeras apresentações no eixo Rio/São Paulo e gravou dois álbuns ao vivo, um deles no Brasil, Show na Boite Porão 73, outro, Gemini V en Mexico, em Guadalajara, onde o quinteto tocou regularmente e até residiu, ao longo de três anos. Em 1968, definitivamente de volta ao Brasil, depois de encerradas as atividades do Gemini V, Vinhas, enfim, lançou seu segundo disco solo, o delicioso e eclético O Som Psicodélico de LCV. Pouco depois, o pianista ajudou a criar a histórica boate Flag, onde foi músico residente e recebeu canjas de grandes artistas internacionais, como Liza Minelli e Sarah Vaughan. Em 1970, no clube, ele registrou o álbum Luiz Carlos Vinhas no Flag, que reproduz a atmosfera boêmia do local.
Entre as décadas de 1980 e 90, gravou outros quatro álbuns: Baila Com Vinhas (1982), O Piano Mágico de Luiz Carlos Vinhas (1985), Vinhas e Bossa Nova, Ao Vivo (1994) e Piano na Mangueira (1996), que reúne releituras instrumentais de sambas-enredos da escola verde-rosa, sua grande paixão. Músico requisitado, também deixou a marca inconfundível de seu piano em álbuns de grandes artistas, como Elis Regina, Tom Jobim, João Gilberto, Vinicius de Moraes e Maria Bethânia, entre outros.
Em 22 de agosto de 2001, aos 61 anos, Vinhas não resistiu às complicações de duas cirurgias plásticas realizados três dias antes e morreu, depois de passar 72 horas em coma – urgente, um dos procedimentos foi realizado para conter uma hérnia abdominal; o outro, de fins estéticos, extraiu rugas e reduziu a papada do pianista, que sempre prezou manter a fama de homem vaidoso e elegante. A propósito, veja encontro de Vinhas, Tião Neto, Ronald Mesquita (que hoje é galerista em Ipanema) e a cantora Joyce Moreno, interpretando Dindi, de Tom. O vídeo é um dos últimos registros de Luiz Carlos Vinhas, que partiu subitamente deixando atônitos e desconsolados fãs, amigos, a mulher, Madalena, e seu único filho, André.
Ouça a íntegra de Novas Estruturas.
Boas audições e até a próxima Quintessência!
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