Chegou a São Paulo, no último 15 de setembro, um conjunto de 123 obras raras de 52 artistas russos. Em uma linha cronológica bem montada, que retoma o período da grande efervescência da virada de século na pintura, a maior coleção da Vanguarda Russa já vista aqui ocupa, até o dia 15 de novembro, os três andares do histórico prédio do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no centro da cidade. Toda a coleção veio ao Brasil em julho, passou um mês em Brasília, outro no Rio de Janeiro e agora fica por dois meses na capital paulista. A grande mostra, orçada em mais de R$ 3 milhões, conta com a curadoria dos cubanos Rodolfo Athayde e Ania Rodríguez, além dos russos Yevgenia Petrova e Josephe Kiblitz, do Museu Estatal de São Petersburgo. É a primeira vez que se tem no Brasil um panorama da arte russa deste porte, com quadros de Marc Chagall, Vassily Kandinsky, Vladimir Tátlin, Alexander Rodchenko, Natalia Gontcharova e diversas pinturas, figurinos e porcelanas do grande símbolo da vanguarda, Kazimir Maliévitch, artistas que tiveram seu auge de produção durante as décadas de 1890 até o período de Stalin, nos anos 1930.
O ano de 1910 é considerado marco inicial desse momento de forte movimentação cultural na Rússia. No final de 1915, em São Petersburgo, ocorreu a 0,10 – Última Exposição Futurista e, nessa ocasião, surgiu a definição para o novo estilo de arte, o Suprematismo. Foi aí então, que foi exposto pela primeira vez fora do contexto para a qual foi criado, em 1913 – como parte da cenografia da ópera Vitória sobre o Sol, no teatro Luna Park, em São Petersburgo – o Quadrado Negro, obra de Maliévitch tida como o marco do fim do Figurativismo e o início de uma nova era, em que os artistas arriscavam ir além, com o desejo de uma arte que ultrapassasse a ousadia do Futurismo italiano, para sua época uma tendência absolutamente inovadora. O Suprematismo de Maliévitch, se resume como o defensor da pura sensibilidade na arte. O que se tem no CCBB é um panorama dessa evolução da representação até o Abstracionismo pleno da arte e as suas diversas tendências.
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Cuidadosamente organizada, a mostra do acervo do museu da cidade de São Petersburgo, capital da Rússia até 1918, que, após a Revolução Bolchevique, foi transferida para Moscou. A exposição caminha cronologicamente e tem seu fim no subsolo, com obras da transição para o político Realismo Socialista. O início se dá no terceiro andar, onde são apresentadas as obras da virada do século. Uma pequena pintura de Kandinsky, Igreja Vermelha, supostamente produzida entre os anos de 1901 e 1903, quase Impressionista, bem do princípio de sua carreira, representa o momento em que o Abstracionismo ainda se via longínquo. Logo em seguida, está uma das mais marcantes obras da mostra, a única de Marc Chagall, O Passeio, de 1914, com alusões figurativas, embora já envolta por uma atmosfera onírica, que rompia com os paradigmas da época.
Percorrendo um caminho de cima para baixo, no segundo andar está o ponto-chave da exposição, o momento de ruptura e construção de uma linguagem completamente radical e inovadora. Uma sala inteira reservada a Maliévitch, com seus três principais quadros, a chamada trilogia do Quadrado Negro, Círculo Negro e a Cruz Negra – recriada em 1923. O Quadrado representa o sol como ausência da luz, a ideia de quebrar cânones, conceitos puramente abstratos e racionais. “Ao colocar um quadrado negro sobre um fundo branco, o artista levou a pintura a uma simplicidade extrema, a um marco zero, e deu o pontapé para as artes Moderna e Contemporâ-nea. Com esses três quadros, Maliévitch esboça, pela primeira vez, a arte conceitual e questiona o que será da pintura a partir dali”, explica o curador cubano, Rodolfo Athayde, que viveu por seis anos na Rússia e hoje mora no Rio de Janeiro.
Além dos já familiares e consagrados nomes da arte russa, a mostra apresenta boas surpresas, como as obras de Pavel Filonov, que morreu nas trevas do desconhecimento e só agora começa a ser valorizado pelo Ocidente. “Pela primeira vez no Brasil, as suas obras minimamente detalhadas, que formam perspectivas impressionantes de caleidoscópios”, explica Athayde.
O epílogo, tanto da exposição como da Vanguarda, está no subsolo. Ali, já despontam os primeiros sinais do caráter explicitamente social da arte russa. O chamado Realismo Socialista foi um marco na produção artística local, pois somente os artistas que produzissem obras engajadas em um discurso de defesa do ideal político de então eram livres para criar. Foi um momento de homogeneízação da arte russa e de abundância na produção dos históricos cartazes de propaganda política soviética. Conhecidos como símbolos da arte russa socialista, alguns desses exemplares ocupam o último piso da mostra, além de algumas pinturas com o aspecto social realista preponderante: camponeses e trabalhadores, o rosto feliz e a consagração do trabalhador. Este é o ponto da exposição em que se mostra a força da Vanguarda e o enfraquecimento dela, é o fim de uma vida.
Naquele momento de transição e mesmo posteriormente, a linguagem gráfica dos cartazes baseou-se no Abstracionismo e teve como influência, apesar da censura, as formas concretas da Vanguarda. Apesar de serem nítidas essas referências concretistas na arte engajada – muito do que foi produzido no momento anterior à Stalin ficou apagado e escondido nos porões do regime stalinista, desconhecidos para a sociedade russa e também para o resto do mundo até 1985, com o início da Perestroika. “De certa forma, o que ficou a partir de 1930 foi uma negação profunda de tudo o que a Vanguarda criou. Durante quase 60 anos, o povo russo não teve conhecimento desta arte. A não ser Chagall e Kandinsky, que tinham imigrado para Europa. Hoje, na Rússia, Maliévitch está em toda e qualquer referência de arte popular, até mesmo nos souvenirs que se levam como recordação de viagem, é um dos grandes símbolos russos”, analisa Athayde.
Apesar das diferenças de conceitos abstratos entre Kandisnky, Maliévitch e Filonov, os três mantiveram uma forte amizade. Todos abraçavam a vontade de rompimento, independentemente das diferenças tênues na essência do Abstracionismo de um ou de outro e suas escolhas de linguagens e formas.
No início da revolução de 1917, todos os artistas, de modo geral, foram bastante receptivos com as mudanças, entraram para o corpo das instituições culturais, produziram abuntantemente neste período que ficou marcado como de extrema liberdade expressiva. No entanto, com o acirramento da censura, os artistas viram seus ideais de rompimento dos paradigmas da arte, da liberdade criativa e da criação de uma arte política possível se esvaindo. Kandinsky e Chagall, que já mantinham laços com o exterior, fugiram para a Alemanha e França, respectivamente. Maliévitch, que também foi um teórico de sua própria arte, o criador do Suprematismo, elaborou a seguinte frase: “Eu consegui me desfazer do horizonte, das sombras, das luzes, das perspectivas”. No entanto, na década de 1920, ele, como tantos, sentiu o peso da pressão do regime socialista e, por perceber que a arte de vanguarda que vinha fazendo havia perdido o sentido, voltou ao Figurativismo primário, criando figuras, embora visivelmente humanas, todas sem rostos, impessoais. Em 1933, dois anos antes de morrer, fez o seu autorretrato, colocando-se com todos os esteriótipos da figura de um pintor renascentista.
Os projetos filosófico e religioso de Maliévitch, em paralelo com o construtivismo fundado por Tátlin, e ainda seguido do tratado dos princípios da representação abstrata de Kandinsky, fazem parte de um trajeto da Vanguarda Russa que abriu caminho para toda a arte posterior.
Concretismo russo e brasileiro, possíveis relações
O Abstracionismo e a Vanguarda Russa, como um todo, aparentam alguma influência no Concretismo brasileiro do final dos anos 1950. Segundo o crítico de arte, Fernando Cocchiarale, o movimento concretista brasileiro apresenta afinidades com as experimentações de espaço e a ruptura da forma originárias no movimento russo. “É a partir dessa afinidade histórica e da influência difusa do Construtivismo russo nas experimentações espaciais cariocas (rompimento do quadro em direção ao espaço real) e nas incursões dos paulistas pelo design gráfico, paisagismo e arquitetura que ficou consagrada a ideia de um projeto construtivo na arte brasileira”, diz Cocchiarale. O concretismo, segundo o poeta e também crítico de arte Mário Pedrosa, era uma experiência antirromântica que precisava de uma disciplina, e o Brasil, um país romântico por natureza que também precisava de uma disciplina. Assim se deu o início de uma ruptura, de uma criação própria que não transportava para as terras tupiniquins apenas o que a Europa produzia ou gostaria de enxergar aqui. Algumas referências, como a experimentação das formas simples de Maliévitch e o total Abstracionismo na arte, foram incorporadas por Hélio Oiticica, na sua construção de uma arte não objetiva, desligada das formas de representação figurativa da realidade, o que hoje já foi completamente absorvido e naturalizado pelos artistas contemporâneos.
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