Enquanto a tecnologia e os meios de comunicação inauguram um campo novo de possibilidades, um acaso propício ao encontro, os espaços concretos caminham em direção oposta. O colapso tornou-se a experiência ambiental diária e obrigatória para aqueles que, por amor à humanidade, fé no futuro ou necessidade, insistem em (sobre)viver nos “aglomerados” urbanos. O desenho irracional de nossas cidades – que nos empurra a conviver ombro a ombro com pedestres, ciclistas, carros, caminhões, fuligem, ruídos avassaladores, transporte coletivo lotado, o nosso cheiro, o cheiro do outro – faz com que os sentidos se ressintam e os ânimos se alterem. A contiguidade corrói tanto as relações entre homens quanto a relação homem-natureza, resultando em um ambiente hostil e violento. Perante esse panorama, digno de fim de mundo e, portanto, que exige da imaginação uma saída tão radical quanto a própria realidade, quem se arrisca a lançar um desenho-programa total para as cidades do nosso tempo?
A exposição Le Corbusier – América do Sul – 1929, em cartaz no Centro Universitário Maria Antônia, traz para São Paulo 26 desenhos originais do arquiteto franco-suíço e, entre eles, proposições de redesenho urbano para São Paulo e Rio de Janeiro. Parte do material exposto foi elaborada por Le Corbusier durante sua jornada pela América do Sul, em 1929, e usada em palestras proferidas por ele naquele ano. Acompanhados de trechos do livro Precisões: Sobre um Estado Presente da Arquitetura e Urbanismo, os desenhos apresentados no Maria Antônia retomam visualmente a linha revolutiva do pensamento dessa figura fundante da arquitetura de invenção mundial.
Segundo Hugo Segawa, que com Rodrigo Queiroz organizou a exposição: “Trata-se de uma repatriação dos desenhos à América do Sul. Nossa ideia é mostrar como a descoberta da América muda o desenho de Le Corbusier e como isso se expressa nos projetos urbanos para o Rio e São Paulo. A questão dos meandros influencia seu cartesianismo – é outro Corbusier que volta para a Europa”.
Era a primeira vez que Corbusier pisava em solo americano e, durante os 74 dias em que permaneceu em terras verdejantes, emitiu, deglutiu, elaborou e sintetizou uma nova percepção espacial. Das experiências aqui vivenciadas, porém, uma foi especialmente marcante: a possibilidade de sobrevoar amplos campos, ver o território do alto, na realização daqueles que foram seus primeiros voos de avião. Os olhos que, anos antes, viram em transatlânticos, aviões e carros um novo programa para a arquitetura e o urbanismo, puderam experimentar o plano terrestre sob uma nova perspectiva, uma nova escala. “Vi, do avião, alguns espetáculos que se poderiam denominar cósmicos. Que convite à meditação, que chamado às verdades fundamentais de nossa Terra!” Ele prossegue no relato de suas observações de voo: “O curso destes rios, nestas terras ilimitadas e planas, desenvolve pacificamente a implacável consequência da física. É a lei da linha do maior declive e, em seguida, tudo tornou-se plano, é o teorema comovente do meandro. (…) Para meu uso, batizei este fenômeno de lei do meandro e durante minhas conferências, em São Paulo e no Rio, aproveitei este símbolo milagroso para apresentar minhas propostas de reformas urbanas ou arquitetônicas, para buscar apoio na natureza (…)”.
Para um sujeito cuja meta permanente fora “restabelecer ou estabelecer a harmonia entre o homem e seu meio”, a descoberta de um continente de altos contrastes naturais, onde a topografia apresenta paisagens nas mais diversas formas – de densas florestas aos mares, de morros às planícies de horizontes sem fim – e onde tudo está por se fazer, estimulou enormemente o imaginário de Corbusier. Da aliança entre o rigor geômetra e a profunda percepção das formas oferecidas pelo relevo resultaram tanto os projetos para o Rio de Janeiro e São Paulo quanto para Buenos Aires e Montevidéu. Em cada situação, parte-se da geografia para encontrar a melhor relação entre espaço edificado e os recursos naturais oferecidos pelo lugar. Ao estabelecer a cidade e a natureza como dois elementos desiguais, porém combináveis por meio do desenho, rompe-se assim com os paradigmas da cidade como estrutura necessariamente predatória e, por outro lado, da necessidade de manter a natureza intocada.
A proposta para São Paulo – cuja topografia se caracteriza como “mar de morros” – prevê unir os topos das colinas com prédios-pontes que, aproveitando os desníveis dos vales, cresceriam verticalmente em direção ao solo e ainda, na cobertura, abrigaria uma autopista onde se daria a circulação de veículos. Essa espécie de Minhocão-Copan infinito, que para muitos causa arrepios, é só uma das formas que, se assumidas e desdobradas, poderiam nos devolver algo há muito perdido: viver sem perder de vista o meio em que estamos. Para aqueles que possam se interessar em assumir o exercício de projeto como processo experimental, para aqueles que possam se interessar em pensar saídas para nossos ajuntamentos humanos, ver com olhos livres os desenhos-proposições de Corbusier expostos no Maria Antônia pode ser um valioso ponto de partida.
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