Construído à imagem e semelhança dos antigos veleiros, mas com todos os modernos recursos de navegação e de comunicação, o clipper Stad Amsterdam carrega uma produtora de TV a bordo e uma tripulação em que se misturam marinheiros, jornalistas, pesquisadores e personalidades para uma viagem histórica: eles vão refazer, em um ano, a rota do Beagle, que trouxe Charles Darwin aos mares do sul. O biólogo Lisandro de Almeida, que integrou a equipe durante a viagem entre Fernando de Noronha e Salvador, nos dá um relato em texto e fotos dessa aventura.
A viagem, iniciada nas primeiras décadas do século XIX, tinha objetivos científicos, mas nem de longe seus tripulantes imaginavam que iriam modificar o mundo em conceitos, teorias e pensamentos. A bordo do HMS Beagle, setenta homens sob o comando do jovem e condecorado capitão Robert FitzRoy, de 26 anos, lançaram-se ao mar, partindo do porto de Denver, na Inglaterra, em 27 de dezembro de 1831, para uma viagem planejada para durar dois anos, mas que terminaria somente em 1836. O jovem Charles Darwin, 22 anos, recém-formado pela Universidade de Cambridge, após sucessivas tentativas frustradas de se tornar médico e clérigo, embarcava como naturalista de bordo, com a tarefa de registrar e coletar tudo que se mostrasse interessante à ciência nas terras visitadas durante a circum-navegação.
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A viagem do HMS Beagle explorou praticamente toda a costa sul-americana, contornando o continente de Fernando de Noronha ao arquipélago de Galápagos, com paradas e entradas no Brasil, Uruguai, Argentina, Peru e Chile, seguindo depois para a Polinésia, Oceania, África e novamente ao Brasil, antes de retornar ao porto de origem. Seu objetivo era o mapeamento cartográfico e topográfico do Hemisfério Austral e, ainda hoje, é considerada a viagem mais importante jamais empreendida na região por conta de seus resultados, não só no campo da biologia, mas também na meteorologia e geologia.
Darwin adquiriu tantos conhecimentos e tanta compreensão daquilo que o rodeava no decorrer dessa viagem que mudou a visão geral sobre a vida na Terra de forma drástica. Após um longo período de incubação e pesquisas, publicou o livro Origem das Espécies, tornando-se o primeiro naturalista a afirmar claramente que a vida, como a conhecemos, não era uma criação de Deus, mas consequência de uma evolução por seleção natural.
Passaram-se meses, anos, décadas, quase dois séculos e chegamos a 2009. Ano de Darwin, 200 de seu nascimento. Para comemorar, uma rede de rádio e a TV holandesa VPRO, em conjunto com algumas empresas privadas, assumem uma empreitada e tanto. Lançam ao mar, em agosto de 2009, o clipper Stad Amsterdam, um veleiro inspirado nos antigos clippers, construído para ser o novo Beagle, com um estúdio de televisão flutuante, e que durante um ano navegará pelos mares do planeta, refazendo a expedição do HMS Beagle de Robert FitzRoy e Charles Darwin, investigando a direção que a evolução na Terra tomou nos dias de hoje, para mostrá-la em uma série de 35 episódios de TV.
Devido às grandes coincidências que regem nossas vidas, durante uma exposição de fotos em Amsterdã, conheci uma das produtoras dessa viagem. Por ser biólogo e por morar em Fernando de Noronha, fui convidado para entrar nesse projeto e auxiliar na produção de um dos capítulos da série, que seria rodado justamente no arquipélago de Fernando de Noronha, um dos pontos visitados pela expedição do século XIX.
Aceitei de bate-pronto e durante 10 dias, com uma equipe de seis pessoas, filmamos tudo o que Darwin não pode ver nesse nosso maravilhoso arquipélago – da descoberta de uma nova espécie de polvo às tartarugas marinhas, passando por aves endêmicas, comunidades de peixes, tubarões e golfinhos -, mostrando o que estamos fazendo por aqui em prol da conservação de nossos parques nacionais marinhos. A equipe da VPRO ficou tão encantada com nossas ilhas que decidiu dedicar um capítulo inteiro a Fernando de Noronha e não apenas os cinco minutos inicialmente programados.
Em sincronia com o término das filmagens, o clipper Stad Amsterdam chegou a Fernando de Noronha, vindo de Cabo Verde, para “resgatar” a equipe que estava em terra. Seguiram então para Salvador, parada seguinte de Charles Darwin em 1832. Felizmente, fui convidado para seguir viagem com a equipe e ajudar na produção de mais um episódio que seria rodado a bordo.
Ao embarcar, senti a grandiosidade do projeto e a honra do convite. Fui recebido pelo capitão, Richard Slootweg, 47 anos, holandês, que orgulhosamente me contou que eu estava a bordo de um dos únicos três clippers ainda existentes. Os outros são o Cutty Sark, veleiro original, construído em 1869, atualmente um barco-museu instalado em um porto seco, em Greenwich, Londres, e o Cisne Branco, navio da Marinha Brasileira, construído no mesmo estaleiro, no final dos anos 1990, e irmão gêmeo do barco que eu agora estava.
Finalizada sua construção em 2000, o Stad Amsterdam, de 78 m de comprimento, impressiona: tem três mastros, 31 velas e 10 km de cabos. O mastro principal tem seis velas e 50 m de altura. Em seu interior, carrega uma bem montada produtora de TV, que filma, edita e transmite via satélite imagens do dia a dia a bordo, bem como os episódios da série, que são exibidos nas TVs holandesas e belgas aos domingos e quartas-feiras durante toda a viagem do novo Beagle.
A bordo, viajam celebridades do mundo naval, alguns descendentes dos velhos mestres Charles Darwin e Robert FitzRoy, marinheiros, jornalistas, cientistas, editores, câmeras, apresentadores. A equipe vasculha assuntos que vão desde a migração das aves à escravatura, da biologia marinha à astronomia, de espécies recém-descobertas até povos extintos, contando também uma história humana, pessoal e aventureira nas belíssimas e ameaçadas regiões do planeta.
Em todo porto que atraca, trocam-se equipes de filmagem, apresentadores e também alguns convidados. Em Salvador, onde desembarquei, Sarah Darwin, tataraneta de Charles e uma das apresentadoras do documentário, retornou a bordo com sua equipe. Nos quatro dias em que estive embarcado, navegando a vela entre Fernando de Noronha e Salvador, ocupei a cabine 11, dividindo-a com o escritor Peter Nichols e Michael FitzRoy, tataraneto do capitão do HMS Beagle.
O clipper é divido em duas equipes distintas, tripulação e TV e a maioria que está a bordo navegará por cerca de oito meses. Segundo Lex Runderkamp, o editor-chefe holandês, de 52 anos, trabalha-se a bordo muito mais que em terra, nas produtoras, pois embora pareça uma viagem dos sonhos, todos têm obrigações constantes durante toda a navegação e, diferentemente da vida em terra, os momentos de folga e descontração continuam sendo trabalho, pois estão todos ali, navegando. Segundo Lex, uma das grandes preocupações da equipe de filmagem, umas trinta pessoas, é nunca repetir as histórias para manter o interesse do público ao longo dos 35 episódios. A produtora Fleur Amesz, socióloga holandesa, que também é uma das pesquisadoras a bordo, procura, a cada episódio, manter a conexão entre a natureza e os aspectos políticos e sociais dos lugares visitados. A tripulação é de 26 pessoas, sob o comando do capitão Richard Slootweg e do imediato Terry Van Kampen, 42 anos, holandês, velejador desde os 18 anos, que fala com orgulho de seu trabalho. Ele se sente honrado pela oportunidade de refazer essa viagem histórica, muito diferente das atividades do dia a dia, em geral viagens curtas, para clientes que alugam o barco para charters. Terry conta que o trabalho no veleiro é intenso para navegar com harmonia: "São três turnos diários de quatro horas cada - fiz parte de um deles enquanto estive a bordo -, o que faz com que cada membro da tripulação trabalhe pelo menos oito horas por dia nos afazeres de navegação, cozinha, limpeza e manutenção do navio. Vale lembrar que num veleiro todos os cabos e velas são puxados a mão, exatamente como nos séculos anteriores". Confirmando a tradição dos marinheiros, os tripulantes têm muitas histórias curiosas para contar. Em meus turnos, que iam das 4 às 8 horas e das 16 às 20 horas, trabalhava sob o comando de Maarten Lap, um holandês de 30 anos, os dois últimos a bordo, que confessou uma paixão pela vela iniciada ainda menino, aos 6 anos, quando começou a velejar com o pai. Hoje, nas folgas do clipper, Maarten mora em um pequeno veleiro nos canais de Amsterdã. Sua pior aventura no mar foi durante uma grande tempestade quando atravessava o Atlântico, saindo de Boston em direção ao Faro, em Portugal, em que ele quase morreu eletrocutado. Todos estavam passando mal e ele resolveu arrumar a louça na cozinha. Estava tudo alagando. O fio do micro-ondas estourou e quase caiu na água que lavava seus pés... "Imagine você: morrer eletrocutado, lavando louça, navegando?", comentou com certa indignação, antes de um longo sorriso debochado. Frederike Van der Meer, 18 anos, companheira de turno de Marteen, era a mais jovem das marinheiras a bordo. Dona de cabelos loiros e de largo e belo sorriso, pura alegria, me contou que já estivera a bordo do clipper no começo do ano, em sua viagem de formatura do colegial. Navegou por dez dias e decidiu que era essa a vida que gostaria de levar por um tempo. Bombardeou a administração do barco com cartas de intenção até que conseguiu uma entrevista e, disputando com outros vinte candidatos, foi escolhida para dar a volta ao mundo no mais lindo veleiro do planeta. Vinda de um pequeno vilarejo de 1.200 habitantes no interior da Holanda, Frederike, que divide cabine com mais duas tripulantes holandesas, conta que está conseguindo se adaptar bem a bordo. Ela diz que, no começo, o medo de alturas dificultava seu trabalho nos mastros, mas que agora já se acostumou e a cada dia aprende alguma coisa nova, seja de navegação ou do comportamento humano. Histórias de marinheiros à parte, as mais curiosas conversas que tive foram com os convidados do trecho Cabo Verde-Salvador. Michael FitzRoy, inglês, 50 anos, chamado a bordo para falar sobre seu tataravô, se sentiu honrado por representar a família do capitão e falar sobre sua carreira de comandante, que se iniciou aos 23 anos, e que foi importante para a história da navegação. O capitão FitzRoy contribuiu para a elaboração de grande parte das cartas náuticas do hemisfério sul e escreveu quatro livros que são marcos da meteorologia atual. Michael fala com tristeza sobre o pouco reconhecimento desse que foi um dos mais jovens comandantes ingleses. Curiosa também é opinião de sir James Alan Barlow, escocês de 53 anos, tataraneto de Darwin, que defende abertamente o criacionismo, com argumentos bastante fortes - opinião que compartilha com Sarah Darwin, também a bordo. Para James, que foi condecorado Sir por ser tataraneto de Alan Barlow, médico da rainha Vitória da Inglaterra, a vida na Terra foi criada por Deus, assim como está na Bíblia. Não em sete dias - o que considera um erro de interpretação -, mas em sete períodos e que os dias bíblicos podem representar até mil anos. Apaixonado por história natural e embaixador da Galapagos Conservation Trust (www.gct.org), diz que as teorias de seu tataravô eram também verdadeiras e que o evolucionismo é uma arma divina para a seleção e manutenção da vida na Terra e para a evolução das espécies. Seria o big bang o Deus para os evolucionistas? Para acompanhar a viagem do novo Beagle, acesse o site www.beagle.vpro.nl, infelizmente a maior parte é em holandês, mas existem trechos em inglês e português.
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