A vida continua seca

A Vila de Baião Grande é um conjunto de casinhas de taipa nas proximidades da cidade de Tupanatinga, sertão pernambucano. Ali vivem 20 famílias, entre elas, a de Maria Aparecida da Conceição, uma mulher de 30 anos que neste momento tenta distrair a fome dos quatro filhos contando histórias confusas de anjos e outros seres voadores. Como não consegue seu intento, vai ao improvisado fogão a lenha e mostra para a reportagem da Brasileiros as panelas praticamente vazias, resultado do verão que este ano veio mais cedo e já começa a castigar a região com uma estiagem da brava. Com o pouco de macarrão que ainda resta, ela prepara uma sopa rala para afastar da sua casa a terrível estatística mundial, segundo a qual a cada sete segundos uma criança morre de desnutrição em algum canto do planeta. Essa morte lenta e dolorosa, depois de um quadro dramático de atrofia e desidratação, ronda as redondezas. Há alguns meses, na vizinha Buíque, Fernanda Avelino, de um ano e meio, foi enterrada pela própria mãe depois que deixou de se mexer, de falar e de comer o pouco que lhe era oferecido.

Estamos na região traçada com minúcias pelo escritor Graciliano Ramos em seu clássico Vidas Secas, o livro que chamou a atenção do mundo para o flagelo da seca e que em 2008 completa 70 anos de lançamento. É como se as sete décadas não tivessem passado e seus personagens – Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia – continuassem por ali, no mesmo cenário áspero de privações e sofrimentos.
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Graciliano Ramos nasceu na cidade de Quebrangulo, zona da mata alagoana, em 1892. Aos três anos viajou com a família para Buíque, onde o avô materno já morava e o pai vislumbrou a possibilidade de tornar-se fazendeiro, estabelecendo-se numa pequena propriedade para criar algumas cabeças de gado. Veio a seca, acabou com tudo e tiveram de voltar para Alagoas. Mas foi ali, em meio à caatinga pernambucana, na fazenda Maniçoba, do avô, que o menino sensível garimpou matéria-prima para sua literatura. Como confirmou anos mais tarde em carta ao amigo e jornalista João Condé:

“No começo de 1937 utilizei num conto a lembrança de um cachorro sacrificado na Maniçoba, interior de Pernambuco, há muitos anos. Transformei o velho Pedro Ferro, meu avô, no vaqueiro Fabiano; minha avó tomou a figura de Sinhá Vitória; meus tios pequenos, machos e fêmeas, reduziram-se a dois meninos.”

Antes de Graciliano, outros escritores já se haviam debruçado sobre o tema da seca no sertão nordestino. Euclides da Cunha, em Os Sertões, de 1902, afirmava que a ocorrência do flagelo em intervalos relativamente regulares permitiria previsões seguras e medidas de proteção. “Entretanto, apesar dessa simplicidade extrema nos resultados imediatos, o problema, que se pode traduzir na fórmula aritmética mais simples, permanece insolúvel”, escreveu o autor.

E insolúvel continua até hoje, indiferente a ações governamentais como a criação do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, em 1909, ou a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, ambos vinculados a histórias de corrupção e utilização irregular de verbas públicas. A seca prossegue e o sertanejo, descrito por Euclides e Graciliano, vai sobrevivendo na adversidade.

Para ver o que mudou e o que permanece nesse cenário literário, voltamos ao lugar que inspirou a criação de Vidas Secas. Nossa viagem começou em Maceió, capital de Alagoas, onde pegamos o carro que nos levaria ao agreste. A primeira parada foi em Viçosa, cidade alagoana em que Graciliano passou a adolescência e conheceu os livros. Chegamos na efervescência da feira de sábado, que atrai uma multidão que vem comprar e vender farinha, rapadura, frutas, fumo, animais e roupas.

Valfrido da Silva saiu da cidade de Paulo Jacinto, a 14 quilômetros, especialmente para trazer para uma freguesa um bode, encomendado pelo preço de R$ 150. Esbaforido, ele verifica que a compradora deu o cano: “Êta moléstia, o que eu faço agora com o bode?” Os amigos começam a gozação: “Quer trocar numa ‘jega’ parida, com dois jeguinhos?” Perto dali, nas margens do Rio Paraíba, as lavadeiras batem roupas na pedra, numa cena já registrada por Graciliano Ramos. Meticuloso com as palavras, ele dizia sempre: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda, ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa”.

Samara Santos, 20 anos, é uma das que estão na beira do Paraíba neste sábado, torcendo roupas. Ela mora numa pequena casa de taipa na beira do rio, com o marido e o filho Uéslei, de dois anos. Veio da cidade de Triunfo, em Pernambuco, onde foi criada por missionários alemães. Quando a seca apertou, seus tutores conseguiram mandá-la para a zona da mata, aos cuidados de uma instituição de menores carentes de Viçosa. Ali, ela realizou seu sonho de ser baliza na fanfarra municipal, casou-se e leva uma vida aparentemente melhor que os flagelados pela estiagem.

O mesmo caminho de volta do sertão fez o criador de boi Sebastião Silveira Lima, de 80 anos, hoje proprietário da casa onde Graciliano nasceu, no centro de Quebrangulo, nossa parada depois de Viçosa. Com suas paredes grossas, pintadas de verde claro e quatro janelas que dão para a Praça Getúlio Vargas, ao lado da prefeitura, a casa permanece intacta e aberta a quem aparece, como um museu informal. “Esse Graciliano é uma peste, que não me deixa dormir”, brinca Sebastião.

Achamos a residência onde nasceu Graciliano com a ajuda de Gilvanildo Silva, de 11 anos. “Sei que morou nessa casa um escritor, mas não conheci não senhor. Acho que morreu antes de eu nascer”, diz. Como Gilvanildo, Sebastião Lima e outros moradores dessas paragens também sabem pouco sobre Graciliano Ramos.

A exceção fica por conta de José Miguel dos Santos, o Zé de Anadia, 98 anos, morador mais ilustre da vizinha Palmeira dos Índios, por ter sido o engraxate dos sapatos do escritor. Graciliano morou em Palmeira por duas vezes e, na segunda, elegeu-se prefeito da cidade, cargo que exerceu de 1928 a 1930. Nesse período, engraxava seus sapatos regularmente, duas vezes por semana. “Nos dias úteis eu engraxava o sapato preto que ele usava para trabalhar e no sábado o marrom, de passear”, lembra. O engraxate, ainda em atividade apesar da idade, conta que o escritor era sisudo e de pouca conversa, mas que gostava de falar com os mais humildes. “Comigo ele papeava muito porque sabia que minha boca era fechada, não ia sair contando suas intimidades”, garante. “O senhor sabe como é engraxate. Ouve o que interessa e o que não interessa. Se eu fosse língua solta, principalmente em assuntos com política no meio, já tinha morrido.”

Depois de pernoitar em Palmeira, é hora de penetrar no sertão e seguir no rumo de Pernambuco. Passamos por Santana de Ipanema e quase na divisa dos dois Estados topamos com um carro de boi carregado com dois tonéis de água. Com uma vara na mão, o jovem Itamar da Silva vai conduzindo os animais naquela maneira arcaica de sobrevivência. “Essa é nossa vida. Fazemos a viagem todo dia até a cidade de Dois Riachos, a 20 quilômetros daqui, para buscar água no açude e abastecer nossa cisterna.”

Conforme vamos avançando ao norte, a vegetação vai rareando, ganhando um tom acinzentado e pedregoso. Entre as cidades de Águas Belas e Itaíba, avistamos um casebre na beira da pista de rodagem, com diversas pessoas sentadas na varanda. É domingo e ali estão reunidos amigos e familiares do lavrador José Avelino da Silva, 52 anos. Apesar da alegria aparente, as notícias não são nada boas para eles: o início da seca já acabou com parte da plantação de feijão. “A sorte é que consegui salvar cinco sacas, que vão garantir nosso sustento por uns tempos”, conta José Avelino. “No verão são seis meses de aperreio, seu moço.”

Mesmo assim, segundo Marcio Rodrigues de Matos, cunhado de José Avelino, é melhor viver ali do que na cidade grande. “Em 2002, vendi tudo que tinha e fui para São Paulo”, recorda. “Se contar meus sofrimentos lá na cidade grande, até os jegues choram.” Ele relembra que na capital paulista passou um ano de frio, fome e humilhação. “Catava papelão na rua e era tratado como cachorro. Mas sobrevivi e estou aqui para contar.”

Histórias de sobrevivência também são narradas na casa de Cícero e Iraci Gomes, moradores de outra pequena propriedade na beira da estrada, 30 quilômetros adiante. Com 14 filhos para alimentar, com idades entre um e 18 anos, o sustento da família vem dos programas assistenciais do governo federal, que garantem uma renda mensal de R$ 122.

Fora isso, uma pequena plantação de milho no quintal pode render mais alguns reais, se chover e a lavoura vingar. Neste começo de verão, com a seca já instalada, o pouco milho estorricado que foi colhido servirá apenas para alimentar o jegue da casa. “Nós vamos ter de fazer rodízio. Enquanto um come o outro olha e no outro dia a gente inverte”, diz a filha mais velha, Lucivânia.

Mais uns quilômetros e chegamos a Tupanatinga, terra de Maria Aparecida Conceição, que abriu esta reportagem. Logo ao lado fica Buíque e lá visitamos a fazenda onde Graciliano passou seus primeiros anos.

A casa é a mesma em que viveu o menino Graciliano, com alpendre e sala onde havia “armas de fogo e instrumentos agrícolas pelos cantos, arreios suspensos em ganchos, além de outros trastes de serventia”, segundo o livro de memórias Infância, de 1945. Hoje, vivem na propriedade Dario José Loiola e sua mulher Gilda, os “guardiões” daquele patrimônio histórico-literário.

Os dias atuais parecem ainda mais duros do que aqueles vividos pelo escritor. Quem nos dá a exata dimensão da situação é Anleide Pires, 26 anos, enfermeira que atende a população rural de Buíque. Além de contar a saga da menina Fernanda Avelino, que morreu de desnutrição em pleno século XXI, ela relata outros casos chocantes. Como o de uma mulher que acabara de ter o seu 19º filho só para receber do governo o salário maternidade. São pessoas que vão acabar cumprindo a profecia de Graciliano Ramos, em Vidas Secas, quando ele diz que o sertão continuará mandando para a cidade homens brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos.

A SAGA DE GRACILIANO
Graciliano Ramos escreveu Vidas Secas em 1937, logo depois de sair do Presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, onde amargou quase um ano de cadeia quando fora acusado de comunista. Sem dinheiro e com a saúde estragada, foi morar numa pensão, um sobradinho da Rua Correia Dutra, no bairro carioca do Catete. Ali, no pequeno quarto dos fundos, vivia com a mulher Heloisa e as duas filhas menores.

Como a conta da pensão não podia esperar pela conclusão de um livro – o que demoraria muito – Graciliano criou a história de Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia em partes, como um romance desmontável. Assim, vendia o material em “retalhos” para publicações do Brasil e do exterior e aplacava a necessidade de recursos da família.

O cronista Rubem Braga era vizinho de quarto de Graciliano e, décadas mais tarde, aos 40 anos de lançamento de Vidas Secas, em 1978, contou como o livro foi escrito: “Ele acordava cedo, lavava a cara quando o dia ainda estava clareando e ali no quarto, onde a mulher e as filhas ainda dormiam, abria o armário de pinho envernizado, tomava um trago de cachaça, tirava da carteira seis cigarros Selma, batia-os e apertava o seu fumo até que a parte da ponta da cortiça ficasse vazia, dispunha-os na mesa, colocava ao lado seis paus de fósforos, abria o tinteiro, pegava

a caneta, e lentamente, com sua letra bem legível, onde até as emendas são rigorosamente corretas, escrevia um capítulo de romance numa prosa seca, precisa, limpa e entretanto estranhamente sensível”.

Embora concebido a milhares de quilômetros do sertão, Vidas Secas retrata imagens que atormentaram o menino Graciliano nos seus primeiros anos de vida, passados no agreste de Pernambuco. No livro Infância, o escritor forneceu mais detalhes sobre a agonia pela qual passara e que depois fora transformada em literatura:

“Um dia faltou água em casa. Tive sede e recomendaram-me paciência. Chorei, embalei-me nas consolações, e os minutos foram pingando vagarosos. A boca, enxuta, os beiços gretados, os olhos turvos, queimaduras interiores. Sono, preguiça – e estirei-me num colchão ardente. Não sei quanto tempo durou o suplício.”

Vidas Secas foi lançado em 1938. A primeira edição não obteve o êxito esperado, apesar de Graciliano já desfrutar de alguma fama. Os mil exemplares publicados levaram dez anos para esgotar-se. Hoje é um dos livros mais reeditados – está na 106a edição – e foi traduzido para 19 idiomas.


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