Diferente dos irmãos, ele não foi um bebê bonito, rechonchudo e sorridente, como os pais esperavam. Era sério, nunca ria. Podiam jogar o bebê ao alto quanto fosse. Podiam fazer cuti-cuti na sua barriga. Seu olhar era sempre sério. Os pais acostumaram.

Menino, não tinha interesse por carrinhos nem nada. Olhava firme as coisas, os bichos e as pessoas. Um olhar que assustava porque era frio. Era um olhar que perscrutava, inquiria.

Nunca foi preciso dizer a ele o que fazer. Na hora do banho, banhava. Na hora de vestir, vestia. Na hora do comer, comia. Não era preciso mandar pra cama. O que dele se esperava, fazia. Era esse seu jeito de ser. Foi assim na escola também. Sempre estudava. Cumpria o dever. Fez excelente faculdade, como esperado. E foi assim com mulher também. Arrumou a devida na hora certa. Casou. E, quando dele se esperava que tivesse filhos, teve. No estreito e crudelíssimo período da vida em que há de conseguir sucesso, prestígio e dinheiro, ele não decepcionou. Sobejou. Foi profissional exemplar, de grande reputação, ficou rico. Muito rico.

Mas, dizem alguns, não há aquele que aguente sempre ser o que dele se espera. Nem mesmo o vencedor. Aos cinquenta e cinco, ainda que tardiamente, exauriu. Cansou de ser o que dele esperavam. Pela primeira vez, olhou para dentro de si. Não encontrou nada. Na verdade, viu que lá no fundo de sua alma, sua mesmo, só havia uma pequena chama, estranha chama. E, por todo o tempo, ela fora coberta por um magma de expectativas sociais e de exigências morais. Só assim verbalizando, pode ele compreender o que se passara. Não havia vivido uma vida sua. Que desastre! Ficou arrasado com sua medíocre existência de retumbante sucesso. Chocado, pensou em perda total.

O seu costumeiro estar quieto converteu-se em profundo silêncio, meses a fio. Numa noite de sexta-feira, ele tentou contar um pouco dessas coisas pra ela, que não entendeu nada. Ficou apenas com a impressão de que chegara a sua hora.

Passaram muitas outras semanas, silenciosas semanas, e ele disse que iria caçar marrecos em Pedro Juan Caballero no Paraguai. Ele ficou louco, ela pensou e logo disse caçar é sempre bom para espairecer. Como questionar aquele homem correto, sério, bem-sucedido? Como duvidar daquele monumento? Como desconfiar daquele totem?

Primeiro ele foi pra Ciudad del Leste, comprar armas. Na loja de Abdul Farid Abdul, que diziam ser ligado ao Hezbollah, começou falando em calibre 12 para os marrecos. Não demorou muito e estava comprando uma Kalashnikov AK-47 para caçar capivaras. Caçar capivaras? pensou Abdul que achou estranho, mas não fez a pergunta.

Em Pedro Juan viu bandos de marrecos volteando ao entardecer vermelho. Tomou uns tragos e foi dormir. Na madrugada, saiu com Don Olegário. Os dois na voadeira e a cachorrada correndo pela beira do rio, varando o mato atrás das capivaras. No primeiro dia, tocaram mais de trinta pro rio. Não escapou uma. E foram mais cinco dias assim. Do mesmo jeito, na mesma medida. Feroz e violento. Não tinha limite. Don Olegário, homem experimentado, ficou horripilado com a matança. Tomou cautela.

Voltando, já no aeroporto Presidente Stroessner, pôs uma etiqueta com nome de mulher em sua mala e despachou a Kalashnikov num embrulho no meio das roupas. Em casa, a arma foi pro armário. Do jeito que veio, com vinte quatro pentes de munição. Embrulhada pra empregada não ver.

Ele hoje sabe o porquê do magma. Sabe que não é bom ter a arma por perto, mas nem pensa em mexer naquele embrulho.

Magali não tem a menor ideia do que se passou em Pedro Juan Caballero. Não tem a menor ideia de quem é esse homem. E dorme todo dia ao lado dele. Há trinta e cinco anos.

É essa a vida de Magali. Correta, abastada e sempre tensa. Mas, agora falta pouco.

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil , professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.


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